Saudação (vandanam) aos mestres (Ācāryas) das distintas tradições culturais (paramparā)
अस्मत् गुरुभ्यो नमः।
Asmat gurubhyo namaḥ.
अस्मत् परमगुरुभ्यो नमः।
Asmat parama-gurubhyo namaḥ.
अस्मत् सर्वगुरुभ्यो नमः॥
Asmat sarva-gurubhyo namaḥ.
Saudações aos mestres,
Saudações aos mestres dos mestres,
Saudações a todos os mestres.
I. O que é o “Manifesto Śuddha” ?
O Manifesto Śuddha é um conjunto de cinco sūtras atribuídos ao sábio Bhagavān Nārada, que apresenta a Bhagavad Gītā como uma escritura universal, desvinculada de qualquer sampradāya (tradição sectária). Para os śuddha yogis, a Bhagavad Gītā é a ciência da síntese entre sabedoria (jñāna), devoção (bhakti/icchā) e ação (karma), unificadas pela śraddhā — sentimento sintrópico que transcende os rituais, as castas e o exclusivismo religioso. A linhagem associada a Haṃsa Yogi recupera essa perspectiva, propondo o jñāna-karma-samuccaya-vāda como chave hermenêutica da obra.
II. O Manifesto Śuddha:
A Tradição dos Śuddha Yogis e o Caminho Sintrópico da Bhagavad Gītā
Pouco conhecido fora dos círculos teosóficos e das escolas indianas mais esotéricas, o Manifesto Śuddha, atribuído ao sábio Bhagavān Nārada, é uma das mais belas e radicais proposições sobre espiritualidade universalista já registradas. Este texto convida o leitor a mergulhar na tradição dos śuddha yogis, herdeiros de um saber silencioso e compassivo, cujas raízes se afirmam além das castas, das escolas, das ortodoxias.
Esta linhagem de mestres espirituais é muito peculiar e pouco conhecida, quase oculta. A sua atuação sutil se fez gradualmente mais presente a partir de 1785, com a chegada da Bhagavad Gītā ao Ocidente, na tradução ao inglês de Charles Wilkins. À luz dessa tradição, a Bhagavad Gītā ressurge como uma escritura viva, livre e plenamente humana — veículo de uma espiritualidade sintrópica que transcende o sectarismo e aponta para um dharma puro, ou śuddha dharma.
A linhagem tornou-se acessível ao Ocidente no início do século XX, quando figuras como Subramanyānanda e Paṇḍit Srinivasācharyar teriam recebido autorização para a criação do Śuddha Dharma Mandalam, cujo propósito era tornar pública a doutrina śuddha baseada na Bhagavad Gītā. Em 1917, Sri Vajera, toma ciência da referida organização e solicita a sua filiação, tornando-se o seu segundo membro latino. Logo torna-se presidente da Seção Chilena do Mandalam, quando tem a oportunidade de introduzir e difundir as práticas de meditaçào por toda a América Latina.
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O "Manifesto Śuddha” no Upodhgāta |
O pouco conhecido “Manifesto Śuddha”, do preceptor espiritual Bhagavān Nārada (Sanātana Dharma Sūtras, p. 64; e "Upodhgāta" da Bhāṣyopetā, p. 72), introduzido no capítulo anterior, explicita o caráter universal e não sectário dos ensinamentos desta linhagem de Śuddha Yogis, precursora da espiritualidade universalista e da nascente cultura sintrópica, ponto de encontro e intersecção entre as distintas manifestações culturais e religiosas, e objeto da mensagem de Krishna na Bhagavad Gītā. Como veremos a seguir, este manifesto sugere uma interpretação profunda e única da Bhagavad Gītā, destacando a síntese entre a via da ação (karma-mārga) e a via do conhecimento (jñāna-mārga), proposta como jñāna-karma-samuccaya-vāda. Essa abordagem desafia as hierarquias tradicionais das castas na Índia e a autoridade exclusiva da tradição de mestres e discípulos das religiões de origem indiana, conhecida como guru-śiṣya paramparā. Ei-lo:
1. ājanmā'maraṇaṁ yacca śāstraṁ vai manujānpunaḥ.
yathādeśaṁ yathākālaṁ yathāvasthaṁ ca śikṣayet.
