2023-10-15

Uma Reflexão sobre o “Manifesto Śuddha” de Bhagavān Nārada (A)

Ācārya-paramparā-vandanam:
Saudação (vandanam) aos mestres (Ācāryas) das distintas tradições culturais (paramparā)

अस्मत् गुरुभ्यो नमः।
Asmat gurubhyo namaḥ.
अस्मत् परमगुरुभ्यो नमः।
Asmat parama-gurubhyo namaḥ.
अस्मत् सर्वगुरुभ्यो नमः॥
Asmat sarva-gurubhyo namaḥ.

Saudações aos mestres,
Saudações aos mestres dos mestres,
Saudações a todos os mestres.

O “Manifesto Śuddha” e os Śuddha Ācāryas do Śuddha Dharma Mandalam

Vou tratar neste artigo da linhagem de mestres espirituais muito peculiar e pouco conhecida, quase oculta, cuja atuação se fez gradualmente mais presente no mundo a partir de 1785, com a chegada da Bhagavad Gītā ao Ocidente, na tradução ao inglês de Charles Wilkins. Esta linhagem tornou-se acessível ao público ocidental apenas em 1915, quando foi autorizada a criação, em solo indiano, sob a direção dos ilustres Subramanyānanda e Paṇḍit Srinivasācharyar, da instituição religiosa Śuddha Dharma Mandalam, destinada a popularizar os seus princípios e os seus ensinamentos, fundados na Bhagavad Gītā. Pouco depois, em 1917, Sri Vajera, o introdutor das práticas de meditação na América Latina, toma ciência da referida organização, solicita a sua filiação, tornando-se o seu segundo membro latino; e logo, o Presidente da Seção Chilena do Mandalam, função que exerceria até o seu falecimento em 1984.

O "Manifesto Śuddha” no Upodhgāta

O pouco conhecido “Manifesto Śuddha”, do preceptor espiritual Bhagavān Nārada (Sanātana Dharma Sūtras, p. 64; e "Upodhgāta" da Bhāṣyopetā, p. 72), introduzido no capítulo anterior, explicita o caráter universal e não sectário dos ensinamentos desta linhagem de Śuddha Yogis, precursora da espiritualidade universalista e da nascente cultura sintrópica, ponto de encontro e intersecção entre as distintas manifestações culturais e religiosas, e objeto da mensagem de Krishna na Bhagavad Gītā. Como veremos a seguir, este manifesto sugere uma interpretação profunda e única da Bhagavad Gītā, destacando a síntese entre a via da ação (karma-mārga) e a via do conhecimento (jñāna-mārga), proposta como jñāna-karma-samuccaya-vāda. Essa abordagem desafia as hierarquias tradicionais das castas na Índia e a autoridade exclusiva da tradição de mestres e discípulos das religiões de origem indiana, conhecida como guru-śiṣya paramparā. Ei-lo:

1. ājanmā'maraṇaṁ yacca śāstraṁ vai manujānpunaḥ.
yathādeśaṁ yathākālaṁ yathāvasthaṁ ca śikṣayet.
Aquela Ciência Sagrada que deve ser disponibilizada para todas as pessoas desde o nascimento até a morte, de acordo com as vicissitudes de lugar, tempo e circunstâncias.

2. dharmaṁ sanātanaṁ śuddhaṁ prathyakṣaṁ sārvalaukikam.
samabhāvaikya-phaladam-ihā'mutra ca śaṅkaram.
Cujo princípio regente (dharma) é eterno (sanātana), puro (śuddha), realizável, universal, frutífero e auspicioso, aqui, agora, e sempre, outorgando a suprema paz da fraternidade.

3. taddhi śāstraṁ mahātmāno gītetyāhurvicakṣaṇāḥ.
na vaiṣṇavam-idam śāstraṁ na śaktaṁ na ca śāṁbhavam.
É aclamada pelos Mahatmas como a ciência de que trata a Bhagavad Gītā [a Ciência da Meditação]. Esta Ciência Sagrada não é exclusivamente vaishnava, nem shakta, nem shambava*.

4. na bauddhaṁ na ca kāṇādaṁ na sāmkhyaṁ na ca yaugikam.
na tantraṁ naiva vedāntaṁ viśeṣasamayaṁ na Ca.
Nem budista, kāṇāda, sāṃkhya, ou ióguica, nem tantra, vedānta, ou qualquer outro credo em particular.

