2019-01-21

Movimentos de Convergência: (8) Carlos Castaneda e Philip K. Dick

A influência do pensamento oriental foi muito profunda na contraculturaLuiz Carlos Maciel, como ele próprio afirma (veja aqui), apreciava o vedānta não dualista de Shânkara, o budismo mahayana de Nagarjuna, o taoísmo chinês (na formulação de Lao-Tzu e Chuang-Tzu) e o zen budismo.

Alan Watts afirma que, para o ocidental, a verdade necessita ser formulada pelo pensamento e expressa pela linguagem, enquanto no oriente ela tem uma via completamente diferente: a verdade necessita ser experimentada. Não faz sentido para o oriental afirmar, “a verdade objetiva é que”. Seria o equivalente a se dizer: “a saúde objetiva é que”. Ora, a saúde é um estado do corpo, do mesmo modo que a verdade é um estado do espírito. Para Alan Watts, a verdade é para ser experimentada e não formulada pelo discurso, como pretendia o projeto de Heidegger.

O pensamento oriental funda-se na verdade não dualista, onde imanência e transcendência aparecem como uma coisa só. E isto não é algo para ser explicado, mas experimentado como um sentimento de comunhão com o sagrado (śraddhā), um sentimento de unidade decorrente das práticas de contemplação (bhāvanā), parte da mesma heurística utilizada pelos grandes sábios (Ṛṣi-s) para chegarem às revelações divinas e construírem as suas visões de mundo (Ṛṣi-nyāsa). Esta busca fundamental marcou, profundamente, a contracultura, que recorreu à magia e a toda a sorte de recursos para alcançar o poder de manipulação da realidade ôntica, ou seja, da experiência subjetiva, sensorial da realidade. Nesse sentido, a principal referência de Maciel foi a obra de Carlos Castaneda, que descreve os ensinamentos do seu mestre, Don Juan Matus.
Carlos era estudante de antropologia na Universidade da Califórnia. Durante a pesquisa de sua tese de mestrado sobre plantas medicinais conheceu um velho índio, Don Juan, um xamã. Ele olhou para Carlos e o tomou como discípulo. Don Juan transmitiu a ele um conhecimento que, supostamente, teria vindo da civilização tolteca, chegando até nossos dias por meio de uma tradição oral de pequenos grupos de adeptos, que chamavam a si próprios de guerreiros.
A função de Don Juan era transformar Carlos em um guerreiro, levando-o a experimentar a realidade mágica. E isto sequer dependia da vontade própria de Carlos, pois na tradição tolteca ninguém pode, por iniciativa e vontade próprias, tornar-se um guerreiro. Um guerreiro é obrigado a se tornar um guerreiro. O caminho do guerreiro é um caminho de libertação acessível a um número muito reduzido de escolhidos. Carlos, segundo ele próprio, era um deles. Os seus críticos, como Richard Neville, por exemplo, afirmam que os livros de Castaneda são livros de ficção. Neville descobriu que Carlos fazia antropologia durante o dia, mas pela noite tinha aulas de “creative writing”, ou seja, de escrita criativa para romancistas. Carlos, contudo, diz que, sem os ensinamentos de D. Juan, jamais conseguiria produzir um texto com o conhecimento que demonstra possuir nos relatos de suas experiências.
Os livros de Castaneda dividem-se em várias etapas. Na primeira etapa, correspondente aos seus dois primeiros livros, o mestre Don Juan procura destruir a sua visão de mundo, regulada pelas categorias de sujeito e objeto. Para quebrar esses condicionamentos, D. Juan emprega as chamadas plantas de poder, as plantas alucinógenas. Numa segunda etapa, nos dois livros seguintes, Don Juan dá instruções específicas para Carlos tornar-se um guerreiro. Duas destas instruções, que Maciel considera essenciais, são táticas para a destruição do ego: o discípulo necessita (1) perder a importância própria e (2) apagar a sua história pessoal. Quem se acha