2018-12-02

A superação da tradição "guru śiṣya paramparā"

Bhagavad Gītā rompe com o entendimento tradicional da expressão "guru śiṣya paramparā", utilizada para qualificar a sucessão ininterrupta (paramparā) de transmissão do conhecimento, de mestre (guru) a discípulo (śiṣya), no hinduísmo, budismo e janismo. Prova é que Arjuna não fez discípulos. Surpreendentemente, o texto introduz a relação "mestre-discípulo" (guru śiṣya) entre dois kṣatriya-s, ou seja, dois príncipes da classe político-militar e, portanto, sem nenhum vínculo com qualquer linhagem de "instrutores religiosos".

Há um aforismo de Ralph Waldo Emerson que exprime com maestria esse sentido de superação da tradição védica que o texto da Bhagavad Gītā apresenta. Ele diz: "Todo o homem que encontro me é superior em alguma coisa. E, nesse particular, aprendo com ele." Somente aqueles que se libertaram dos vínculos com um instrutor religioso em particular podem, como Emerson, ver em todos os seres um instrutor (guru). E, ao fazê-lo, tornam-se, eles mesmos, em certa medida, novos instrutores. São de Emerson também os seguintes aforismos, inspirados no milenar texto da Bhagavad Gītā e que nos auxiliam a compreender a atualidade, importância e relevância da tradição, representada pela expressão "guru śiṣya paramparā", que contém, em si mesma, as sementes da sua gradual transformação e ressignificação:
  •  "As religiões que chamamos de falsas já foram verdadeiras um dia". 
  • "Deus constrói o seu templo no nosso coração sobre as ruínas das igrejas e das religiões." 
  • "Não siga por onde os caminhos nos conduzem; caminhe por onde ainda não há caminhos, deixando assim uma nova trilha."
  •  "Crê em ti mesmo; o coração vibra sempre ao som desta corda."
  •  "Confiança em si é o primeiro segredo do sucesso."
  •  "Sem entusiasmo nunca se realizou nada de grandioso."
  • "O que fica atrás de nós e o que jaz à nossa frente tem muito pouca importância, comparado com o que há dentro de nós."
  •  "O pensamento é a semente da atividade."
  •  "Toda a revolução foi primeiro uma ideia na mente de uma pessoa."
Conforme já mencionei antes (veja aqui), a minha emancipação do estágio da transmissão do conhecimentos nos moldes da tradição "guru śiṣya paramparā", estruturada em torno dos conceitos de Ashram e de instrutor religioso, para aquele previsto no texto da Bhagavad Gītā, veio com a decisão reproduzida abaixo, que faz parte do meu Prefácio ao Glossário Yoga Brahma Vidya Sanhita (ver arquivo digitalizado), elaborado no período vivido Ashram Atman:
Aprendemos com a ajuda do mestre, até que um dia o coração fala e ganhamos então um novo mestre e, verdadeiramente, nascemos para o mundo interior. Rompemos o cordão umbilical e ensaiamos os primeiros passos: experimentamos uma nova fonte de conhecimentos, de desejos e agimos com motivos de uma natureza distinta dos até então experimentados. Assim, com o tempo, precisamos cada vez menos do pai como instrutor e mais como um amigo; assim estreitam-se os laços do amor. Com o tempo ficamos cada vez menos sujeitos às quedas, vamos descobrindo no coração a Veracidade que nos previne contra Moha, a precursora das quedas. Aos poucos vamos compreendendo o significado real dos três aforismos que postulam a divindade objetiva, subjetiva e transcendente. Então, compreendendo o funcionamento cósmico, já não nos ofenderemos por nada, já não nos sentiremos mais vítimas de nada, nem culparemos mais ninguém por nada. Não. Teremos vencido Moha e compreendido que viver conforme a ética śuddha [do puro Yoga] é agir sempre pleno de amor, na unidade que existe na infinita diversidade.
Esta passagem do Prefácio, escrito no Natal de 1990, revela o meu esforço de anos de convergir, gradualmente, para os valores do coração, simbolizados no lema atribuído ao grande sábio Lao Tzu: “Primeiro ser; depois fazer; e só então, dizer”. Este esforço envolve a passagem pelos bancos acadêmicos e também pela vida protegida e segura oferecida pelos Ashrams, representantes tradição "guru śiṣya paramparā". Para atuar no burburinho da cidade, na "pólis", tinha que estar razoavelmente preparado, internamente ("Primeiro ser..."). Somenta assim poderia atender aos desafios da missão que me propusera a realizar ("...depois fazer; e só então, dizer."). Foram anos me adestrando na arte de me tornar mestre de mim mesmo antes de poder perceber algo da beleza que se oculta na potência de vida da cidade; da "kallipólis", a cidade bela de Platão. Ele descreve em A República como dar forma a uma "politeia", uma cidade sagrada, sintrópica, desenvolvida a partir do sagrado cultivado no coração dos seus habitantes. Os textos platônicos dão voz aos diálogos socráticos de forma bastante semelhante a vários dos diálogos do ​Mahābhārata, em especial, o diálogo da Bhagavad Gītā, entre Krishna e Arjuna, onde se trata, majoritariamente, da emancipação do ser e da correspondência e harmonia que deve haver entre as faculdades da alma e aquelas exigidas para o desenvolvimento social de uma cidade justa e feliz. 