Aquela Ciência Sagrada que deve ser disponibilizada para todas as pessoas desde o nascimento até a morte, de acordo com as vicissitudes de lugar, tempo e circunstâncias.
2. dharmaṁ sanātanaṁ śuddhaṁ prathyakṣaṁ sārvalaukikam.
samabhāvaikya-phaladam-ihā'mutra ca śaṅkaram.
Cujo princípio regente (dharma) é eterno (sanātana), puro (śuddha), realizável, universal, frutífero e auspicioso, aqui, agora, e sempre, outorgando a suprema paz da fraternidade.
3. taddhi śāstraṁ mahātmāno gītetyāhurvicakṣaṇāḥ.
na vaiṣṇavam-idam śāstraṁ na śaktaṁ na ca śāṁbhavam.
É aclamada pelos Mahatmas como a ciência de que trata a Bhagavad Gītā [a Ciência da Meditação]. Esta Ciência Sagrada não é exclusivamente vaishnava, nem shakta, nem shambava*.
4. na bauddhaṁ na ca kāṇādaṁ na sāmkhyaṁ na ca yaugikam.
na tantraṁ naiva vedāntaṁ viśeṣasamayaṁ na Ca.
Nem budista, kāṇāda, sāṃkhya, ou ióguica, nem tantra, vedānta, ou qualquer outro credo em particular.
5. śuddhaṁ ca tadidaṁ śāstraṁ stuvanti pūrvasūriṇaḥ|
tasmātsaṁsāribhirnityaṁ saṁsevyaṁ tadidaṁ bhuvi||
Os antigos Videntes exaltam esta Ciência Sagrada como śuddha, ou seja, universalista e pura. Portanto, ela pode ser cultivada e praticada por todos aqueles que almejam a libertação do ciclo de nascimento e morte. (Bhagavān Nārada)
(*) Śiva é conhecido como Śāṃbhu (aquele que existe como felicidade e bem-estar); sua esposa, Śāṃbhavī. Os devotos de Śiva são chamados śambhavās.
Esta linhagem śuddha entende que a Bhagavad Gītā transcende o ponto de vista tradicional, subssumido na expressão "guru śiṣya paramparā", utilizada para qualificar a sucessão ininterrupta (paramparā) de transmissão do conhecimento, de mestre (guru) a discípulo (śiṣya), no hinduísmo, budismo e janismo. Segundo as diversas linhagens da matriz védica, as textualidades Śruti (literalmente "aquilo que é ouvido" - ou seja, o conjunto das Escrituras Sagradas, aquilo que foi revelado) e Smṛti ("aquilo que é lembrado" - o conjunto de textos que refletem sobre as Escrituras), como a Bhagavad Gītā, falam apenas àqueles que já se encontram iniciados por algum mestre em alguma sādhana (disciplina, ou caminho, espiritual). Nas Upaniṣades, em especial, o conhecimento não é transmitido de forma indiscriminada. Ele é secreto (rahasya), transmitido de forma oral, ou seja, como śabda-pramāṇa (testemunho oral). Deste modo, o seu alcance está delimitado pela relação próxima e intimista entre mestre e discípulo. Para se compreender o ensinamento das Upaniṣades necessitava-se de uma chave hermenêutica, que somente o mestre poderia oferecer. Para a linhagem śuddha, contudo, o texto da Bhagavad Gītā introduz a relação "mestre-discípulo" (guru śiṣya) de forma independente, entre dois príncipes, sem nenhum vínculo obrigatório com qualquer tradição religiosa.
