No silêncio do amanhecer, quando o mundo ainda dorme e o céu se pinta com as primeiras luzes, o universo nos convida à escuta (bhāvana namaḥ!). É nesse instante sagrado que a Oração do Amanhecer, atribuída a São Francisco de Assis, ressoa como um chamado à paz, à sabedoria e ao amor, valores que ecoam através das tradições espirituais do Oriente e do Ocidente.
"Senhor,
No silêncio deste dia que amanhece,
Venho pedir-Te a paz, a sabedoria, a força.
Quero ver hoje o mundo com os olhos cheios de amor.
Quero ser paciente, compreensivo, manso e prudente.
Quero ver além das aparências os teus filhos,
Como tu mesmo os vês e assim não ver senão o bem em cada um.
Cerra meus ouvidos a toda calúnia.
Guarda minha língua de toda a maldade.
Que só de bênçãos se encha o meu coração.
Que todos os que de mim se acercarem sintam a Tua presença.
Reveste-me de Tua beleza, Senhor.
E que no decurso deste dia eu Te revele a todos."
Essa prece, que pulsa no ritmo do Śraddhā Yoga - a disciplina do puro amor resgatada por Krishna na Bhagavad Gītā -, nos convida a cultivar a consciência sintrópica (bhāvana), a capacidade de perceber a realidade sob a lente do amor transcendental, alinhada à percepção da Grande Lei (Ṛta), a ordem cósmica que sustenta o universo.
Leon Tolstói, em sua obra-prima Anna Karenina, nos oferece uma reflexão que dialoga diretamente com essa ideia: "Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes o são cada uma à sua maneira". A felicidade, segundo Tolstói, está alicerçada em valores universais — amor, respeito, compreensão —, assim como a sabedoria, para Sócrates, reside na busca pela Verdade, pela Bondade e pela Utilidade.
Esses três critérios, que ficaram conhecidos como as Três Peneiras de Sócrates (Platão, Apologia de Sócrates), servem como um filtro para nossas ações e palavras. Conta-se que Sócrates, ao ser procurado por alguém que desejava compartilhar informações sobre um conhecido, interrompeu-o com a seguinte pergunta: "O que você vai me contar já passou pelas três peneiras?". As peneiras da Verdade, da Bondade e da Utilidade são os três critérios que, segundo o diálogo socrático, toda informação deve passar antes de ser considerada relevante.
As Três Peneiras de Sócrates
Sócrates, famoso por sua sabedoria, era procurado por muitas pessoas ávidas por conhecimento. Um dia, um homem teria ido a Sócrates para fazer uma fofoca. Antes mesmo que ele começasse sua narrativa, Sócrates o interrompeu com uma pergunta:
— O que você vai me contar já passou pelas três peneiras?— Três peneiras? — Estranhou o homem.— Sim. Vamos ver se o que você tem a dizer passa pelas três peneiras. A primeira é a Verdade. O que você vai me contar é absolutamente verdadeiro?— Hummm... Não sei ao certo — Respondeu o homem.— Bom. Vamos à segunda peneira: Bondade. O que você vai me contar é algo bom?— Bem... — Hesitou o homem — Para falar a verdade, não é.— Ah! Então usemos a terceira peneira: Utilidade. O que você vai me contar será útil para mim?— Útil? — Perguntou o homem, hesitante. — Acho que não.— Se o que você tem a me dizer não é verdadeiro, nem bom, nem útil, então por que me contaria? — Concluiu Sócrates.
Moral da história
A história das três peneiras nos ensina a importância de filtrarmos as informações que recebemos, questionando sua veracidade, bondade e utilidade. Essa prática não apenas nos protege de maledicências, notícias falsas e informações inúteis, mas também nos aproxima de uma vida guiada pelo amor, pela verdade e pela compaixão. Assim como Tolstói nos fala sobre a universalidade da felicidade, Sócrates nos convida a refletir sobre os critérios que fundamentam nossas ações e palavras, criando um caminho para a harmonia interior e exterior.
