2019-04-06

A Bhagavad Gītā como Metáfora da Arte e da Ciência da Meditação

A Bhagavad Gītā como a Expressão Paradigmática da Metáfora Fundamental sobre a Arte e a Ciência da Meditação
Sanjaya narra o diálogo da Bhagavad Gītā
para o rei cego Dhritarashtra.
A Bhagavad Gītā constitui-se como um resgate da história da arte e da ciência da meditação, sob a forma de uma reportagem ao rei cego Dhritarashtra, em tempo real, do diálogo entre os príncipes Krishna e Arjuna, instantes antes do início da grande batalha final do Mahābhārata. Representa um pequeno diálogo de coração-a-coração (saṃvāda), de 700 versos, dentro da narrativa maior do épico (aproximadamente 100.000 versos), onde o protagonista Arjuna1 escuta de Krishna como desenvolver a śraddhā2 necessária para sair do seu “estado de ilusão e confusão mental” em relação ao dharma (sagrado) e para dar sequência ao processo de individuação do Ser e, consequentemente, de comunhão com o sagrado.

Considerada como uma Escritura Sagrada universalista, laica, não sectária e não dogmática, a Bhagavad Gītā segue atual e influenciando o pensamento de filósofos, poetas, artistas, ambientalistas, ativistas e diferentes líderes religiosos por todo o mundo. O seminal conceito de ecologia profunda, por exemplo, funda-se em alguns versos da Bhagavad Gītā. Em seu Ecology, Community and Lifestyle (Cambridge University Press, 1989), o filósofo Arne Naess (1912 – 2009), criador do conceito de ecologia profunda e da ideia de que o modelo de ciência vigente é responsável, em grande parte, pela atual crise socioambiental, vale-se dos versos BhG 2.48, 2.71, 3.19, 3.27, 3.30, 4.17-4.23. 5.7, 5.18, 5.24-5.25, 6.29-6.32 para construir a sua filosofia monista, que tem como princípio norteador o conceito de Ātman (a Mônada; o Alento Vital; a Essência Divina; o Espírito Supremo) conforme expresso no verso 29 do sexto capítulo da Bhagavad Gītā3: Quem se harmoniza por meio do yoga percebe a presença de Ātman em todos os seres e de todos os seres em Ātman. 

Se a narrativa maior do Mahābhārata, que contém o diálogo da Bhagavad Gītā, apreende o campo do concreto, simbolizado no campo de batalha dos descendentes de Kuru (kuru-kṣetra), a Bhagavad Gītā, logo em seu verso de abertura, introduz esse campo como o próprio cenário do sagrado (dharma-kṣetra), ou seja, como o espaço da consciência universal, que se faz presente no coração de cada indivíduo. Ela contempla, tanto o campo das religiões, como o da espiritualidade pura. Qual a diferença entre um e outro campo? Basicamente, religião reflete a CRENÇA na experiência espiritual de alguém. É algo que se transmite dentro de uma tradição com mestres e discípulos. Espiritualidade significa TER esta experiência, tal como Arjuna a teve na Bhagavad Gītā e que, tanto pode acontecer dentro, como fora de qualquer instituição religiosa. Embora “espiritualidade” não seja um bom nome, uma vez que parece desconsiderar a importância do mundo e da sua aparente “materialidade”, o fato é que este termo vem se impondo com o significado de um estado de “superação do sectarismo religioso”, incluindo-se aí, obviamente, as distintas variações do próprio hinduísmo.

Mahābhārata contém, em sua parte final, um episódio que apresenta uma verdadeira defesa da Bhagavad Gītā e do sentido espiritualista de superação do todo o sectarismo religioso, estruturado de forma rígida e normativa. Ele constitui os capítulos 16 a 51 do Livro 14, o Aśvamedha-parvan (Sacrifício do Cavalo), e é sugestivamente nomeado como Anu Gītā, ou seja, o diálogo posterior (anu) ao episódio da Bhagavad Gītā.  Na Anu-Gītā, Arjuna afirma que não consegue se lembrar da maioria dos ensinamentos da Bhagavad Gītā e pede a Krishna que os repita uma vez mais. Krishna o repreende por não ter desenvolvido a śraddhā necessária para manter a memória dos sagrados princípios da espiritualidade pura (ātma-dharma) que lhe haviam sido revelados (MBh 14.16.10). Afirma que Arjuna encontra-se então em outro estado mental, desprovido da śraddhā necessária para assimilar a essência do ātma-dharma. Desse modo, impedido de recorrer à metodologia assistemática, representada pela transmissão de conhecimentos de coração a coração, que fora a marca distintiva do discurso espiritualista da Bhagavad Gītā, Krishna recorre a estórias de distintas tradições da religiosidade popular para referir-se, agora apenas de forma indireta, aos ensinamentos universalistas da Bhagavad Gītā. A Anu-Gītā deixa claro, portanto, que a Bhagavad Gītā descreve uma situação única, impossível de ser cem por cento repetida na realidade e, consequentemente, de ser subsumida por qualquer sistema religioso. Daí, inclusive, o caráter assistemático dos seus ensinamentos espiritualistas, transmitidos sob a forma livre e poética dos versos.