Os śuddha yogis entendem que Krishna não representa uma tradição (sampradāya) em particular e que Arjuna, do mesmo modo, não se filia a nenhum grupo religioso, responsável por “iniciar” os discípulos nos segredos das Escrituras. O conhecimento transmitido por Krishna não necessita de "defensores". Ele se propaga de forma natural e, por isto, teve continuidade, não por intermédio de Arjuna, mas da reportagem de Sañjaya, o narrador daquele diálogo que estava se passavando no campo de batalha e que constitui o episódio da Bhagavad Gītā. Para os śuddha yogis, o que diferencia a Bhagavad Gītā das distintas Escrituras Sagradas (Śruti) que a antecederam é o fato dela romper com a ideia religiosa de exclusividade, característica da tradição guru śiṣya paramparā. A superação deste paradigma é personificada em Krishna, que ressignifica a tradição de então, professando uma espécie de espiritualidade que o ocidente vai batizar em meados do século XX de “neo-Vedānta”, uma vez que ela transcende as fronteiras culturais e de casta estabelecidas pelas distintas tradições religiosas da própria Índia. Isto quer dizer que o ocidente se mostra receptivo e apto para compreender a essência da mensagem de Krishna, sem carecer da necessidade de recorrer às interpretações de matriz indiana, que procuram subsumir o texto à sua própria tradição religiosa. É por isto que a linhagem dos Śuddha Yogis não tem referência, nem está vinculada, exclusivamente, a qualquer escola confessional. Ela entende que a superação da crise de Arjuna ao longo do diálogo da Bhagavad Gītā demonstra esta ressignificação espiritualista das distintas culturas religiosas. Decorre daí, em grande parte, o status de universalidade que o texto da Bhagavad Gītā goza no mundo ocidental.
III. A atuação silenciosa e discreta dos Śuddha Ācāryas
A expressão “śuddha yoga” (práxis sintrópica), que define a disciplina dos śuddha yogis, ressurge no final do século XIX. Segundo se afirma, ela seria oriunda da Śrī Bhagavadgītā Bhāṣyopetā, de Haṃsa Yogi, também chamada de Gītā Bhāṣya de Haṃsa Yogi, que é parte da serie de comentários conhecida como Khaṇḍa Rahasya (Seção Secreta), revelada ao ocidente pelo misterioso Paṇḍit Dhanaraj. Ele teria ditado, de memória, os principais textos śuddhas a um grupo de colaboradores, incumbidos de torná-los de conhecimento público. Babu Bhagavān Das (1869 - 1958), por exemplo, ofereceu uma tradução parcial para o inglês em 1910 do antiquíssimo Praṇava* Vāda, de Ṛṣi Gārgāyana. O texto oferece um tratamento do pensamento védico sobre este prisma universalista. A obra de Gārgāyana, citada em inúmeras escrituras antigas e que, aparentemente, havia se perdido, teria permanecido sob a guarda desta linhagem de śuddha yogis. Ali se encontra uma discussão até mesmo sobre a evolução das espécies; do reino mineral para o vegetal, onde a sintropia se manifesta; e do vegetal para o animal e o humano, onde entropia e sintropia operam de forma convergente e harmônica.
Bhagavān Das e seus contemporâneos desempenharam papel crucial na tradução e divulgação dos textos śuddhas, como o Praṇava Vāda, que explicita a dimensão universalista e sintropicamente estruturada da tradição espiritual que ora se apresenta.
