2019-01-05

Movimentos de Convergência: (4) a metafísica da contracultura

Para compreender a palavra utilizada por Heidegger que designa o Ser (das Man), Luiz Carlos Maciel, cujo pensamento estamos explorando nesta serie, leu o artigo Qu’est-ce que la métaphysique (1938), traduzido por Henry Corbin de um artigo de Heidegger de 1929. Esta ideia do Ser ou das Man é importante porque ela se encontra na raiz de todos os julgamentos críticos. Estes estão presentes, notadamente, no pensamento de Marx e Freud, que denunciam o engano da vida cotidiana na nossa civilização, com a padronização quase robótica do ser humano. Muito provavelmente, teria sido este mesmo engano a que Marx se referia quando critica a alienação do ser. Marx ainda se utiliza do ponto de vista hegeliano, mas, ao inverter a sua lógica, encontra uma racionalidade na história que lhe permite desenvolver as suas análises político-filosóficas sob o prisma histórico-social. Em Hegel a história se dirigia para o saber completo no Espírito Absoluto. Marx, de outro lado, entende o movimento da história no sentido social de se avançar para uma sociedade comunista. O outro pensador do século XIX que, segundo Maciel (veja aqui), teria percebido o engano em que vivemos foi Freud. Ele teria descoberto o nó desta questão ao denunciar a repressão, que está na raiz do ser, vítima de padronização e alienação. Segundo Freud, toda doença da sociedade ocidental deve-se à repressão, para ele um mal necessário.  Daí a função de reprimir que atribui, em sua teoria psicanalítica, ao superego, o censor que impede a ascensão do Id.

A repressão foi a bête noire (besta negra) de toda uma geração representada por Maciel. Odiava-se a repressão, fosse ela de natureza política ou sexual. Para esta geração as duas formas de repressão eram uma coisa só, conforme iria enfatizar Norman O. Brown. Vivia-se uma vida reprimida, sem liberdade política, sem liberdade sexual. Foi por esta época que a virgindade deixou de ser tabu e a homossexualidade começou a ser vista com mais naturalidade. A repressão, identificada por esta geração, está na origem do que Marx chama de alienação, György Lukács de reificação (a redução das pessoas a coisas) e Sartre de serialidade (somos fabricados em série). Em Philip K. Dick, veremos que a ficção científica ocupou-se desta temática, vislumbrando no futuro a acentuação da robotização do ser humano.
No século XX, os pensadores herdeiros de Marx (a esquerda) e Freud (a direita; cf. "O Mal-Estar da Civilização") sentiram a necessidade de realizar uma síntese das duas críticas, ou seja, uma ponte entre ambos. Desses pensadores, Wilhelm Reich foi um dos mais influentes na trajetória pessoal de Maciel. Era freudiano e membro do partido comunista. Contudo, foi expulso do partido por ser freudiano, ou seja, por acreditar no inconsciente, que representa a grande descoberta psicológica de Freud. Ao mesmo tempo, Freud, muito conservador, também rompeu com Reich porque ele era comunista.
A teoria reichiniana sobre a neurose é de orientação estritamente sexual. Crítico ferrenho do Yoga, que via como uma tentativa de reprimir a sexualidade por meio de técnicas respiratórias, afirmava que a coisa mais importante da experiência erótica era o órgão sexual. Isto será desmentido por Herbert Marcuse e Norman O. Brown, pois a cura da repressão sexual teria que vir da liberdade para erotizar todo o corpo. Norman O. Brown aproxima esta temática da teologia cristã ao se referir à ressurreição do corpo. Em Reich, contudo, a energia sexual permanece restrita aos órgãos genitais. Para ele, a repressão ao fluxo da energia libidinosa no corpo humano criava pontos de estrangulamento da corrente vital, chamados de couraças. Para que o fluxo de energia se restabelecesse, estas couraças, presentes no corpo neurótico de nossa sociedade, precisariam ser rompidas. A medicina tradicional chinesa também concebe o funcionamento do organismo humano como fluxo de energia, que percorre o corpo por meio de canais chamados meridianos. Segundo a lenda, os médicos chineses da antiguidade, proibidos de dissecarem cadáveres, apalpavam o corpo vivo para desenvolverem as suas práticas médicas. Descobriram, deste modo, os meridianos. Quando havia obstrução de energia em algum meridiano, o órgão correspondente adoecia. O tratamento consistia em desobstruir tais meridianos por meio de alimentação natural, moxabustão e acupuntura. Não deixa de ser interessante a semelhança de alguns aspectos do pensamento oriental, como o tantra yoga, com as ideias de Reich. A energia ígnea, que o tantra chama de kundalinī; os chineses de Chi; e os japoneses de Qi, Reich chama de orgônio.

Este é, em suma, o panorama que surge da tentativa de se alcançar uma primeira síntese entre o pensamento de direita e de esquerda, representados por Freud e Marx, e que influenciou a contracultura, abrindo caminho para uma geração que gostava de Marcuse e Reich, sendo por isto criticada pela esquerda, que não acreditava no inconsciente, na teoria freudiana da repressão sexual, no fluxo de energia vital, etc. Cabe ressaltar que Reich via a cura das doenças motivadas pela repressão sexual em uma vida de trabalho, valor fundamental também para os comunistas. É neste cenário que surge Norman O. Brown, como veremos a seguir.

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