2023-05-22

A Cultura Sintrópica e o Espírito, este desconhecido

O mundo é tal como nos parece,
feito de coisas que não aparecem.
Santo Agostinho

Conforme explico mais detalhadamente ao longo dos capítulos seguintes, logo que conheci Francisco Barreto, em 1979 fui convidado a experimentar mais profundamente a forma de viver proposta no Śuddha Yoga, muitas vezes chamada de “espiritualista”, por falta de um melhor nome, mas que, na verdade, integra e unifica as experiências do universo fenomenológico, dando igual peso à matéria e ao espírito. O Śuddha Yoga, em seu nível mais profundo, não nos convida a assumir, nem uma postura teísta, nem ateísta, mas aquela oriunda de se compreender o equilíbrio sintrópico destes dois níveis de percepção de uma mesma realidade: o nível entrópico (rajásico e tamásico) do mundo, experimentado como saṃsāra; e o nível sintrópico (sáttvico) desta mesma realidade “material”, experimentado de forma espiritual e laica como nirvāṇa.

Francisco Barreto dedicou a sua vida a viver o Śuddha Yoga, não como uma mera fantasia, no plano teórico, mas como um compromisso diuturno de se estabelecer na harmonia que surge da compreensão e unificação destes dois universos, material e espiritual, que nos revelam o mundo material nos servindo de escola para o progresso espiritual. O mundo material e concreto proporciona as chaves para o encontro da harmonia do mundo espiritual. Em outras palavras, ele nos possibilita espiritualizar a matéria e promover o florescimento harmonioso, em equilíbrio ecológico, de todos os seres e ambientes, independentemente dos seus níveis de consciência e de percepção da realidade. Esta foi a experiência que vivi no antigo Ashram Ātma, em Aracaju, SE, conforme já mencionei. E este seria também o sentido real da proposta dos textos sagrados, quando as pessoas são convidadas a iniciarem a jornada de ascese espiritual, definida, pela inversão do funcionamento do ser do seu nível entrópico e mundano (guṇa-para)  para o nível sintrópico e espiritualista (ātma-para). 

Realizar a jornada sintrópica significa, em termos da literatura védica ressignificada na Bhagavad Gītā, acessar e experimentar de Ṛta, a lei cósmica, introduzida no Ṛg Veda, expressão da Consciência Cósmica (Brahman), bem como da sua amorosa energia (Brahma Śakti). Toda a comunidade do antigo Ashram Ātma fora convidada a atender a esse modo de vida, ainda inédito e inusitado. Diferentemente das comunidades espiritualistas, em geral, mais elitistas, seletivas e exclusivistas, que sempre privilegiam o espiritual sobre o material, em conformidade com as propostas da antiga filosofia do Vedānta e das suas concorrentes, o Ashram Ātma se propunha a materializar a práxis sintrópica, conforme definida e proposta por Krishna na Bhagavad Gītā, e plenamente materializada apenas séculos mais tarde com a experiência do Calvário vivido por Jesus. Foi por se compreender que o Śuddha Yoga não é propriedade exclusiva de uma dada cultura, mas, pelo contrário, é inclusivo e de caráter universalista, que se decidiu instalar o Ashram Ātma em uma das regiões mais atrasadas e violentas do país. Foi ali, naquele ambiente altamente entrópico e materialista de então que o projeto sintrópico do Śuddha Yoga teve lugar. Tal qual a flor de Lótus que floresce no pântano, ali foi cultivada esta flor, posteriormente duplicada no Projeto da Grande Síntese, capaz de promover o desenvolvimento sustentável do seu entorno e de se multiplicar pelo país, contribuindo para o desenvolvimento harmonioso do planeta como um todo. Ao dar forma concreta e objetiva à práxis proposta no Śuddha Yoga, a experiência vivida no Ashram Ātma atendia também aos ideais multiculturalistas e ecológicos de então. Obviamente, não nos valíamos deste vocabulário à época, nem tínhamos plena consciência do movimento cultural de vanguarda em que estávamos nos inserindo. Segundo o olhar dos observadores mais curiosos e conservadores, parecíamos estar aderindo, não a uma vanguarda cultural, mas simplesmente àquilo que se costumava designar como contracultura. Contudo, mesmo sem termos plena consciência, estávamos acolhendo e desenvolvendo, de forma muito prudente e cuidadosa, quase misteriosa, toda esta filosofia e práxis sintrópicas.

