2016-09-30

No Mundo dos Sonhos: lidando com a Insondável Angústia

"Unfathomable Sorrow" -- Insondável Angústia: assim denominei esta angustia excruciante que, vez por outra, assume o papel de farol e bússola deste meu processo de individuação (funcionamento ātma-para).
Nota explicativa — 17 ago 2025: Este texto nasceu de um sonho em 2016 (“Oh Unfathomable Sorrow”). Na noite de 16→17/08/2025, um novo sonho retomou o mesmo motivo e aprofundou a visão. Revisitei o ensaio para registrar essa continuidade — ver além do olhar.

Ver além do olhar. Padre Antônio Vieira dizia: não basta ver para ver; é preciso olhar. Hoje acrescento: não basta olhar — é preciso ver com vipaśyanā, o insight que dissipa a névoa e devolve cada gesto ao seu lugar no caminho do coração. Daí a frase, "O pior cego é aquele que não quer ver". Não faria muito sentido dizer "o pior cego é aquele que não quer olhar". Apesar do nosso olhar, é sempre mais fácil não ver do que ter que enxergar o que nos desagrada.

Em setembro de 2016, sonhei cantarolando: Oh Unfathomable Sorrow. Acordei e confirmei: a expressão existe — e ecoa a dor que atravessa o sagrado. Recordei então meus ancestrais, presentes na meditação do sonho, e contemplei a gravidade como metáfora do ciclo de expiração e inspiração de Brahman: do Big Bang ao retorno. Ao despertar, eu estava mais leve — como se a angústia, quando vista sem fuga, devolvesse ao espírito a sua gravidade própria: aquela que atrai tudo de volta ao Centro.

"Unfathomable Sorrow" -- Insondável Angústia: assim denominei a angústia excruciante que me tomara no sonho e vez ou outra, nos convida a ver com o coração (vipaśyanā: “discernir”, "insight" – ver as coisas como elas realmente são) o papel de cada minúscula experiência do cotidiano em nosso processo de convergência sintrópica para a bondade radical (funcionamento ātma-para). Há dois níveis básicos de se "olhar" para a espiritualidade: uma associada à felicidade mundana (preyas) e os seus ideais de alcançar o Céu, o Paraíso, etc.: e outra aos ideais de "bondade radical" (śreyas), para utilizar uma expressão popularizada por Gilberto Gil, (principalmente após o lançamento em 2022 da série Em Casa com os Gil na Amazon Prime Video) ancorados nos exemplos de Jesus, Buda e de Krishna na Bhagavad Gītā. A crise de Arjuna, que o conduzirá à via da realização espiritual, é fruto de sua bondade radical. E a própria jornada do Senhor Buda tem início com essa mesma crise, que o levará a identificar nas Quatro Nobres Verdades o meio para se cultivar a compaixão. Na tradição judaico-cristã, o amor é apresentado como o meio para a transcendência da dor e do estado de desconexão com o sagrado.

Quando se almeja a espiritualidade superior, parece quase inevitável enfrentar certo sentimento de angústia, que se manifesta até nos sonhos. Foi assim com esse sonho onde me vi cantarolando em inglês "Oh Unfathomable Sorrow". Assim que acordei, fui ao google verificar se "unfathomable" era, de fato, uma palavra. Surpreso, descobri que "Unfathomable Sorrow" era o título de uma coletânea de sonetos (veja aqui), composta para capturar a tristeza do infinito e o sentido da "insondável angústia" experimentada no martírio de Jesus na Cruz.

Não sei bem o porquê, mas o fato de pesquisar sobre o que havia sonhado me fez lembrar de outros detalhes daquele sonho. Estivera em meditação, na presença de meu pai e outros familiares, todos já falecidos. Contemplava a força gravitacional como a causa primeira da criação e expressão do processo de respiração de Brahman, conforme representada pelo Big-Bang (expiração de Brahman). Refletia sobre como viemos de pais, que vieram de outros pais e assim por diante até o Big-bang. Foi então que me dei conta que acordara "mais leve". Vivenciara como os nossos ancestrais guardavam a história e o segredo do percurso de volta à nossa origem sagrada. E experimentara o poder da força gravitacional por diversos ângulos e inclinações. Bondade radical é consciência sintrópica, consequência da prática de Bhāvana, do cultivo de śraddhā, foco absoluto do coração, ou heartfulness.