A primeira peneira, a da Verdade, nos convida a questionar a veracidade de nossas crenças e informações. No Sutta Piṭaka, a primeira cesta do Tripiṭaka1 budista, encontramos um chamado semelhante: os ensinamentos de Buda devem ser cuidadosamente avaliados, não aceitos cegamente, mas testados pela experiência e pela razão. A Verdade, portanto, não é algo estático, mas uma jornada de descoberta e autoconhecimento.
A segunda peneira, a da Bondade, nos lembra que nossas ações devem ser guiadas pela compaixão e pelo desejo de promover o bem. No Vinaya Piṭaka, a segunda cesta do Tripiṭaka, encontramos as regras de conduta que orientam a vida monástica, sempre com o objetivo de cultivar a harmonia e o respeito mútuo. A Bondade, assim, não é apenas um sentimento, mas uma prática diária que transforma a nós mesmos e o mundo ao nosso redor.
Por fim, a terceira peneira, a da Utilidade, nos desafia a refletir sobre o propósito de nossas ações e palavras. O Abhidhamma Piṭaka, a terceira cesta do Tripiṭaka, explora a natureza da mente e da realidade, oferecendo ferramentas para o autoconhecimento e a superação do sofrimento. A Utilidade, nesse sentido, não se limita ao aspecto prático, mas abrange o crescimento espiritual e a transformação interior.
Ao integrar a sabedoria de São Francisco, Tolstói, Sócrates e Buda, somos convidados a contemplar o amanhecer não apenas como um fenômeno natural, mas como uma metáfora para o despertar da consciência. Que possamos, como sugere a Oração do Amanhecer, ver o mundo com olhos de amor, peneirar nossas experiências com discernimento e agir com bondade e propósito. Que cada dia seja uma oportunidade para revelar a beleza divina que habita em nós e em todos os seres.
* * *
(1) O Tripiṭaka ("três cestos") é a coleção canônica de escrituras do budismo, que contém os ensinamentos de Buda e a regulamentação monástica. Ele é considerado o conjunto de textos mais antigo e fundamental para diversas tradições budistas, sendo preservado especialmente no Cânone Pāli (da tradição Theravāda) e em versões chinesas e tibetanas (Mahayana e Vajrayana).
O nome "Tripiṭaka" refere-se à divisão da obra em três seções principais, chamadas de "três cestos":
- Vinaya Piṭaka (Cesto da Disciplina). Contém regras e regulamentos para a conduta dos monges e monjas (Saṅgha). Inclui o Pātimokkha, um conjunto de preceitos monásticos. Registra também histórias sobre como certas regras foram estabelecidas.
- Sutta Piṭaka (Cesto dos Discursos).Reúne discursos atribuídos diretamente ao Buda e a alguns de seus discípulos. Contém cinco coleções principais (Nikāyas no Cânone Pāli ou Āgamas na tradição chinesa): Dīgha Nikāya (Discursos longos); Majjhima Nikāya (Discursos médios); Saṃyutta Nikāya (Discursos agrupados por temas); Aṅguttara Nikāya (Discursos organizados numericamente); e Khuddaka Nikāya (Textos menores, incluindo o Dhammapada e o Jātaka).
- Abhidhamma Piṭaka (Cesto da Doutrina Superior). Uma sistematização filosófica e psicológica dos ensinamentos de Buda. Analisa conceitos fundamentais do Dharma de maneira mais técnica. Diferente do Vinaya e do Sutta Piṭaka, que são aceitos por todas as tradições budistas, o Abhidhamma varia entre as escolas.
O Tripiṭaka é fundamental para o estudo do Budismo, servindo como base para a prática monástica e para a compreensão do Dharma, tanto nas tradições Theravāda quanto nas influenciadas pelo Mahayana e Vajrayana. O Cânone Pāli (Theravāda) contém o Tripiṭaka mais completo e preservado, transmitido no Sri Lanka e Sudeste Asiático (Camboja, Filipinas, Indonésia, Tailândia etc.). O Cânone Chinês (Mahayana) inclui além do Tripiṭaka, uma grande quantidade de sutras Mahayana. O Cânone Tibetano (Vajrayana) tem o Kangyur (textos considerados palavras do Buda) e o Tengyur (comentários e tratados filosóficos).
Rio de Janeiro, 09.02.25
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