importante é o ego, então é compreensível que se deva perder a importância própria. Agora, destruição da história pessoal envolve a dissolução da própria identidade do indivíduo, que deve renunciar a si mesmo. O guerreiro precisa se desligar dos familiares e do mundo em que ele vive. O guerreiro não tem nada, só a vida para ser vivida e a sua loucura controlada. Neste mundo somos todos loucos e só quem tem o controle da própria loucura é o guerreiro. A principal técnica para se controlar a loucura é a arte da espreita. O guerreiro tem que ser como o caçador que espreita a presa. Deve renunciar às rotinas diárias, características da presa, não do predador. 
Uma história para ilustrar a arte da espreita, não presente nos livros de Castaneda, encontra-se numa entrevista que ele concedeu para uma revista. Nela Castaneda fala do lugar da impiedade. O guerreiro necessita ir para o lugar da impiedade e tornar-se impiedoso. Parece algo estranho, principalmente quando se pensa no sentimento de compaixão, presente em quase todas as tradições religiosas. Entretanto, segundo Don Juan, a piedade só mascara a autopiedade, a autoindulgência. E a autoindulgência é a primeira coisa que o guerreiro deve abandonar. A história é a seguinte: Carlos recebe de D. Juan a missão de realizar uma espreita, vivendo por um ano como dono de um restaurante à beira de uma estrada que leva para Los Angeles.  A espreita consiste em ser o que for apropriado ser, passando-se por qualquer um. Enquanto está no restaurante cumprindo a espreita, um dia aparece uma jovem hippie, doente, suja e que necessita de cuidados. Carlos acolhe a jovem e cuida dela por um tempo. Ela então revela que viera da costa leste, de Nova Iorque, pela estrada, até a costa oeste, porque quer chegar em Los Angeles para realizar o seu sonho: conhecer Carlos Castaneda. Ele, contudo, está realizando uma espreita e não pode dizer para a jovem que é Carlos Castaneda. Após cuidar dela, Castaneda a aconselha que retorne para casa e deixe de lado essa loucura de querer encontrar Carlos Castaneda. A jovem acata o conselho e chora porque perdera as esperanças de encontrar Carlos Castaneda. Nesse momento, Carlos disse ter sentido um impulso de se revelar, mas não podia fazer isto, uma vez que estava praticando a arte da espreita. Estava no lugar da impiedade e não poderia se apiedar da jovem. Esta ilustração da espreita, não presente em seus livros, mostra um Castaneda menos ingênuo e mais parecido com o próprio Don Juan. O aprendizado de Carlos como guerreiro dura treze anos (1960 - 1973) e termina com um salto no abismo. Como se estivesse em um sonho, Carlos salta no abismo e, num passe de mágica, acorda em sua cama em Los Angeles.
Segundo Castaneda toda a realidade aparente resulta de uma determinada focalização da consciência. Na nossa percepção do mundo pelos sentidos, a consciência está focalizada no que Don Juan chama de a primeira atenção. A realidade em si é infinita e indeterminada, mas é o nosso foco em determinados aspectos desta realidade que desenha o mundo que passamos a experimentar. Don Juan comenta que o homem deve ter passado milênios até alcançar a primeira atenção, transmitida de geração a geração por meio da educação e da cultura. As crianças, aos poucos, desenvolvem a linguagem e a focalização da primeira atenção. Toda a vez que a criança diz que viu uma coisa que não faz parte da primeira atenção, por exemplo, uma fada, os pais a corrigem, dizendo que fadas não existem. Deste modo, o acesso a outras formas de focalização da realidade são inibidos para que a criança desenvolva plenamente a primeira atenção. Assim, a partir de uma determinada idade, a focalização da primeira atenção estará totalmente cristalizada.