O Primeiro Volume do Praṇava Vāda, de Ṛṣi Gargyayana, foi publicado em sânscrito em Madras, em dezembro de 1915, pelo Paṇḍit K. T. Sreenivasachariar, numa edição conjunta com o Praṇava Vādārtha Dīpikā (Luz sobre o Significado do Praṇava Vāda) de autoria do misterioso Swami Yogananda. O texto traz ainda uma apresentação do Dr. Sir. S. Subramania Iyer (1842 - 1924), um prefácio do Paṇḍit K. T. Sreenivasachariar e uma Epístola do Swami Yogananda. Pouco se sabe do Swami Yogananda, a não ser do seu grande contentamento ao tomar conhecimento da publicação do Praṇava Vāda – texto que utilizara ao longo de sua vida na instrução dos seus discípulos. Swami Yogananda seria um admirador do Praṇava Vāda e de outros três textos do mesmo autor – Lokadarpaṇa, Praṇavabhodha e Praṇavasāra –, em posse exclusiva dos śuddha yogis da seção esotérica do Śuddha Dharma Maṇḍalam e inacessíveis, portanto, ao próprio Dr. Sir. S. Subramania Iyer e seus colaboradores da organização externa de mesmo nome. O aval, manifestado na epístola do Swami Yogananda, bem como o seu comentário sobre o Praṇava Vāda, Praṇava Vādārtha Dīpikā, deixam isto bastante claro.
IV. O misterioso Paṇḍit Dhanaraj segundo Babu Bhagavān Das
Segundo Bhagavān Das, o Paṇḍit Dhanaraj teria nascido por volta de 1873 d.C. na vila de Belhar Kalan, em Menhdawal Tahsil Khalilabad, Distrito Basti, nas Províncias Unidas de Agra e Oudh. Oriundo de uma família de gramáticos, teria sido um estudioso com um talento incrível para memorizar obras completas e muitos textos originais em sânscrito. Diz-se que, quando tinha sete ou oito anos de idade, já memorizava centenas de ślokas em um único dia. Aos vinte anos, ele já carregaria em sua memória um volume de informações equivalente a trinta Mahābhāratas. Ele seria filho de Nepal Mishra e neto de Hargovinda Mishra, que costumava receber a visita de muitos ascetas errantes. Completamente cego desde os três anos de idade, em função da varíola, viveu como um asceta errante a última parte do século XIX e o início do século XX. Torna-se asceta a convite de um dos ascetas que visitara o seu avô e se impressionara com os seus talentos, aconselhando-o a estudar os textos Maheshvariya Vyakarana, juntamente com o Naradiya Bhasha, sob a orientação de certos paṇḍitas śuddhas, que não se deixavam mostrar tão facilmente. Seguindo as pistas do asceta, Dhanaraja deu início à sua jornada, avançando de aldeia em aldeia, enquanto recebia de cada Paṇḍit alguns ensinamentos e as instruções para buscar o próximo Paṇḍit daquela fraternidade śuddha. Teria vagueado assim por quase dez anos, tempo que teria dedicado à memorizar centenas de obras, perfazendo milhões de ślokas (cada verso do tipo śloka é composto de 32 sílabas).
Bhagavān Das foi também, ele próprio, um extraordinário aderente ao śuddha yoga. Bhagavān Das dedicou a sua vida a lecionar e pesquisar sobre a essência do sagrado (śuddha dharma) de que tratam as obras de Haṃsa Yogi. Em seu pequeno livrinho Studies in the Bhagavad Gîtâ by the Dreamer: The Yoga of Discrimination (London, Theosophical Publishing Society, 1902), este grande mestre e precursor do Śuddha Dharma Mandalam, apresenta-se no título como ninguém menos que "The Dreamer" (O Senhor dos Sonhos), o personagem que aparece no misterioso e pouco conhecido manuscrito de Dr. R. V. Khedkar, The Dream Problem (Delhi: Practical Medicine, 1922), onde ele próprio também se manifesta como um interlocutor. Em essência, este livro trata de uma pessoa que entra conscientemente no estado de sonho e lá encontra vários sábios, dentre eles, Vasishta, com quem discute os conceitos de realidade, estado de vigília, de sonho, sono profundo e transcendência. Se este mundo se torna irreal para quem alcança a iluminação, quem nos garante que o próprio estado de iluminação não é apenas um outro tipo de sonho em relação a um estado de ser ainda mais elevado? Ao se mudar para os EUA pode explorar a Bhagavad Gītā como a Escritura Sagrada que trata da unidade essencial de todas as religiões, como se vê em seu seminal Essential