5. śuddhaṁ ca tadidaṁ śāstraṁ stuvanti pūrvasūriṇaḥ|
tasmātsaṁsāribhirnityaṁ saṁsevyaṁ tadidaṁ bhuvi||
Os antigos Videntes exaltam esta Ciência Sagrada como śuddha, ou seja, universalista e pura. Portanto, ela pode ser cultivada e praticada por todos aqueles que almejam a libertação do ciclo de nascimento e morte. (Bhagavān Nārada)

(*) Śiva é conhecido como Śāṃbhu (aquele que existe como felicidade e bem-estar); sua esposa, Śāṃbhavī. Os devotos de Śiva são chamados śambhavās.

Esta linhagem śuddha entende que a Bhagavad Gītā transcende o ponto de vista tradicional, subssumido na expressão "guru śiṣya paramparā", utilizada para qualificar a sucessão ininterrupta (paramparā) de transmissão do conhecimento, de mestre (guru) a discípulo (śiṣya), no hinduísmo, budismo e janismo. Segundo as diversas linhagens da matriz védica, as textualidades Śruti (literalmente "aquilo que é ouvido" - ou seja, o conjunto das Escrituras Sagradas,​ aquilo que foi revelado) e Smṛti ("aquilo que é lembrado" - o conjunto de textos que refletem sobre as Escrituras), como a Bhagavad Gītā, falam apenas àqueles que já se encontram iniciados por algum mestre em alguma sādhana (disciplina, ou caminho, espiritual). Nas Upaniṣades, em especial, o conhecimento não é transmitido de forma indiscriminada. Ele é secreto (rahasya), transmitido de forma oral, ou seja, como śabda-pramāṇa (testemunho oral). Deste modo, o seu alcance está delimitado pela relação próxima e intimista entre mestre e discípulo. Para se compreender o ensinamento das Upaniṣades necessitava-se de uma chave hermenêutica, que somente o mestre poderia oferecer. Para a linhagem śuddha, contudo, o texto da Bhagavad Gītā introduz a relação "mestre-discípulo" (guru śiṣya) de forma independente, entre dois príncipes, sem nenhum vínculo obrigatório com qualquer tradição religiosa.

Os śuddha yogis entendem que Krishna não representa uma tradição (sampradāya)  em particular e que Arjuna, do mesmo modo, não se filia a nenhum grupo religioso, responsável por “iniciar” os discípulos nos segredos das Escrituras. O conhecimento transmitido por Krishna não necessita de "defensores". Ele se propaga de forma natural e, por isto, teve continuidade, não por intermédio de Arjuna, mas da reportagem de Sañjaya, o narrador daquele diálogo que estava se passavando no campo de batalha e que constitui o episódio da Bhagavad Gītā. Para os śuddha yogis, o que diferencia a Bhagavad Gītā das distintas Escrituras Sagradas (Śruti) que a antecederam é o fato dela romper com a ideia religiosa de exclusividade, característica da tradição guru śiṣya paramparā. A superação deste paradigma é personificada em Krishna, que ressignifica a tradição de então, professando uma espécie de espiritualidade que o ocidente vai batizar em meados do século XX de “neo-Vedānta”, uma vez que ela transcende as fronteiras culturais e de casta estabelecidas pelas distintas tradições religiosas da própria Índia. Isto quer dizer que o ocidente se mostra receptivo e apto para compreender a essência da mensagem de Krishna, sem carecer da necessidade de recorrer às interpretações de matriz indiana, que procuram subsumir o texto à sua própria tradição religiosa. É por isto que a linhagem dos Śuddha Yogis não tem referência, nem está vinculada, exclusivamente, a qualquer escola confessional. Ela entende que a superação da crise de Arjuna ao longo do diálogo da Bhagavad Gītā demonstra esta ressignificação espiritualista das distintas culturas religiosas. Decorre daí, em grande parte, o status de universalidade que o texto da Bhagavad Gītā goza no mundo ocidental.

