2016-10-13

Satya Tyāga: a arte de despertar para a consciência sintrópica

Na prática do Bhāvana procura-se externar o sentimento de unidade (Tudo é manifestação de Brahman) que decorre da meditação e se aperfeiçoa com ela.  O Bhāvana representa, portanto, o reconhecimento da presença, em todas as coisas, da Essência do Sagrado.
Esquema da ordenação do pensamento (cintā)
Satya Tyāga representa, tanto a renúncia (samnyāsa) de todas as coisas que impedem a consagração (tyāga) de si mesmo à Vontade Suprema, como a dedicação plena às verdades (satya) experimentadas nesta relação de aproximação à Consciência Sintrópica Universal.

Conforme exposto no puro e ancestral Śraddhā Yoga de que trata a Bhagavad Gītā1, devemos nos consagrar (tyāga), de coração, ao exercício de ver em cada minúscula ação uma oportunidade de disciplina interior (tapas), sacrifício (yajña), e doação (dāna) de si mesmo. Este puro yoga, que quita as três dívidas espirituais (débito com a esfera das deidades das quais herdamos a nossa própria identidade espiritual; débito com os sacerdotes, gurus, sábios e santos que nos deixaram como herança cultural o conhecimento espiritual; e débito com os nossos ancestrais, que possibilitaram o nosso nascimento neste mundo), funda-se nas cinco formas do pensamento sintrópico, derivadas de śraddhā (a bússola do processo de meditação): Saṃkalpa, Ṛṣi-nyāsa, Viniyoga, Satya Tyāga e Upasthāna. Esta base quíntupla de śraddhā, que expressa os cinco pilares do dharma, orienta a disciplina quíntupla do pensamento  (cintā; pronuncia-se “tchintaa”):
  1. Vibhūti-cintā, ou seja, a ideação e a percepção (cintā) das excelências (vibhūti) divinas que compõem o universo manifestado;
  2. Jñāna-cintā, a reflexão crítica e racional (cintā) sobre todo o conhecimento (jñāna) adquirido e testado na práxis do cotidiano;
  3. Saṃkalpa-cintā, lembrança constante (cintā)  das resoluções (saṃkalpas) tomadas, de uma vez por todas e para sempre  (Ananta he!);
  4. Karma-cintā, a reflexão (cintā) sobre o modo correto de atuar no mundo e o exercício (karma) constante para fazer de toda ação uma meditação na ação; e
  5. Brahma-cintā, o esforço de contemplação da ideação (cintā) da projeção parcial do infinito Brahman durante o processo sintrópico de manifestação do cosmos.
Vibhūti-cintā, expressa a lembrança constante de Satya Tyāga; Jñāna-cintā, a lembrança de  Upasthāna; Saṃkalpa-cintā, do Saṃkalpa; Karma-cintā, de Viniyoga; e Brahma-cintā, de Ṛṣi-nyāsa. O Mahābhārata procura ilustrar esta disciplina, associada aos cinco pilares do dharma (dhairya, prema, nyāya, samarpaṇa e jñāna) relacionando-a com as figuras arquetípicas do cinco príncipes Pāṇḍavas: 
  1. Yudhiṣṭhira simboliza a determinação, a coragem e a compostura (dhairya), característica dos saṃkalpas;
  2. Arjuna, o amor (prema), característico de Ṛṣi-nyāsa;
  3. Nakula, o método (nyāya), ou modelo, adaptado às circunstâncias, que caracteriza Viniyoga;
  4. Sahadeva, a rendição, ou entrega (samarpaṇa), que caracteriza Satya Tyāga; e
  5. Bhīma, o conhecimento prático envolvido na decisão de agir (jñāna), que caracteriza Upasthāna.
Não é difícil perceber como esta base quíntupla do Śraddhā Yoga está contemplada na disciplina tripla do Śuddha Rāja Yoga:
  1. Bhāvana (a escuta do Ser; a ideação, ou estado contemplativo, em que a mente se encontra ativa, com atenção plena na unidade que fundamenta o processo de vir-a-ser do mundo);
  2. Karma (a meditação na ação e o esforço em direção à reta conduta); e
  3. Dhyāna (meditação, ou estado contemplativo em que a mente se encontra imóvel, absorta na luminosa experiência do sagrado, manifestada pelo ardor do fogo do coração, ou śraddhā).
A prática do Bhāvana abarca as duas primeiras cintās: Vibhūti-cintā e Jñāna-cintā. A prática de Karma está representada nas duas cintās seguintes: Saṃkalpa-cintā e Karma-cintā. E a prática de Dhyāna está representada na Brahma-cintā. "Bhāvana" (ideação; escuta) sugere o cultivo da mente para a compreensão da sua natureza e relação com o cosmos. "Dhyāna" (meditação) é indicativa de um estado fixo em que a mente se encontra absorta e imóvel, iluminada e apenas refletindo, ou irradiando, a luz pura do Espírito presente em nós e feito à imagem e semelhança do Supremo Espírito. Bhāvana, Karma e Dhyāna estão sintetizados no Dhyāna Mantra que, conforme vimos  anteriormente, transforma toda e qualquer ação em uma meditação na ação.

