Introdução — A criatividade e a necessidade de uma revolução epistêmica
Criar, no vocabulário corrente, é produzir algo “do nada”. Esta expressão, carregada de um misticismo secularizado, remonta tanto à ideia teológica de creatio ex nihilo, quanto à noção romântica do gênio espontâneo, que transcende as regras e impõe ao mundo sua assinatura [1]. Porém, a ciência moderna, guiada por um paradigma materialista, não reconhece este “nada” como um vazio fértil, mas como ausência, ruído ou ilusão. Ao mesmo tempo, a mesma ciência se distancia cada vez mais da experiência viva da criação, reduzindo-a a processos cerebrais, algoritmos adaptativos ou replicações sofisticadas.
A criatividade — este mistério sempre reverenciado, mas raramente compreendido — tornou-se, para a modernidade, uma função secundária do intelecto, subordinada à lógica, à técnica e à utilidade. Criação virou inovação rentável. A genialidade foi domesticada em termos de performance. A inspiração foi rebaixada à cognição não-linear. E a subjetividade — coração, sentimento, intuição — tornou-se suspeita, como resquício pré-científico de um pensamento imaturo.
Esse esvaziamento da interioridade criadora está no cerne da crise contemporânea. Pois se, por um lado, a razão moderna matou Deus, como proclamou Nietzsche, por outro, a própria razão tornou-se órfã de sentido, abandonada à repetição de paradigmas esgotados. O que se apresenta como objetividade é muitas vezes apenas o disfarce metodológico de convenções coletivas não examinadas. A "lealdade excessiva à ciência vigente", na verdade, "é já uma forma de limitar a própria ciência". A ciência clássica, por seu "elitismo e academicismo", dificulta o florescimento do processo criativo. A carência criativa humana deriva dessa "aderência quase irracional, como dogma de fé, aos pressupostos das teorias de verdade vigentes" .
Diante disso, propomos aqui uma revolução paradigmática inspirada por um retorno crítico e criativo ao coração da sabedoria da Bhagavad Gītā. No lugar do “fides quaerens intellectum” medieval e do “cogito ergo sum” moderno, este ensaio propõe: śraddhā quaerens intellectum — a confiança interior que busca a razão, o ardor do coração que ilumina o discernimento, a certeza intuitiva que não substitui o intelecto, mas o orienta [2].
Não se trata de negar o papel da razão, mas de reordenar os planos da consciência. A Bhagavad Gītā oferece, em sua hierarquia Manas–Buddhi–Ātman, uma alternativa milenar ao racionalismo ocidental e ao subjetivismo niilista [3]. A metáfora da carruagem, na qual Krishna guia os cavalos da mente com as rédeas da razão sob a vigilância do Ser, revela uma estrutura de integração e transcendência.
Este ensaio propõe, portanto, uma nova teoria da criação humana, fundamentada em sete princípios interligados: essência, talento, inspiração, intuição, gênio, estilo e śraddhā — não fé cega, mas fervor lúcido — conexão ardorosa com o coração e a sua verdade. Cada um deles será reavaliado à luz da Bhagavad Gītā e da epistemologia sintrópica, propondo uma superação radical da oposição entre coração e razão — não pela eliminação de um dos polos, mas por sua harmonização num eixo interior que chamamos “foco absoluto”.
I. O Fundamento Metafísico da Criação Humana:
Essência, Hierarquia e Desordem Interior
I.1. A hierarquia da consciência: da mente ao Self
A Bhagavad Gītā (BhG 3.42) apresenta uma hierarquia clara e concisa das camadas da consciência humana:
Superiores aos sentidos são os objetos sensoriais; superior aos sentidos é a mente (manas); superior à mente é o intelecto (buddhi); e superior ao intelecto é o Self (Ātman).
Este aforismo não apenas reorganiza os planos do conhecimento, como desfaz a falsa dicotomia entre razão e sentimento, entre objetividade e subjetividade. A mente (manas), sede das impressões e impulsos, precisa ser orientada pela “razão espiritual” (buddhi), que, por sua vez, só alcança sua plenitude quando reflete, plenamente, a luz do Self (Ātman). A sabedoria, portanto, não é produto do esforço intelectual isolado, mas o fruto de uma integração superior que conduz ao foco absoluto do coração — śraddhā. Este é o estado em que a mente (manas) se rende à luz do Ser (Ātman), refletida em buddhi, a dimensão espiritual da psique onde a experiência de śraddhā ocorre.
Nosso desafio aqui é superar as dificuldades do vocabulário teológico ocidental que tornam problemático expressar a distinção sutil entre manas e buddhi, conforme o sentido aqui pretendido para a construção dessa estrutura que revela uma ontologia da consciência. O coração (hṛdaya), no sentido sintrópico que aqui adotamos, não é o centro emocional desordenado, mas o espaço sutil onde vibra o Ātman. A “razão espiritual”, quando separada do coração sagrado, degenera em razão técnica, fria, de retórica vazia. Isso ocorre porque a "razão (= buddhi sem a luz do coração) é obscurecida, sujeita à influência de rāga (o apego, o desejo ou a atração por algo ou alguém; o impulso de buscar o que nos dá prazer) e dveṣa" (a aversão, o ódio ou a repulsa por algo ou alguém; o impulso de evitar o que nos causa dor ou desconforto). [8]. A criação só floresce onde há alinhamento — onde os sentidos são pacificados, a mente purificada, o intelecto iluminado, e o Self reconhecido como guia.