O Fogo Ardente do Coração
O sagrado coração materno do judaísmo e do seu filho,
o cristianismo universal.
Resumidamente, a Bhagavad Gītā afirma que guiar-se pela bússola do ātma-dharma (sagrado coração) significa recolher os cinco sentidos para dentro do coração, da mesma forma que a tartaruga recolhe os seus membros para dentro do casco (BhG 2.58). Significa compreender que tudo começa pela escuta interior. Há nas antigas Escrituras Sagradas do ocidente muitas referências similares a esta da Bhagavad Gītā. Salomão, por exemplo, quando se encontra com Deus em sonho, pede um coração que saiba escutar (Re 3:4-15). O guru indiano Sai Baba valia-se da seguinte metáfora, aqui reproduzida em tradução livre, para se referir à esta escuta do coração:
Se uma porta está trancada e você deseja abri-la, você deve colocar a chave dentro da fechadura e girá-la no sentido anti-horário. Mas se você girar a chave no sentido contrário, a fechadura permanecerá trancada. A diferença está na forma como você gira a chave. Seu coração é a fechadura e a sua mente, a chave. Se girar a mente para Deus no coração (Ātman), você obtém a liberação. Se girá-la para o mundo exterior, você permanece na escravidão. É a mesma mente que é responsável por ambas, a liberação e a escravidão.
Como aprender a girar a chave no sentido correto? 

De acordo com a Bhagavad Gītā, a verdadeira disciplina mental (embora, obviamente, não se trate de uma “disciplina” no sentido corrente do termo) e a atividade (kriyā) do iogue definem-se, inicialmente, pelo movimento para unificar o universo interior (dharma-kṣetra) com o universo “exterior” (kuru-kṣetra), como vimos mais acima. Tal é a natureza da ancestral prática de meditação revelada por Krishna, que se inicia pela nossa relação com o prāṇā (movimento de interiorização, inspiração) e o apāna (movimento de exteriorização, expiração). (BhG 4.29)

De acordo com a literatura sagrada indiana, há pelo menos quatro medidas que podemos adotar para nos certificarmos de que estamos girando a chave no sentido de alcançar a sintonia com o sagrado coração. Em tradução livre, o código de Manu sugere o seguinte (Leis de Manu: II.12):
  1. Deve-se consultar os Śrūti-s (aquilo que foi ouvido), ou Escrituras Sagradas, que orientam uma dada comunidade;
  2. Se aí não se encontrar uma resposta que satisfaça o coração, deve-se consultar os Smṛti-s (o que é relembrado), ou as discussões existentes sobre as Escrituras Sagradas que orientam a nossa ação;
  3. Se ainda assim não se encontrar uma resposta que atenda às exigências da nossa consciência, deve-se então buscar a opinião daquelas pessoas reconhecidas como mestres de grande autoridade nessa matéria;
  4. Se ainda assim as respostas oferecidas não satisfizerem ao coração, fica-se autorizado, a se seguir os ditames dessa consciência, que vem sendo cultivada e que já não consegue encontrar respostas na tradição.
Conta uma lenda nativa que, interrogado sobre o que ensinava ao seu povo, um pajé americano teria respondido: primeiro, a escutar o coração; segundo, que tudo está ligado com tudo; terceiro, que tudo está em transformação; e quarto, que a Terra não é nossa, nós é que somos da Terra. Para esse pajé, obviamente, a própria natureza simbolizava esse livro que deveria ser lido como uma Escritura Sagrada, e é isto, em suma, que significa escutar e entrar em sintonia com o sagrado no coração.

A Bhagavad Gītā pode ser considerada a Escritura Sagrada por excelência da literatura sânscrita. Ela contém, abarca e sintetiza todas as demais. Se a metáfora dos dois pássaros, presente no Ṛg Veda e Upaniṣades (veja aqui), sugere o estado de “testemunha”, a metáfora de um cisne nadando nas águas tranquilas de um lago (presente nas Upaniṣades), sugere o processo de individuação que se experimenta em meditação. O ser unificado é retratado como um cisne banhando-se nas águas tranquilas do lago da mente. Tudo é metáfora, símbolo, ou arquétipo, na linguagem de Jung. “Haṃsa” denota “cisne” e representa também a expressão onomatopeica do processo de respiração: inspiro, “haṃ”; expiro, “sa” – “haṃ-sa”. Inspiro a paz proveniente do sagrado imanente no mundo exterior; expiro o amor proveniente do sagrado imanente em meu mundo interior... Quando inspiro, sinto a presença do Ātman no meu coração; quando expiro, sinto o meu coração no Paramātman... 