Como descrevo ao longo dos capítulos seguintes, nos idos dos anos oitenta, costumava passar o período de férias escolares no Ashram Ātma. Recordo ainda com certa saudade das noites que discutíamos sobre ciência e espiritualidade. Francisco nos falava do conteúdo e das consequências práticas do livro O ESPÍRITO ESTE DESCONHECIDO, de Jean Emile Charon (Ed. Melhoramentos, 1979), lançado na França em 1977. Mostrava-nos como o texto ilustrava, mesmo que de forma embrionária, as verdades vividas dentro das distintas “Comunidades Alternativas”, que se desenvolviam pelo mundo todo, promovendo uma ressignificação da vida e uma espécie de retorno à natureza. Nenhum de nós tinha, do ponto de vista intelectual e da educação formal, maturidade para compreender aquela Física, nem de avaliar a qualidade da formulação que Charon nos apresentava. Mesmo assim aquelas conversas me impactaram a tal ponto que logo me apaixonei pela Termodinâmica, disciplina da qual acabei me tornando monitor. Ainda hoje guardo aqueles rascunhos onde refletia sobre as leis da termodinâmica e, em especial, sobre o conceito de entropia.

No Ashram, durante as férias, aprendia sobre a sintropia (chamávamos então de neguentropia), não apenas nas conversas com Francisco, mas, principalmente, na prática, vivida na rotina cotidiana do Ashram. De volta à faculdade me esforçava para compreender a entropia e as suas propriedades. Nascia assim a motivação que me nutre até hoje de trabalhar na construção desta ponte entre ciência e espiritualidade, entre os universos onde, respectivamente, entropia e sintropia tem maior destaque e relevância. Não tinha noção à época de que toda a minha investigação teria como objeto avançar e dar forma à filosofia sintrópica, derivada, tanto do Śuddha Yoga, como dos estudos de Charon sobre a natureza do elétron e suas propriedades. Hoje as ciências emergentes, como a ecologia, são menos positivistas do que eram há cinquenta anos e já fazem avançar as fronteiras do nosso entendimento sintrópico da realidade.

Jean Emile Charon foi um físico teórico que usou as leis da física para discutir as origens da consciência. Em poucas palavras, pode-se dizer que Charon acreditava em uma espécie de Física Neognóstica, envolvendo a biologia, a psicologia e mesmo outras ciências, onde o Espírito ocuparia um lugar nos fenômenos naturais. Percebia que o sentimento intuitivo, expressão da consciência, intervinha na pesquisa científica e sentia que jamais seria possível compreender plenamente as leis físicas da matéria, deixando o Espírito de fora. Ele acreditava que os elétrons carregavam “eons”. Estes constituiriam corpos etéricos, uma espécie de protoconsciência, presente em tudo, desde os instantes iniciais do Big Bang, representando a origem da vida na matéria. Os eons seriam os responsáveis pelo advento e desenvolvimento da consciência. Charon se esforçou para unificar as diferentes leis que observamos governando a natureza. 

O que ainda hoje me remete ao texto de Charon é menos o seu conteúdo que o seu reconhecimento da centralidade do Espírito e do problema da morte (cf. os ritos de śrāddha). Os ritos funerários funcionam como fonte de motivação (śraddhā) para aprendermos a sentir e a auscultar o Espírito, a Memória, a Informação, revelados na Matéria. Existe uma equivalência, conforme pontua Charon, entre informação e entropia negativa, a sintropia, que observamos nas estruturas vivas, portadoras de espírito. De acordo com os experimentos de Charon, ficou provada a existência dessas partículas que nos conferem as suas propriedades sintrópicas, partículas que subsistem à morte do corpo. E, como elas operam em neguentropia, ou seja, em um processo evolutivo de eterno crescimento, seriam, elas mesmas, etéreas e eternas e, portanto, consubstanciais com aquilo que se costuma chamar de Espírito. Vale dizer, somos constituídos de partículas eternas onde habita um “Eu” (Ātman) eterno, que sempre existiu. Cada uma das partículas que nos constitui possuiria, em si mesma, a memória informacional “genética” que chamamos de “Eu”. Haveria uma natureza espiritual nas partículas. Daí a ênfase de Charon de que tanto a morte como o nascimento não teriam existência real, uma vez que este “Eu”, onde nos situamos, seria eterno. 
Para ele, o “Espírito” estaria associado às partículas elementares da Física, descritas na Mecânica Quântica em termos das ondas psi. Estas, usando uma analogia moderna, não tem caráter objetivo. Constituem-se apenas como fenômenos subjetivos: seriam como os mapas de navegação dos aplicativos que mostram trechos mais ou menos congestionados a partir de dados estatísticos, sem a intenção de precisar, num dado momento, quantos e quais automóveis estariam em uma dada posição. Isto nos permite compreender a ideia de partícula-onda, formulada para expressar a impossibilidade de representar com exatidão, simultaneamente, a posição e a velocidade de uma partícula. Para ilustrar esse ponto, podemos utilizar a mesma metáfora das projeções de um cilindro, vista em textos anteriores. Suponhamos que dispomos apenas de referenciais com duas dimensões para descrever o cilindro, que sabemos ter três dimensões (comprimento, largura e altura). Uma projeção nos mostra o cilindro como um círculo; a outra, um retângulo. Mas como poderia um objeto ser descrito como um círculo e um retângulo? É exatamente este o raciocínio que nos permite compreender o comportamento probabilístico do elétron, uma espécie de micro buraco negro que hora é descrito como onda e ora como partícula e que funcionaria como ponte entre a matéria e o Espírito. Segundo Charon, o elétron deforma o espaço à sua volta tal qual o buraco negro. E ele trocaria informações à distância com outros elétrons, sempre aumentando a sua neguentropia.