A atuação silenciosa e discreta dos Śuddha Ācāryas

A expressão “śuddha yoga” (práxis sintrópica), que define a disciplina dos śuddha yogis, ressurge no final do século XIX. Segundo se afirma, ela seria oriunda da Śrī Bhagavadgītā Bhāṣyopetā, de Haṃsa Yogi, também chamada de Gītā Bhāṣya de Haṃsa Yogi, que é parte da serie de comentários conhecida como Khaṇḍa Rahasya (Seção Secreta), revelada ao ocidente pelo misterioso Paṇḍit Dhanaraj. Ele teria ditado, de memória, os principais textos śuddhas a um grupo de colaboradores, incumbidos de torná-los de conhecimento público. Babu Bhagavān Das (1869 - 1958), por exemplo, ofereceu uma tradução parcial para o inglês em 1910 do antiquíssimo Praṇava* Vāda, de Ṛṣi Gārgāyana. O texto oferece um tratamento do pensamento védico sobre este prisma universalista. A obra de Gārgāyana, citada em inúmeras escrituras antigas e que, aparentemente, havia se perdido, teria permanecido sob a guarda desta linhagem de śuddha yogis. Ali se encontra uma discussão até mesmo sobre a evolução das espécies; do reino mineral para o vegetal, onde a sintropia se manifesta; e do vegetal para o animal e o humano, onde entropia e sintropia operam de forma convergente e harmônica. 

O trabalho de Bhagavān Das é um pouco distinto daquele de S. Subramania Iyer, incumbido de dar forma a uma instituição de caráter religioso, destinada a promover e zelar pelo desenvolvimento da cultura sintrópica do Śuddha Yoga. O próprio Dr. Sir. S. Subramania Iyer, conforme ele mesmo reconhece em seu Prefácio, só toma conhecimento da tradução do Praṇava Vāda de Bhagavān Das a partir do artigo "The Heart Doctrine of the Vedas", publicado por ele no Congress Number of The Modern World. Quanto ao trabalho do Paṇḍit Sreenivasachariar, sabe-se que ele se dedicou, por mais de um ano, diariamente, ao texto do Praṇava Vāda, certificando-se, pessoalmente, de todos os detalhes para a sua publicação.

O Primeiro Volume do Praṇava Vāda, de Ṛṣi Gargyayana, foi publicado em sânscrito em Madras, em dezembro de 1915, pelo Paṇḍit K. T. Sreenivasachariar, numa edição conjunta com o Praṇava Vādārtha Dīpikā (Luz sobre o Significado do Praṇava Vāda) de autoria do misterioso Swami Yogananda. O texto traz ainda uma apresentação do Dr. Sir. S. Subramania Iyer (1842 - 1924), um prefácio do Paṇḍit K. T. Sreenivasachariar e uma Epístola do Swami Yogananda. Pouco se sabe do Swami Yogananda, a não ser do seu grande contentamento ao tomar conhecimento da publicação do Praṇava Vāda – texto que utilizara ao longo de sua vida na instrução dos seus discípulos. Swami Yogananda seria um admirador do Praṇava Vāda e de outros três textos do mesmo autor – Lokadarpaṇa, Praṇavabhodha e Praṇavasāra –, em posse exclusiva dos śuddha yogis da seção esotérica do Śuddha Dharma Maṇḍalam e inacessíveis, portanto, ao próprio Dr. Sir. S. Subramania Iyer e seus colaboradores da organização externa de mesmo nome. O aval, manifestado na epístola do Swami Yogananda, bem como o seu comentário sobre o Praṇava Vāda, Praṇava Vādārtha Dīpikā, deixam isto bastante claro. 