Em praticamente todas as culturas e, independentemente das suas distintas tradições religiosas, via de regra, os discípulos (śiṣya-s) iniciam as suas jornadas espirituais apenas quando firmam, de coração, o Saṃkalpa (firme propósito) de seguir os ensinamentos oriundos da sua tradição (paramparā) em consonância com a orientação dos seus instrutores (guru-s). O segundo passo, contudo, está representado na emancipação e ressignificação da sua relação com os antigos mestres (guru-s). Esta emancipação, quando verdadeira, raramente representa um rompimento. Pelo contrário, aponta para um aprofundamento do entendimento da expressão "guru śiṣya paramparā". Passamos a ver em todos os seres visíveis, ou invisíveis a olho nú, a figura familiar do antigo mestre de carne e osso e expressão do grande mestre interior, representado pelo Ātman (Espírito Santo, Sopro Divino), oculto em cada coração. A partir desse momento, lenta e gradualmente, começa a se desenvolver o processo de unificação com o antigo mestre, que se manifesta em todos os seres, conforme explicita o aforismo de Emerson ("Todo o homem que encontro me é superior em alguma coisa. E, nesse particular, aprendo com ele."). Este processo de participação e de continuidade nos trabalhos desenvolvidos pelo mestre com o qual nos sentimos unificados, dão forma então a um novo estágio da jornada espiritual, caracterizada pela "Ṛṣi-nyāsa Dīkṣā", ou a iniciação (Dīkṣā) que nos torna aprendizes das hostes celestiais (Ṛṣi-nyāsa) e instrumentos, portanto, da vontade cósmica. 

Nada mais sublime que ver na multiplicidade de "eus" e "eles" desse campo de experimentações que é a Terra, a presença de um mesmo e sagrado Alento Vital, o Ātman, a fonte de tudo que aprendemos. É este conhecimento (jñāna) que nos possibilita distinguir, a cada passo da jornada, o real do irreal e, consequentemente, que nos leva a desenvolver a força e a coragem necessárias para sempre nos decidirmos, desinteressadamente, pelo que representa o bem, o melhor, o mais útil e verdadeiro para todos. Distinguir os desejos altruístas (śreyas) daqueles fundados na satisfação de meros prazeres (preyas) egoístas nos leva a perceber que os nossos desejos, simpatias e antipatias não nos constituem verdadeiramente. Daí nascem a abnegação e o desapego que conduzem à libertação da escravidão imposta pelos desejos. Aprende-se a praticar o bem por amor ao bem, e não com a esperança de qualquer reconhecimento, agradecimento ou recompensa. Nasce daí aquela disposição amorosa (bhakti), que representa o elo de garantia que faz com que o nosso discurso teórico nunca esteja em contradição com a nossa práxis (karma): “O que quer que faças, faze-o de boa vontade, como sendo para o Senhor e não para os homens” (S. Paulo: Colossenses 3:23). Em nossa vida cotidiana isto significa duas coisas: primeiro, que devemos ser cuidadosos para não ferir nenhum ser vivo e; segundo, que devemos estar sempre vigilantes para perceber as oportunidades de servir de instrumento do sagrado. Este é o Yoga que Krishna transmitiu a Arjuna e deixou como legado àqueles convocados a viver na cidade a Vida Divina, que os neófitos acreditam ser possível, unicamente, na clausura dos mosteiros e monastérios, conforme uma ou outra denominação religiosa subentendida no contexto da tradição "guru śiṣya paramparā".

Após a morte do meu primeiro instrutor de Śuddha Yoga e Śuddha Dhyāna, o saudoso Śrī Vájera (1895 - 1984), escolhi como novo instrutor dentro desta mesma tradição, Sūrya Yogi Dāsa (Francisco Barreto). Fiquei sob sua orientação direta de janeiro de 1987 até o final de 1990,  quando conclui essa etapa preliminar da vida espiritual. Seguiu-se então, conforme descrevi acima, este meu presente desafio, de avançar pelo estágio "espiritualista e não sectário" da ciência sagrada e me tornar, por assim dizer, o mestre de mim mesmo.
Próximo texto: A Oração do Pai Nosso em aramaico

Rio de Janeiro, 02.12.18.
(02.11.23)

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