I.2. A desordem interna: kāma, rāga, dveṣa, moha
Se há uma hierarquia natural da consciência, há também uma desordem psíquica que a perturba. A Bhagavad Gītā (especialmente nos capítulos 2, 3 e 16) descreve os estados internos inferiores — kāma (desejo), rāga (apego), dveṣa (aversão), moha (ilusão) — como forças que obscurecem o intelecto e dominam a mente.
Essa turbulência se manifesta como citta-vṛtti — as flutuações (vṛtti) da mente (citta) descritas no Yoga Sūtra de Patañjali — e como bhāva desordenado, isto é, uma disposição interior contaminada pelo ego. A razão espiritual, ou buddhi, nesse estado, torna-se cúmplice do erro, justificando o desejo com lógica, o medo com cálculo, a ambição com argumento. As "sensações (vedanā) e as experiências (anubhūti) sentidas nesse estado são distorcidas pela imperfeição da mente" [9].
A verdadeira criação exige a pacificação dessas forças. Não basta silenciar o mundo; é preciso pacificar o campo interno onde elas atuam. A meditação, enquanto disciplina sintrópica, não visa negar as emoções, mas transmutá-las. Śraddhā — essa energia sintrópica, ardente e lúcida, que brota do foco absoluto do coração — age como fogo purificador, convertendo desejo em devoção, apego em firmeza, aversão em compaixão. Śraddhā, ardor do coração, não é uma paixão cega ou um desejo egoico (kāma), mas sim uma devoção purificada (bhakti) e um amor incondicional (prema). Essa convicção profunda permite que a mente se desprenda do apego (rāga) e da aversão (dveṣa), desfazendo a ilusão (moha). Os estados emocionais (bhāva) são elevados por śraddhā [10].
I.3. Essência: entre svarūpa e svabhāva
O ponto de partida para toda criação autêntica não é o caos, regido pela energia entrópica, mas a essência, fonte da energia sintrópica, ou śraddhā. Aqui distinguimos dois termos cruciais do sânscrito épico:
- Svarūpa: a forma verdadeira, a natureza eterna e sintrópica do Ser (Atman).
- Svabhāva: a natureza condicionada pelas leis materiais da entropia, que dá origem às tendências e potências inerentes ao jīva (indivíduo).
Enquanto a modernidade ignora a lei do equilíbrio sintrópico, Rta, e relativiza a noção de essência, tratando-a como construção cultural, a Bhagavad Gītā afirma uma ontologia radical: o ser tem uma verdade que antecede suas escolhas e aparências. A essência não é um conceito, é a fonte de onde emana Ṛta, a lei de equilíbrio sintrópico que organiza o cosmos, que cria a realidade [4]. O jīva não é um vazio moldável, mas uma expressão corpórea do Espírito, uma vocação própria. No entanto, a Bhagavad Gītā também afirma que é possível transcender a própria svabhāva. O verso 18.66 (“abandona todos os dharmas e refugia-te em Mim”) marca esse ponto de virada: o ser, sob a luz do Ātman, pode ultrapassar até mesmo sua natureza inata e agir a partir desta consciência plena. Isso nos leva ao tema da transcendência da svabhāva pelo gênio — que exploraremos adiante.
Por ora, basta afirmar: não há criação sem enraizamento na essência, essa potência a ser desvelada e que representa o ponto de origem e o ponto de dissolução do ato criador. O processo de realização espiritual é a "descoberta da verdadeira essência do Self". A "epistemologia da Bhagavad Gītā visa revelar essa verdade que já existe, não criá-la por consenso" [5]. Śraddhā expressa o sentimento de convicção fundamental da existência dessa essência permanente e invariável [6].
Continua...
NOTAS DE RODAPÉ
[1] Cf. TURCI, Rubens. "O paradigma sintrópico e a busca da verdade". In: Incomunidade, 2023. Link:
A expressão "produzir algo do nada" é problematizada por uma visão que se alinha com as leis da termodinâmica, segundo as quais nada se cria, tudo se transforma.
[2] Cf. TURCI, Rubens. Shraddhá quaerens intellectum: A certeza interior como pressuposto para o conhecimento. Academia.edu, 2024. Link:
A fórmula Śraddhā quaerens intellectum é apresentada como a proposição fundamental que supera o "fides" medieval e o "cogito" moderno [24].
[3] Cf. TURCI, Rubens. "O Sentimento Sintrópico (Śraddhā) do Espírito Humano (Ātman) e a sua Relação com a Razão (Buddhi e Manas) na Produção da Ciência Contemporânea (III)". Blog Brahmanirvana, 2023. Link:
A hierarquia Manas–Buddhi–Ātman é a base da ontologia e epistemologia da Bhagavad Gītā, oferecendo uma alternativa à dicotomia ocidental [29].
[4] Cf. TURCI, Rubens. Uma Interpretação Sintrópica da Bhagavad Gītā. Revista Filosofia Clássica, 2023. Link:
O ensaio argumenta que o ser tem uma verdade que antecede as escolhas e aparências, e que a essência é a fonte de onde emana Ṛta, a lei de equilíbrio sintrópico [395, 396].
[5] Cf. TURCI, Rubens. "A epistemologia e a teoria da verdade da Bhagavad Gītā". Blog Brahmanirvana, 2020.
O texto defende que a epistemologia da Bhagavad Gītā visa revelar a verdade que já existe, e que não é construída por consenso [276].
[6] Cf. TURCI, Rubens. "Śraddhā: A Bússola Sintrópica para o Conhecimento, Ética e Espiritualidade". Blog Brahmanirvana, 2025.
Link: [598]. O artigo define Śraddhā como a convicção fundamental na existência de uma essência permanente e invariável, o Atman [327].
Próximo texto:
Rio de Janeiro, 19 de julho de 2025.
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