O misterioso Paṇḍit Dhanaraj segundo Babu Bhagavān Das

Segundo Bhagavān Das, o Paṇḍit Dhanaraj teria nascido por volta de 1873 d.C. na vila de Belhar Kalan, em Menhdawal Tahsil Khalilabad, Distrito Basti, nas Províncias Unidas de Agra e Oudh. Oriundo de uma família de gramáticos, teria sido um estudioso com um talento incrível para memorizar obras completas e muitos textos originais em sânscrito. Diz-se que, quando tinha sete ou oito anos de idade, já memorizava centenas de ślokas em um único dia. Aos vinte anos, ele já carregaria em sua memória um volume de informações equivalente a trinta Mahābhāratas. Ele seria filho de Nepal Mishra e neto de Hargovinda Mishra, que costumava receber a visita de muitos ascetas errantes. Completamente cego desde os três anos de idade, em função da varíola, viveu como um asceta errante a última parte do século XIX e o início do século XX. Torna-se asceta a convite de um dos ascetas que visitara o seu avô e se impressionara com os seus talentos, aconselhando-o a estudar os textos Maheshvariya Vyakarana, juntamente com o Naradiya Bhasha, sob a orientação de certos paṇḍitas śuddhas, que não se deixavam mostrar tão facilmente. Seguindo as pistas do asceta, Dhanaraja deu início à sua jornada, avançando de aldeia em aldeia, enquanto recebia de cada Paṇḍit alguns ensinamentos e as instruções para buscar o próximo Paṇḍit daquela fraternidade śuddha. Teria vagueado assim por quase dez anos, tempo que teria dedicado à memorizar centenas de obras, perfazendo milhões de ślokas (cada verso do tipo śloka é composto de 32 sílabas).

Bhagavān Das foi também, ele próprio, um extraordinário aderente ao śuddha yoga. Bhagavān Das dedicou a sua vida a lecionar e pesquisar sobre a essência do sagrado (śuddha dharma) de que tratam as obras de Haṃsa Yogi.  Em seu pequeno livrinho Studies in the Bhagavad Gîtâ by the Dreamer: The Yoga of Discrimination (London, Theosophical Publishing Society, 1902), este grande mestre e precursor do Śuddha Dharma Mandalam, apresenta-se no título como ninguém menos que "The Dreamer" (O Senhor dos Sonhos), o personagem que aparece no misterioso e pouco conhecido manuscrito de Dr. R. V. Khedkar, The Dream Problem (Delhi: Practical Medicine, 1922), onde ele próprio também se manifesta como um interlocutor. Em essência, este livro trata de uma pessoa que entra conscientemente no estado de sonho e lá encontra vários sábios, dentre eles, Vasishta, com quem discute os conceitos de realidade, estado de vigília, de sonho, sono profundo e transcendência. Se este mundo se torna irreal para quem alcança a iluminação, quem nos garante que o próprio estado de iluminação não é apenas um outro tipo de sonho em relação a um estado de ser ainda mais elevado? Ao se mudar para os EUA pode explorar a Bhagavad Gītā como a Escritura Sagrada que trata da unidade essencial de todas as religiões, como se vê em seu seminal Essential Unity of All Religions (Benares, 1932). Bhagavān Das reflete no texto sobre o śuddha dharma, descrito no Praṇava Vāda, e trata do núcleo comum que caracteriza a essência de todas as religiões: a correlação entre o Ser, que é espiritual e sintrópico, com o não-Ser, material e entrópico. Trata, nesta mesma obra, detalhadamente, da Educação e do papel do Educador. Para a tradição que ele ajudou a revelar ao mundo, o diferencial da Bhagavad Gītā em relação aos demais textos dos distintos darśanas é o fato dela não estruturar e engessar o ancestral yoga (reintroduzido por Krishna), em sistemas e diferentes escolas, cada uma delas com os seus próprios e rígidos Sūtras, ou sistematizações mais ou menos normativas e sectárias. A Bhagavad Gītā, pelo contrário, perpassa todos esses sistemas de pensamento, mas não pertence, exclusivamente, a nenhum deles. Esta é marca característica desta Escritura. Em The Science of Peace (1904), Bhagavān Das reproduz a explicação do Praṇava Vāda a respeito do significado mais profundo das três letras constituintes do Praṇava AUM (“A” indicaria o Ser; “U”, o não-Ser; e “M” a sua contínua e inquebrantável relação sintrópica).

(*) “Praṇava” é um termo sânscrito que significa “controlador e dispensador do alento vital (prāṇa)”. Segundo outra etimologia (Yoga Sūtra I.29), o termo “praṇava” deriva de “pra” (antes, adiante) e “nava” (som, grito primal de exaltação) e designa o som primordial que reverbera dentro do sagrado recôndito do nosso coração e dos canais nervosos do nosso corpo. O Praṇava corresponde à respiração da criação cósmica e representa a voz (va) do prāṇa.


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