Bhāvana

A Atenção Plena pode ser definida como a capacidade de manter a mente sob a luz do coração, de modo a reconhecer a presença do sagrado em tudo o que a vida nos oferece em cada novo instante, possibilitando-nos aceitar com gratidão, bem como enfrentar com confiança e destemor, todos os desafios que a vida nos apresenta. Ela nos conduz à perfeita alegria, à percepção amorosa da unidade do mundo e de todas as coisas (Bhāvana) e, consequentemente, à dedicação (Namaḥ) de todo o nosso ser ao desvelar do sagrado no mundo. Bhāvana Namaḥ representa esta alegria, consciência e compromisso de rendição.

Karma

Śaṭkarma: os Seis Deveres do Śuddha Yogi
Śaṭkarma, os seis deveres do Śuddha Yogi, descritos no quadro ao lado e já discutidos anteriormente, ilustram o que se deve entender pela disciplina da meditação na ação, conhecida como Karma e simbolizada no śuddha prāṇāyāma: inspirar (pūraka), apreender (kumbhaka) e exalar (rechaka) o sagrado. O processo da respiração conota o ato de nascer, viver e morrer em Deus. A respiração simboliza a Trimūrti da tradição védica (ou seja, as três manifestações da Suprema Consciência Sintrópica – (Brahmā, Viṣṇu, e Śiva) e as suas respectivas funções cósmicas de criação, preservação e desintegração da multiplicidade.

Aprender a nascer para a consciência sintrópica, viver com esta consciência e morrer nela representa a quintessência da disciplina da ação, contida no śuddha prāṇāyāma. Renunciar (saṃnyāsa) ao ser  para vir-a-ser e realizar a entrega (tyāga) de todo o vir-a-ser para Ser. Nascer (inspirar) e morrer (expirar) em cada respiração. É somente esta a disciplina da ação: tornar-se, em cada respiração, uma expressão mais perfeita e bem acabada do sagrado. Cada respiração realizada com a consciência do sagrado e equilíbrio sintrópico de todas as coisas revela, em si mesma, uma parte do Śraddhā Yoga, ou seja, da arte e da ciência da meditação. Ao refletir a luz pura da Suprema Consciência Sintrópica, o puro (śuddha) prāṇāyāma faz da mente o lago tranquilo de onde surgem as intuições superiores. Deste modo, regulando-se a respiração a partir do coração oferece-se o campo para o surgimento de sentimentos que merecem ser cultivados pela mente, sem perturbar o desabrochar natural do fluxo ascendente da kuṇḍalinī, a energia vital, que, sob a forma de śraddhā, conduz à iluminação.

Dhyāna

A Śuddha Dhyāna expressa a meditação que se inicia pura e silenciosa no recolhimento das madrugadas e se prolonga pelo dia como expressão de uma contínua meditação na ação, com atenção plena e foco no sagrado de cada minúscula experiência que a vida nos reserva. Ela está sugerida, de forma implícita, na maioria das Escrituras Sagradas, constituindo-se como o segredo último contido nos Evangelhos, na Torá hebraica, no Corão, nos Jātakas e outros textos do budismona via sagrada do Tao, nos Yoga Sūtra, na Bhagavad Gītā e também em vários textos e rituais, tanto de nossos ancestrais como das mais distintas culturas e tradições.

Satya Tyāga como expressão de bhāvana, karma e dhyāna

Em suma, Satya Tyāga, funda-se no bhāvana, a percepção amorosa da unidade do mundo e de todas as coisas, em karma, entendido como a ação que nasce do śuddha prāṇāyāma, e em dhyāna, a meditação pura que se inicia no silêncio da madrugada e se prolonga ao longo dia. Satya Tyāga simboliza aquele estágio em que a mente passa a se orientar pela atitude pessoal de consagração (tyāga) ao sagrado de todas as coisas, que experimentamos pelo coração.

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(1) Para conhecer a pronúncia das palavras sânscritas veja o nosso resumo do Guia de Transliteração e Pronúncia das palavras sânscritas.


SUMÁRIO GERAL

Rio de Janeiro, 13 de outubro de 2016
(Atualizado em 21.01.25.)

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