O que cabe, portanto, ao guerreiro realizar? Ele precisa aprender a focalizar a sua atenção em outros aspectos da realidade infinita. A instrução para desenvolver o guerreiro corresponde a esta arte de alcançar uma segunda focalização, que corresponde à arte de sonhar. Existem infinitas variações de focalização, mas Don Juan vale-se destas duas focalizações: a primeira atenção, chamada tonal; e a segunda, nagual. O nagual designa a realidade da segunda atenção, uma realidade infinita, desenvolvida durante o sonho. Ao adormecermos, a focalização da primeira atenção se afrouxa e desaparece. A capacidade de focalizar a atenção fica livre para agir de outra maneira.
Don Juan ensina a Castaneda várias técnicas que devem ser utilizadas durante os sonhos. Por exemplo: (1) olhar as mãos até que elas comecem a se desmanchar; em seguida (2) olhar para o objeto a nossa frente até que ele comece a se desmanchar; e (3) retornar o olhar para as mãos. Esta e muitas outras técnicas procuram adestrar o discípulo a focalizar a segunda atenção, característica do estado de sonho. Trata-se de uma atenção em que tudo é permitido e os seus desejos ficam no comando. Pode-se voar, viajar instantaneamente de um lugar a outro, e assim por diante.
Maciel descreve um sonho lúcido que teve com Carlos Castaneda. Deu-se conta de que estava na segunda atenção e pensou: posso focalizar a minha atenção onde eu desejar; então, quero estar com Carlos Castaneda. Nesse exato instante, Castaneda apareceu ao seu lado e o levou para uma reunião de xamãs. Tudo, obviamente, na segunda atenção. Quando o guerreiro torna-se um mestre da segunda atenção, do nagual, ele se move nesta realidade como bem entender.
Todo o guerreiro deve se adestrar na arte da espreita para agir na primeira atenção; e na arte de sonhar, para agir na segunda atenção. O salto de Castaneda sobre o abismo, mencionado acima, consiste nisto. Segundo Castaneda afirma, quando salta no abismo, está na primeira atenção; mas já adestrado para uma posição de segunda atenção. Por isto, acorda em sua cama, magicamente, em Los Angeles.
Um outro ponto importante na formação do pensamento de Maciel, mas que não está presente em Castaneda é a questão do Tempo. Maciel encontra em Philip K. Dick, um autor originariamente de ficção científica sob o prisma filosófico, esta reflexão sobre o Tempo. Maciel compreendera do budismo que passado e futuro não existem. O que existe é a memória, relacionada ao passado; e a imaginação, relacionada ao futuro. O presente é o momento indefinido, inextenso. O presente corresponde a um mero ponto entre o passado e o futuro, que é o presente. E o presente é o Ser! Vivemos em uma realidade em que o Ser está presente, mas é praticamente inacessível. Nagarjuna, o grande filósofo budista, fala sobre isto. O instante presente não tem extensão e, no entanto, esse Nada é o Um que é o Tudo! Estamos na constante presença do Um, o Tudo, mas sem perceber. Só percebemos a ilusão, a passagem do tempo: a ilusão do futuro, a imaginação; e a ilusão do passado, a memória. E a memória do passado é sempre infectada por alguma imaginação, que interfere na realidade dos fatos lembrados. Do mesmo modo, a imaginação do futuro também se dá infectada pelas memórias que carregamos e que se projetam nesse futuro. Deste modo, experimentamos como realidade uma espécie de continuidade entre passado e futuro, que não leva em conta o verdadeiro instante presente.
Passado e futuro são ilusórios, são maya. A realidade está no meio de ambos. Ela existe como o presente, que é o Ser. Sem este presente absoluto e inextenso, que é o Ser, não existiria nem imaginação, nem memória. A meditação consiste em realizar o desafio de chegar ao Ser. Por isto, durante as práticas de meditação, percebemos que a nossa mente fica sempre oscilando, com pensamentos que nos remetem, ou ao passado, como memória, ou ao futuro, pela imaginação. Manter o foco no Ser é difícil, pois corresponde a um ponto inextenso. Todo o esforço da meditação é nesse sentido. Para ilustrar a realidade deste presente, Maciel gosta de contar uma estória do zen budismo. O discípulo chega para o mestre zen e diz: mestre, descobri que tudo é ilusão! O mestre dá um tabefe no rosto do discípulo e pergunta: e isto, o que é, idiota? O momento do tabefe, aquele bilionésimo de segundo, é real e representa o Ser.
A grande descoberta de Philip K. Dick é que o futuro e o passado são contemporâneos a este presente ontológico. Ele escrevia cenas em seus romances que depois parecia viver na vida real, como se a sua memória do futuro as tivessem revelado. Esta curiosidade aparece no título de sua biografia: A Vida de Philip K. Dick: o homem que lembrava do futuro. Certa vez, Philip K. Dick teve uma experiência em que se viu como um cristão primitivo, seguidor de uma seita gnóstica. A partir daí ele intuiu a existência de um tempo ortogonal, perpendicular à linha do tempo, onde se armazenariam todos os acontecimentos passados e futuros. Não como um mero registro akáshico, mas como o somatório dos fatos eles mesmos. Isto equivale a dizer que tudo sempre esteve aí. Não teria havido criação. Tudo sempre foi. O Ser não ocorreu, o Ser ocorre, eternamente. E a eternidade, para Philip K. Dick, não é estática, é infinitamente dinâmica e repleta de mundos inconcebíveis, mas que existem no Ser. Esse conceito de tempo ortogonal de Philip K. Dick ajudou Maciel a deixar para trás certos aspectos do budismo que o incomodavam. Maciel não conseguia aceitar plenamente a visão budista de que (1) o passado perde a sua realidade para sempre; (2) o futuro é pura imaginação, refletindo apenas o que ainda não existe; e (3) o presente é apenas esse instante fugaz. Diferentemente do budismo, Philip K. Dick considera que fica tudo armazenado. Esta reflexão sobre o tempo satisfez Maciel, completando a sua visão de mundo.
Dentro da moldura epistemológica destes quatro pensadores -- Heidegger, O. Brown, Castaneda e K. Dick, Maciel forma o quadro que explica a sua visão contracultural da realidade. Dá-se conta, plenamente, de que todos somos indeterminados e, portanto, livres para escolher. Compete a cada um a responsabilidade sartreana de optar pelo que nos aproxima da consciência crística, búdica, ou como se queira chamar esta consciência ontológica, que ocupa o pensamento de Heidegger. Enquanto esta consciência não se estabelece, segue-se vivendo no tempo linear de causa e efeito, com as ilusões do futuro e do passado, como se elas constituíssem a realidade.
Maciel compreende, em suma, a natureza do tempo e o sentido de se afirmar que o Ser é Absoluto. Daí ele ter passado a meditar em seus últimos anos sobre a natureza do Tempo e do próprio Espaço. O Tempo seria uma das dimensões do Espaço Infinito. Como dizia Dom Juan há infinito em todas as direções. Por isto, no momento que Carlos pergunta a Don Juan "mas quem é você Don Juan, para me dizer estas coisas?", Don Juan responde: "Eu sou tudo isso. Como poderei dizer a você quem eu sou?"

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