Unity of All Religions (Benares, 1932). Bhagavān Das reflete no texto sobre o śuddha dharma, descrito no Praṇava Vāda, e trata do núcleo comum que caracteriza a essência de todas as religiões: a correlação entre o Ser, que é espiritual e sintrópico, com o não-Ser, material e entrópico. Trata, nesta mesma obra, detalhadamente, da Educação e do papel do Educador. Para a tradição que ele ajudou a revelar ao mundo, o diferencial da Bhagavad Gītā em relação aos demais textos dos distintos darśanas é o fato dela não estruturar e engessar o ancestral yoga (reintroduzido por Krishna), em sistemas e diferentes escolas, cada uma delas com os seus próprios e rígidos Sūtras, ou sistematizações mais ou menos normativas e sectárias. A Bhagavad Gītā, pelo contrário, perpassa todos esses sistemas de pensamento, mas não pertence, exclusivamente, a nenhum deles. Esta é marca característica desta Escritura. Em The Science of Peace (1904), Bhagavān Das reproduz a explicação do Praṇava Vāda a respeito do significado mais profundo das três letras constituintes do Praṇava AUM (“A” indicaria o Ser; “U”, o não-Ser; e “M” a sua contínua e inquebrantável relação sintrópica).
A Bhagavad Gītā contempla o diálogo entre Krishna e Arjuna, que ocorre no campo de batalha, instantes antes do início do confronto. Arjuna incorpora os valores morais da época e está em crise de consciência. Krishna representa a instância renovadora e/ou transgressora destes mesmos valores. O texto foge ao padrão convencional da época, em que os sacerdotes eram os porta-vozes e intérpretes do sagrado. Em vez disso, um guerreiro e seu “cocheiro” estão no centro deste diálogo, rompendo com o entendimento sobre como a hierarquia de castas deveria organizar a sociedade. Além do mais, a instrução espiritual de Krishna a Arjuna não se dá no interior de qualquer recinto sagrado, āśrama (ashram, ou espécie de monastério) ou mandir (templo), mas no campo de batalha, poucos minutos antes do início do mais terrível combate já ocorrido no subcontinente indiano.
Krishna oferece a Arjuna conselhos valiosos, enfatizando a importância de śraddhā, o ardor do coração, o compassivo sentimento sintrópico e a fé interior. Isso contrasta com a abordagem tradicional de seguir incondicionalmente a autoridade da tradição guru-śiṣya paramparā, à qual a maioria dos indianos se apegava. Dentre os trabalhos disponíveis para se compreender a Bhagavad Gītā à luz do Śuddha Yoga, encontra-se o livro de Vasudeva Row (1938), The Heart-Doctrine of Sri Bhagavad Gita & Its Message, que destaca a centralidade de śraddhā, posteriormente demonstrada na tese, "Śraddhā in the Bhagavad Gītā" (2007), onde esta se revela como a chave e a condição necessária e suficiente para se alcançar a realização espiritual. De forma breve, o argumento central da tese gira em torno da premissa de que śraddhā não se deixa traduzir por "fé", como querem muitos, ainda quando a fé protestante possa ser entendida como um "sentimento de confiança" [na Bíblia; na palavra de Deus]. A fé católica, contudo, jamais é entendida como algo que possa ser "reduzido" a um "mero" sentimento. Sem querer entrar nesta disputa entre católicos e protestantes, o que importa aqui é enfatizar a insuficência da fé para caracterizar śraddhā. Tanto a fé católica como a fé protestante apresentam como característica fundamental o entendimento de que a fé (fides) é sempre fé em algo exterior ao sujeito, representando aquilo em que se acredita mesmo na ausência de motivos racionais para tal. Vale dizer, enquanto a expressão “tenho fé nas verdades exteriores propostas como dogmas pela Igreja” exemplifica um dos usos do termo fides (fé), a proposição “experimento do sentimento sintrópico de confiança e certeza interior, decorrente de uma convicção íntima", denota um dos usos em que se emprega o termo śraddhā. Em outras palavras, por representar os mesmos Princípios da Confiança e da Prudência, expressos no cogito cartesiano, śraddhā prescinde da necessidade de conformação a qualquer verdade apriorística, imposta como dogma.