Bondade radical é a experiência de que a frase, filosoficamente ingênua, "Deus está morto" quando aceita como hipótese, valida, contraditoriamente, a existência desse deus que se procura negar. Tudo o que está morto não é alegoria, nem mitologia, é certeza de existência. Se morreu é porque existiu, ou existe ainda de alguma forma.

Não é a "crença" em Deus que nos salva, mas a infinita dor da desconexão, que nos convida à conexão. Quando nos sentimos desconectados do infinito, sentimos essa dor da finitude, saudades, dos pais, dos mortos, do pai original morto. Quando nos sentimos conectados com o infinito ficamos em paz e superamos a ilusão da separação dos seres que nos precederam e nos deram origem.

A pedagogia da dor do deus morto é a precursora, a causa e a origem, da pedagogia do amor, conforme ensina Jesus na Cruz, quando ele próprio se sente, temporariamente, humanamente, desconectado e abandonado. A dor radical do afastamento e desconexão desaparecem, unicamente, quando se experimenta da práxis da bondade radical que nos reconecta com o espírito infinito do universo.

Em suma, nesse sonho com a insondável angústia, estava sendo conduzido a meditar mais profundamente sobre os modos de enxergar o Céu e a Terra. Esses modos dependem da "densidade" da nossa alma. Dependem do seu peso. Assim como as águas dos rios voltam para o mar; com os sonhos, ficamos "mais leves" e imunes à força material, gravitacional, que nos prende à finitude da Terra. As dificuldades do processo de individuação nos estimulam a voltar os nossos olhos para perceber a imanência infinita do Espírito. É a proximidade ao Espírito que revela a morte como uma ilusão imposta pela matéria. Toda matéria é apenas energia do Espírito. O universo é Espírito. E o Espírito, por ser não nascido, não conhece a morte, nem as ilusórias angústias da alma.

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Tristeza do Infinito
(Cruz e Souza)

Anda em mim, soturnamente, uma tristeza ociosa, sem objetivo, latente, vaga, indecisa, medrosa.
Como ave torva e sem rumo, ondula, vagueia, oscila e sobe em nuvens de fumo e na minh'alma se asila.
Uma tristeza que eu, mudo, fico nela meditando e meditando, por tudo e em toda a parte sonhando.
Tristeza de não sei donde, de não sei quando nem como... flor mortal, que dentro esconde sementes de um mago pomo.
Dessas tristezas incertas, esparsas, indefinidas... como almas vagas, desertas no rumo eterno das vidas.
Tristeza sem causa forte, diversa de outras tristezas, nem da vida nem da morte gerada nas correntezas...
Tristeza de outros espaços, de outros céus, de outras esferas, de outros límpidos abraços, de outras castas primaveras.
Dessas tristezas que vagam com volúpias tão sombrias que as nossas almas alagam de estranhas melancolias.
Dessas tristezas sem fundo, sem origens prolongadas, sem saudades deste mundo, sem noites, sem alvoradas.
Que principiam no sonho e acabam na Realidade, através do mar tristonho desta absurda Imensidade.
Certa tristeza indizível, abstrata, como se fosse a grande alma do Sensível magoada, mística, doce.
Ah! tristeza imponderável, abismo, mistério, aflito, torturante, formidável... ah! tristeza do Infinito!

Śraddhā é a coragem de ver;
ver é a pacificação da angústia
no coração do Ser.

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SUMÁRIO GERAL

Rio de Janeiro, 30 de setembro de 2016
(Atualizado em 17.08.25.)