2018-06-18

Gītā-Upadeśa: o ensinamento iniciático sobre a via luminosa do coração

A Arte e a Ciência da Meditação segundo a Bhagavad Gītā
Representação do Anāhata:
o coração espiritual, sede do Espírito.
Vi outro dia num portal a seguinte recomendação: “você deve seguir sempre o seu coração”. O portal também sugeria que o conceito de espiritualidade iria, no futuro, ocupar o espaço hoje reservado à “religião” do homem dividido: “Um dia os homens não terão mais rótulos religiosos. Ninguém se dirá católico, protestante, hindu, (...) ou qualquer outra coisa, porque a única identificação que trará consigo será o amor.”  Isto me fez pensar na ancestral técnica védica utilizada pelos Rishis (videntes) na elaboração de textos sagrados, conhecida como Ṛṣi-nyāsa e chamada de Noúres por Pietro Ubaldi. Ṛṣi-nyāsa expressa a capacidade de fazer de toda atividade uma Invocação da energia divina e sintrópica (brahma-śakti).  Esta energia aparece personificada no Ṛgveda como a deidade Śraddhā, que, no  épico Mahābhārata, é invocada em seu aspecto de Durgā (Invencível) por Arjuna, em conformidade com a orientação de Krishna. Como consequência e expressão de Ṛṣi-nyāsa nasce, então, o próprio diálogo da Bhagavad Gītā.


Representação da Gītopadeśa 
Bhagavad Gītā é a Escritura Sagrada que mais tem sido objeto de admiração e de espanto. O texto discute como podemos conciliar, em nome do bem-estar universal (loka-saṁgraha), o nosso engajamento no mundo (saṁsāra) com o ideal de alcançar a transcendência (nirvāṇa). Representa, provavelmente, a mais importante Escritura Sagrada sobre a arte e a ciência da meditação. Ilustra e antecipa a arte e a ciência da comunhão divina, que levaria à iluminação, sob a árvore Bodhi (ficus religiosa) em Bodh Gaya, o próprio Siddhārtha Gautama, o Senhor Buddha. Quando assim compreendido, o texto da Bhagavad Gītā revela a essência do seu ensinamento, conhecida como Gītā-Upadeśa1, ou melhor, Gītopadeśa (ver figura ao lado).

A Gītopadeśa revela a Bhagavad Gītā como expressão da metáfora da unificação dos dois pássaros descritos no Ṛigveda (1.164.20), na Muṇḍaka Upaniṣad (3.3.1) e na Māntrika Upaniṣad. Expressa como desenvolver o discernimento, ou a visão espiritual (Divyacakṣus), por meio da arte e da ciência da meditação. Retrata o Senhor Krishna e Arjuna sentados na quadriga puxada por quatro corcéis brancos. A quadriga representa o corpo humano (veja aqui uma ilustração de Gurdjieff). Arjuna, a consciência individual (o “si mesmo”, o ser individual, o jīva) condicionada pelo processo objetivo do mundo (saṁsāra), embora aspirando pela sua transcendência (nirvāṇa). Os corcéis correspondem à estrutura psicológica do indivíduo, em torno das suas faculdades de cognição, vontade, ação e síntese. As rédeas representam a mente emocional em sua relação com os referidos aspectos dos sentidos. A bandeira tremulando sobre o carro representa o intelecto, brilhando sob a égide da equanimidade. O quadrigueiro indica o estágio em que o Espírito (Krishna, Narāyaṇa), antes mera testemunha, passa a exercer o controle das  rédeas, ou da mente emocional (que tem jurisdição sobre os sentidos), para que esta, livre das obstruções da multiplicidade, possa dirigir o veículo corporal pelo caminho eterno e sem faltas, que conduz o ser individual (Arjuna, Nara) do saṁsāra ao nirvāṇa. Esta metáfora, conhecida como Gītopadeśa, representa a síntese, feita a partir de sete versos da Bhagavad  Gītā (conhecidos como Saptaślokī Gītā ou a Gītā de Sete Versos) de toda a essência da ciência da meditação. Em conjunto, estes versos, retirados do diálogo objetivo entre Krishna e Arjuna (respectivamente, os representantes da dimensão do sagrado, Narāyaṇa; e  do humano, Nara), quando entendidos como uma metáfora da amorosa e luminosa via do coração, nos conduzem aos silenciosos estados de meditação e êxtase, tal qual aquele experimentado pelo próprio Arjuna, no décimo primeiro capítulo do texto. Eis os versos da Gītopadeśa:
  1. Ó Arjuna, por que te dominou esta confusão, promovida pela falta de sensatez? Este transtorno é contrário ao “espiritual” e frustrará a elevada finalidade, impedindo-te de alcançar a beatitude. (BhG 2.2)
  2. Ó Descendente de Pṛthi! Não cedas à inação, isto não é digno de ti. Abandona esse opressivo desalento do coração e empreende a elevada ação, ó tu Conquistador (BhG 2.3).
  3. Afliges-te por aqueles que não merecem, no entanto, pronuncias palavras de sabedoria; os sábios não se lamentam pelos mortos, nem pelos vivos se regozijam (BhG 2.11). 
  4. Ó Arjuna, a Essência Sagrada reside no imo do coração de todos os seres, impulsionando-os na roda evolutiva por meio da sua energia (śakti; māyā) (18.61).
  5. Ó Bhārata (Arjuna), busca o seu refúgio sempre nela, a Universal Imanência. Pela sua graça, obterás a Suprema Paz e a Eterna Realização (18.62).
  6. Escuta o supremo conselho, revelador do profundo mistério sobre o sagrado; tu és eternamente amado por mim (o Ser, presente no coração), e como tal, intercedo pela tua felicidade (18.64).
  7. Renunciando a todos os dogmas e crenças externas (religiões) busca unicamente o Ser Interior. O “Ser Supremo” que reside no coração liberar-te-á de todo o mal. Não sucumbas oprimido pela tristeza (18.66).
Bhagavad Gītā é reconhecida como uma alegoria poética da luta interior que se passa no ser humano e ilustra, inclusive, a filosofia da ação política de Gandhi, fundada em torno dos conceitos de sātyagragha (o vigor do amor e da verdade em ação) e sarvodaya (o interesse pelo crescimento e bem-estar de todos). A base epistemológica da sua filosofia política somente pode ser compreendida a partir da  Bhagavad Gītā e deste entendimento sintético e também alegórico de que o corpo social e o corpo individual representam, na verdade, uma mesma realidade.