A Dhyānabindu Upaniṣad4 trata do termo “haṃsa” (cisne) como representação onomatopeica do processo de respiração. Os manuscritos desta Upaniṣad aparecem em duas versões: uma de 23 versos, parte do Atharvaveda; e outra, expandida, de 106 versos, que é parte do Sāmaveda e inclui técnicas de Yoga que não se encontram nos Yoga Sūtra de Patanjali. Segundo afirma a versão estendida de 106 versos, “pela sílaba ‘ha’ ele recebe o exterior e pela sílaba ‘sa’ ele se interioriza”.  “Haṃ-sa, haṃ-sa”, representa o ininterrupto mantra da vida e simboliza a prática de meditação em Brahman. A versão original, de 23 versos, traz também algumas imagens que sugerem a fenomenologia do Espírito de Brahman (Ātman):

Ātman (Alento Universal) existe em todos os seres
Como a fragrância existe nas flores
Como a manteiga no leite
Como o óleo nas sementes oleaginosas
Como o ouro no minério de ouro
Todos os seres estão interligados pelo Ātman
Assim como as pérolas estão pelo fio do colar
Deste modo, com a mente fixa em Brahman (o Absoluto, representado pelo AUM),
O Conhecedor de Brahman alcança a iluminação. (Dhyānabindu Upaniṣad, v. 7 e 8)

O silêncio experimentado com a iluminação seria a prova empírica do infinito em nosso interior (v. 4 a 6). A seguir (v. 11 a 17) o texto relaciona as etapas do Prāṇāyāma (pūraka, kumbhaka e rechaka) aos aspectos com forma da divindade (Brahma, Vishnu e Shiva) subsumida em Nārāyaṇa, sugerindo a evolução natural de uma espécie de meditação para outra.  Arraigados ao pseudo concreto mundo objetivo das formas, nos é mais adequado meditar na pessoa de seres com forma, tais como Shiva, Nārāyaṇa, Buda, Cristo, etc. Com a prática, contudo, passa-se a representar estes seres como expressões da luz interior do coração (Ātman).  É a este processo de internalização da divindade que se denomina, tecnicamente, como Ṛṣi-nyāsa (interiorização da divindade externa). O texto afirma que apenas por meio desta meditação já é possível alcançar, respectivamente, o mundo dos ancestrais (Pitṛyāna) e dos seres celestiais (Devayāna), representados na tradição védica pelas sendas da lua e do sol. E conclui (v. 19 a 23), valendo-se de metáforas que aparecem também na Śvetāśvatara Upaniṣad (1.14) e Amṛta Upaniṣad (13), que nas formas mais elevadas de meditação “o Pranava OM é o arco; a alma humana, a flecha; e Ātman, unicamente, o alvo”.

A Māntrika Upaniṣad (Upaniṣad do praticante de mantras) também apresenta o cisne Haṃsa como o ser humano realizado, que alcançou o contato e a unificação com a essência do sagrado em si mesmo (Ātman).  Haṃsa banha-se no lago pertencente à mente (Manas). O texto descreve os dois aspectos deste cisne: um visível e outro invisível. O aspecto visível simboliza o ser humano, que se alimenta do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. O aspecto invisível representa a imagem e semelhança do Espírito Puro e Universal (Ātman), eternamente sem mácula, que reside no interior de cada um de nós.

Do mesmo modo, na Bhagavad Gītā, os dois personagens, Krishna e Arjuna, encarnam os dois pássaros da metáfora do Ṛg Veda. Quando Arjuna entra em sintonia com a fala de Krishna inicia o seu processo de individuação, ou seja, torna-se consciente, tal como o cisne Haṃsa, dos seus dois aspectos, unificando-se com o sagrado.

Há muitos modos de classificarmos e ordenarmos as Escrituras Sagradas. Na literatura sânscrita há cinco categorias fundamentais de textos sagrados. Quatro tratam, de forma geral, da religiosidade indiana, e a quinta trata, especificamente, da espiritualidade universal:

  1. Śruti (Shruti: revelações; aquilo que foi ouvido; transmissão oral). Refere-se, em geral, aos quatro Vedas: Rig Veda, Sama Veda, Yajur Veda e Atharva Veda;
  2. Smṛti (Smriti: memória, aquilo que é lembrado – reflexão em forma de texto sobre as revelações). Refere-se, em geral, à literatura épica (Mahābhārata e Rāmāyaṇa), dos PurāṇasĀgamas (ver também no budismo);
  3. Sūtra: Escritura Canônica, coleção de aforismos curtos, ou teoremas fundamentais. Sūtra significa fio condutor (o fio do colar de pérolas), corda; deriva do verbo “siv”, que significa alinhavar: aquilo que segura as coisas juntas;
  4. Śāstra (Shastra); preceitos, regras, manual; e
  5. A Bhagavad Gītā no Mahābhārata. A sublime (Śrīmad) canção (Gītā) do Senhor (Bhagavad) é considerada, por alguns, como parte dos Smṛti e, por outros, como Śruti. É indiscutível, entretanto, o seu caráter distintivo e único. Daí se afirmar que o Mahābhārata, como um todo, constitui o “quinto Veda” e a  Bhagavad Gītā, a sua essencia.
A Bhagavad Gītā, em suma, representa uma síntese de toda a literatura sânscrita, constituindo-se como uma exposição assistemática e alegórica da arte e da ciência da meditação. Nela, os dois personagens, Krishna e Arjuna, simbolizam os dois pássaros que se unificam no cisne Haṃsa. Por se tratar de um canto livre e espontâneo (Gītā), não é normativa como a literatura dos Sūtras e Śāstras, nem sectária ou dogmática como os Śruti e Smṛti, em geral, o são.

N O T A S

(1) Arjuna simboliza o paradigma da condição humana e dos valores da tradição védica, em vias de ser superada. Krishna representa o paradigma da condição divina: “aquele que desce” a este mundo, de tempos em tempos, para atualizar o entendimento dos homens sobre a essência (śuddha) do sagrado (dharma).

(2) Na Bhagavad Gītā śraddhā representa o princípio da confiança e da prudência, a bússola interior que acompanha o movimento da compaixão, do amor e da verdade, iluminando a razão e facilitando a meditação na práxis do mundo. Expressa a espiritualidade pura, a fé interior, o ardor do amor em ação e o poder do coração que fortalecem a vontade e a confiança em si mesmo.  Constitui-se como a energia que promove o controle mental e o sentimento da comunhão com a verdade e o sagrado.

(3) Para saber mais sobre este tema, sugiro a leitura do artigo “Gandhi, Deep Ecology, Peace Research And Buddhist Economics”, de Thomas Weber (Journal of Peace Research, Vol. 36, No. 3, 349-361, 1999), que analisa a contribuição de Gandhi na formação intelectual de Arne Naess.

(4) Conforme a listagem canônica que aparece na seção do Rāmāyaṇa conhecida como Muktikā (Liberação), são 108 as Upaniṣades. Destas, 20 se agrupariam como “Yoga Upaniṣades”. São elas: Dhyānabindu, Haṃsa, Triśikhi, Maṇḍalabrāhmaṇa, Amṛtabindu, Amṛtanāda, Kṣurika, Brahmavidyā, Yogatattva, Yogaśikhā, Yogakuṇḍalinī, Varāha, Śāṇḍilya, Pāśupata, Mahāvākya, Yogachūḍāmaṇi, Darśana, Nādabindu, Jabala e Tejobindu. A Dhyānabindu Upaniṣad é uma das vinte “Yoga Upaniṣades” descritas pela literatura que se situam nesse contexto. “Bindu” quer dizer “ponto” e aqui se refere ao ponto (anusvāra) sobre o símbolo do AUM. Representa a Brahma Śakti (M), ou seja, a energia divina e promotora da unificação do aspecto material e concreto da pessoa humana (U) com o seu aspecto espiritual e sagrado (A), a um só tempo imanente e transcendente. “Bindu” também significa "origem, raiz, semente", indicando que a Dhyānabindu Upaniṣad trata das origens da meditação.


Rio de Janeiro, 06.04.2019.
(Atualizado em 09.01.23)

2 comentários:

  1. Muito bom o texto, professor. A tradução livre da metáfora do guru Sai Baba é atemporal e além da religiosidade, ao meu ver. Muito dos nossos problemas e questões que nos atordoam cotidianamente, sua solução está na maneira em como viramos a chave; "A diferença está na forma como você gira a chave." Nossa mente e coração pode se abrir para qualquer lugar, tudo dependerá de qual chave iremos escolher(...) Dentro de cada ser, há o diálogo de Arjuna e Krishna. Cada ser humano possui dois pássaros dentro si, como naquela imagem que mostraste em aula. Pretendo ler a Bhagavad Gita algum dia, me parece ser uma leitura enriquecedora para a vida e minha pessoa.

    Att

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    1. Grato pelo retorno, Claudia. Na próxima semana (25.04.19) receberemos a visita do líder da ISKCON (Sociedade Internacional para a Consciência de Krishna) no Rio de Janeiro, Chandra Mukha Swami, que falará para nós sobre a Bhagavad Gītā, sob a perspectiva devocional do Bhakti Yoga. Tenho certeza que a sua fala enriquecerá muito a visão da turma toda em torno desse instigante tema. Até lá,

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