2024-12-14

Sraddhā e Sintropia: Uma Nova Definição do Ser Humano Além de Aristóteles

O Homem Vitruviano
(L. da Vinci)
A definição clássica de homem como "animal racional", cunhada por Aristóteles, representou um marco na história do pensamento ocidental, enfatizando a capacidade humana de pensar, raciocinar e conhecer. No entanto, essa definição, embora relevante em seu contexto histórico, mostra-se insuficiente para abarcar a complexidade do ser humano e sua relação com o cosmos no século XXI.

Vivemos em um mundo marcado por crises ambientais, desigualdades sociais e avanços tecnológicos, que exigem uma profunda revisão da compreensão do que significa ser humano. A definição aristotélica, centrada na razão, mostra-se limitada para explicar a profundidade da experiência humana, com suas dimensões emocionais, espirituais e transcendentais. Exemplos de inteligência em animais, como golfinhos, que se comunicam de maneira complexa, e gorilas, que demonstram capacidades de empatia e aprendizado de sinais, desafiam a noção de que a racionalidade é exclusiva ou mesmo definitiva para definir a humanidade. Esses exemplos ilustram que a verdadeira distinção do ser humano reside em algo mais profundo.

Em contraponto à visão tradicional, o conceito de śraddhā, explorado na Bhagavad Gītā, especialmente no capítulo 17, oferece uma perspectiva inovadora. Śraddhā, termo sânscrito multifacetado que pode ser traduzido como "fé", "confiança", "convicção", "dedicação" ou "crença", transcende a mera crença religiosa ou fé cega. Śraddhā representa a intersecção não vazia entre a fides e o cogito cartesiano, que inaugura a filosofia moderna e a ciência. É um sentimento profundo de conexão com uma realidade maior, um impulso interior que impulsiona ações conscientes, éticas e altruístas, guiando o indivíduo em direção à sua plena realização. Este impulso para a transcendência, exclusivamente humano, é o que diferencia śraddhā de qualquer forma de racionalidade observada em outras espécies.

Ep. 03. Sraddhā e Sintropia: Uma Nova Definição do Ser Humano Além de Aristóteles
(diálogo com IAs)

Na Bhagavad Gītā, śraddhā é apresentada como um princípio fundamental que permeia todos os aspectos da vida humana. É a força motriz que impulsiona o indivíduo a agir de acordo com seus valores mais profundos, buscando a harmonia consigo mesmo, com os outros e com o universo. Śraddhā não se opõe à razão, mas a complementa e a transcende. Transcende também o paradigma religioso "fides quaerens intellectum", que se traduz como a fé que busca nos dogmas o entendimento. Śraddhā é a bússola interna que guia o discernimento, permitindo que a razão se ilumine e seja utilizada a serviço do bem e da verdade.

O conceito de śraddhā nos permite redefinir o ser humano não apenas como um "animal racional", mas principalmente como um "ser dotado de śraddhā". Essa nova definição reconhece a importância da razão, mas a integra a uma visão mais ampla que inclui aspectos emocionais, intuitivos e espirituais. Śraddhā é o princípio unificador que harmoniza as diferentes dimensões do ser humano, conduzindo-o à sua realização plena.

É importante destacar que śraddhā se manifesta de diferentes formas na vida humana. No contexto da Bhagavad Gītā, observamos três tipos de śraddhā: sāttvika, rājasika e tāmasika. A śraddhā sāttvika representa o sentimento sintrópico de puro amor, está voltada para o bem universal e a realização espiritual. A śraddhā rājasika é manchada por nossa natureza material, expressando o fanatismo religioso e a busca por riquezas materiais. A śraddhā tāmasika se expressa na fé cega e supersticiosa, no ódio irracional e em práticas prejudiciais. A razão se ilumina por influência da śraddhā sāttvika, ou simplesmente śraddhā.

Nesse sentido, o conceito de śraddhā se alinha com a ideia de sintropia,  descrevendo processos que levam à ordem, à organização e à complexidade crescente. Śraddhā pode ser vista como uma força sintrópica que impulsiona o ser humano em direção à evolução, ao crescimento e à harmonia. As ações guiadas por śraddhā são sintonizadas com as leis do universo, promovendo a sustentabilidade, a cooperação e o bem-estar coletivo. Em um mundo cada vez mais interconectado, śraddhā se torna um princípio essencial para a construção de um futuro mais justo e sustentável.

A proposta de redefinir o ser humano com base em śraddhā implica uma mudança de paradigma profunda. É um convite para transcender a visão fragmentada e mecanicista do mundo e abraçar uma perspectiva holística e integradora. É um chamado para reconhecer a interconexão entre todos os seres e a responsabilidade que temos de cuidar do planeta e uns dos outros. Essa nova definição de ser humano nos convida a cultivar qualidades como compaixão, empatia, generosidade, sabedoria e coragem. É um convite para viver com propósito, autenticidade e coerência, buscando a realização do nosso potencial mais elevado, em harmonia com o universo.


Rio de Janeiro, 14.12.24
(Atualizado em 02.01.25)

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