O entendimento de que espiritualidade representa algo que transcende a mera esfera religiosa é a marca característica da Gītopadeśa. O conceito de espiritualidade como o temos hoje é consequência da compreensão da validade sempre relativa de nossos modelos e visões de mundo. Como ilustração destas distintas visões de mundo que podem orientar um dado saber, tomemos, por exemplo, a medicina. No caso da medicina tradicional chinesa, o corpo não pode ser compreendido sem se levar em consideração a sua posição relativa ao restante do universo. A medicina chinesa apresenta um paradigma de natureza holística. Já a medicina ocidental é baseada numa visão cinética do corpo que privilegia os músculos e a noção de movimento mecânico, autônomo e independente do funcionamento do universo. De modo geral, pode-se dizer que a medicina oriental assume a interdependência das partes em relação ao todo como paradigma, enquanto a medicina ocidental afirma não existir esta relação. Isto não impediu, entretanto, o movimento evolutivo destas ciências, a partir da quebra parcial dos seus próprios paradigmas. Deste modo, não é de se estranhar que, nos últimos anos, a medicina ocidental passasse a reconhecer a importância da prece, da meditação e até mesmo da fé em Deus. A medicina ocidental já admite que os processos de cura não se baseiam, exclusivamente, em aspectos físico-químicos de metabolismo. Ela reconhece e incorpora, portanto, terapias associadas ao entendimento de que o corpo tem que ser compreendido a partir de sua relação com o seu meio-ambiente, tal como entendia a medicina chinesa desde a antiguidade.

Símbolos e alegorias constituem uma parte essencial da prática pedagógica e teológica da Índia e é isto o que torna difícil a sua compreensão pelos acadêmicos ocidentais, uma vez que estes têm dificuldades para lidar com elas. Em geral, eles identificam as interpretações alegóricas como resultantes de um método hermenêutico equivocado. Esta tendência está já presente, por exemplo, nos escritos de Emanuel Swedenborg, especialmente, em The True Christian Religion (1771).  A Gītopadeśa, de outro lado, expressa este entendimento de que não é a religião, mas o esforço em sublimar as más inclinações que nos conduz à salvação. Ela representa a elucidação do convite feito por Krishna a Arjuna na Bhagavad Gītā para que este supere a si mesmo e se deixe guiar pelo Espírito, presente em nosso coração. 
N O T A S

(1) Para conhecer a pronúncia das palavras sânscritas veja o nosso resumo do Guia de Transliteração e Pronúncia das palavras sânscritas.
(2) A convenção para a referência às obras da Codificação Espírita foi apresentada no texto: A Presença dos Ancestrais.

SUMÁRIO GERAL: A Arte e a Ciência da Meditação segundo a Bhagavad Gītā
Rio de Janeiro, 18 de junho de 2018.
(Atualizado em 28.08.22)

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