Vasudeva Row vale-se em seu estudo da recensão da Bhagavad Gītā de 745 versos, publicada em 1917 pelo Paṇḍit K. T. Srinivasācharyar. Esta recensão do texto foi extraída da Śrī Bhagavadgītā Bhāṣyopetā, de Haṃsa Yogi, que teve o seu primeiro volume (conhecido como "Upodhgāta") publicado em 1922, também pelo Paṇḍit K. T. Srinivasācharyar. De acordo com a epistemologia śuddha sāṃkhya, exposta por Haṃsa Yogi e discutida por Vasudeva Row, as faculdades de que dispomos para alcançar a Brahma-prāpti são quatro: (1) faculdade dos sentidos (indriyas); (2) mente emocional (manas); (3) faculdade cognitiva (buddhi ou jñāna), e (4) faculdade sintrópica (yoga). Todo ato sempre envolve, em alguma medida, a conjunção de seus três constituintes: (1) o conhecimento dos meios, (2) o anseio de realização e (3) o esforço na prática. Vasudeva Row explica que quando o ATO em questão se refere à realização de Brahman, seus constituintes refletem a natureza última desta realização do sagrado, sendo designados, respectivamente, de (1) Brahma Jñāna, (2) Brahma Bhakti e (3) Brahma Karma. Deste modo, os nossos esforços de convergência para a realização espiritual dão-se em termos de: (1) conhecimento (jñāna), (2) desejo (icchā, bhakti) e (3) ação (karma). Eles culminam no sentimento sintrópico (śraddhā) de equilíbrio (yoga), expresso em cada ato pleno (kriyā) do śuddha yogi que alcançou, tanto o contato com o Espírito em si mesmo, como a identificação progressiva com o seu aspecto transcendente.
Haṃsa Yogi organiza a sua recensão da Bhagavad Gītā em 26 capítulos estruturados em quatro grupos de seis (Ṣaṭka), cada qual correspondendo a uma potência da realização espiritual: jñāna (sabedoria), bhakti/icchā (devoção ou desejo transformado) e karma (ação consagrada), culminando em yoga (equilíbrio).
Essa organização permite uma leitura sintropicamente orientada, destacando o princípio da síntese viva — jñāna-karma-samuccaya-vāda — como núcleo de realização. Esse enfoque, ignorado por Śaṅkarācārya, é recuperado com força por essa linhagem.
VI. A Śrī Bhagavadgītā Bhāṣyopetā e a jñāna-karma-samuccaya-vāda
Krishna trata na Bhagavad Gītā de dois aspectos da ação humana, entendidos até então, principalmente no seio do Vedānta, como mutuamente exclusivos: pravṛtti (movimento de exteriorização, ou de ação concreta na realidade objetiva) e nivṛtti (subjetivo; movimento de interiorização – ou de “não-ação” –, decorrente do entendimento e controle de todo o processo de formação da vontade). De acordo com Haṃsa Yogi, pravṛtti e nivṛtti compõem as duas asas necessárias ao voo rumo ao sagrado, os dois eixos do gradual processo de síntese dialética de toda a atividade humana, sugerido no princípio conhecido como jñāna-karma-samuccaya-vāda, que discutiremos a seguir.
O comentário-guia de Haṃsa Yogi à Bhagavad Gītā, Śrī Bhagavadgītā Bhāṣyopetā, baseia-se no princípio que afirma a ideia de síntese dialética entre as vias da ação e da não ação, conhecida como jñāna-karma-samuccaya-vāda e que Ādi Śaṅkarācārya critica em sua Gītā Bhāṣya. Este princípio era defendido pelo comentarista que o precedeu e que, possivelmente, era simpatizante do Śuddha Yoga. Quase nada se pode afirmar a este respeito, uma vez que todos os manuscritos dos comentários (bhāṣyas) à Bhagavad Gītā anteriores a Śaṅkarācārya se perderam. Por isto, inclusive, também não se consegue datar muitos textos do Śuddha Yoga, supostamente antiquíssimos, mas que somente recentemente vieram a público, como é o caso da própria Gītā Bhāṣya de Haṃsa Yogi. Este texto está organizado tematicamente, tendo como eixo principal a Invocação do Hino a Durgā, que, no Mahābhārata ocorre no momento imediatamente anterior ao que se convencionou chamar como o início da Bhagavad Gītā. Durgā é o aspecto da Devī que aparece como a deidade Śraddhā no Ṛgveda. Invocar a Durgā é invocar o poder de se encher de śraddhā. Um dos maiores méritos desta recensão de Haṃsa Yogi, extraído da coletânea de textos śuddhas conhecida como Khaṇḍa Rahasya, está em sua cuidadosa estruturação que torna explícita a tripla natureza do śuddha sāṃkhya, que fundamenta a jñāna-karma-samuccaya-vāda por oposição ao kevala sāṃkhya (via exclusiva do conhecimento), que a rejeita e que constitui o Advaita Vedānta.
Sem os manuscritos dos comentaristas anteriores a Śaṅkarācārya, pouco saberíamos sobre essa linha de síntese não fosse a Gītā Bhāṣya de Haṃsa Yogi. O tema principal da obra é a convergência entre jñāna e karma, integrados por śraddhā, revelando um novo paradigma de ação iluminada.
Séculos se passaram e nem mesmo a crítica de Rāmānuja (séc. XII) à Śaṅkarācārya conseguiu resgatar plenamente a jñāna-karma-samuccaya-vāda. Somente nas últimas décadas, com os primeiros autores do incipiente neo-Vedānta, como Yogananda, Vivekananda, Aurobindo, Tilak, Gandhi, S. Radhakrishnan e, principalmente, Bhagavān Das, surgiram os primeiros movimentos nesse sentido. Se a Bhagavad Gītā tem início com Arjuna insistindo em renunciar à via da ação e afirmando o seu desejo de seguir a via do conhecimento (jñāna-mārga), ou kevala sāṃkhya, ela se encerra com ele acatando o ponto de vista de Krishna de que seria possível seguir pela via de síntese sintrópica conhecida como jñāna-karma-samuccaya-vāda, que atende a ambos os caminhos.
VII. Considerações Finais
O 'Manifesto Śuddha' de Bhagavān Nārada, tal como exposto por Haṃsa Yogi, cuja linhagem remonta, pelo menos, ao século V, e interpretado pelos Śuddha Ācāryas, sintetiza a essência da tradição: superação da autoridade sectária, ênfase na universalidade da Bhagavad Gītā e ativação de śraddhā como centro vivo da práxis espiritual e sintrópica.
Em suma, os Śuddha Ācāryas nos oferecem uma visão única do neo-Vedānta e da cultura sintrópica emergente. Sua leitura da Bhagavad Gītā recusa o exclusivismo e propõe uma prática integral: jñāna (sabedoria), icchā (vontade transformada) e karma (ação ritualizada), unificados por śraddhā — sentimento sintrópico de confiança lúcida.
***
(*) “Praṇava” é um termo sânscrito que significa “controlador e dispensador do alento vital (prāṇa)”. Segundo outra etimologia (Yoga Sūtra I.29), o termo “praṇava” deriva de “pra” (antes, adiante) e “nava” (som, grito primal de exaltação) e designa o som primordial que reverbera dentro do sagrado recôndito do nosso coração e dos canais nervosos do nosso corpo. O Praṇava corresponde à respiração da criação cósmica e representa a voz (va) do prāṇa.
Rio de Janeiro, 15 de outubro de 2023.
(Atualizado em 24.05.25)
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