Em um certo sentido, como temos visto em vários dos nossos textos, a marca característica da filosofia sintrópica do Śuddha Yoga e o seu diferencial em relação às demais formas da filosofia do Vedānta é o entendimento de que matéria (prakṛti) e espírito (Ātman) são as duas faces reais de uma mesma moeda. Para ilustrar este ponto, suponha que estejamos contemplando uma moeda depositada sobre uma mesa. Diferentemente do Vedānta, para quem a moeda teria como face real apenas aquela invisível a olho nu, no Śuddha Yoga da Bhagavad Gītā as duas faces têm igual realidade, pois fazem parte da mesma substância, que ora se apresenta de uma forma, ora de outra. Daí o ideal sintrópico de se harmonizar os movimentos entrópicos oriundos da matéria com os movimentos sintrópicos, provenientes do espírito, tal como já se vê, por exemplo, no processo que permite ao ser humano passar do seu estado inicial de óvulo fecundado para um corpo humano adulto. Este mecanismo parece sugerir que o real contempla um anverso e um reverso, matéria e espírito, as duas faces da mesma moeda. As leis da matéria bruta, por si sós, não conduzem ao desenvolvimento e à ordem crescente dos seres humanos. Desde a concepção herdamos esse “Eu”, animado de espírito, que nos dá o sentimento de identidade. Assim, o espírito não poderia ser explicado como uma criação da matéria.

Tal qual postula o Śuddha Yoga, Charon também define a meditação como aquele processo de súbita intensificação do nível de consciência, operado pelo Sentimento de Amor, que estimula a imaginação e promove o reconhecimento amoroso da Natureza toda. Seriam os elétrons do nosso corpo que veiculariam esta linguagem amorosa, capaz de promover uma elevação brusca do nível neguentrópico do nosso “Eu consciente”. Charon compara o espaço espiritual contido nos elétrons com um imenso quadro coberto de pequenas lâmpadas, que pisca sem cessar, criando diferentes códigos e pensamentos. As lâmpadas representam os fótons da radiação encerrada no interior do elétron e o piscar de uma lâmpada representaria, no decorrer do tempo, a mudança do seu spin. A mudança de spin (acende/apaga) possibilita a “comunicação” com o universo exterior, que enriquece a neguentropia do elétron, representante de uma espécie de faculdade e consciência espiritual capaz de promover o aumento dos níveis de amor e de conhecimento.

Charon nos oferece uma metáfora bem interessante para a compreensão da neguentropia associada aos elétrons. Considera uma mesa de bilhar com muitas bolas brancas e uma bola vermelha. A mesa simboliza o espaço interior no elétron; as bolas representam os fótons interiores no espaço eletrônico. E, no mundo exterior, fica um personagem, armado com um taco de bilhar. Ele se "comunica" com a mesa, batendo nas bolas com o taco. As bolas brancas estão reunidas em um dos cantos; em outro canto fica a bola vermelha. O jogador se aproxima e bate na bola vermelha, que se choca com as bolas brancas. Estas se dispersam pelos quatro cantos, ricocheteando ao mesmo tempo nos bordos e uma na outra até, finalmente, pararem. Charon nos propõe que imaginemos esse processo se desenrolar de forma inversa, como se estivéssemos retornando no tempo. As bolas brancas, imóveis, estariam dispersas em toda a superfície do bilhar; depois, uma após a outra, elas se colocariam em movimento, segundo direções bem diferentes que parecem ter escolhido livremente. Após terem rodopiado por alguns instantes sobre a mesa, de terem se chocado muitas vezes contra os bordos e de terem batido umas nas outras, eis que todas as bolas brancas se reúnem e se imobilizam, dando a impressão de que juntas, fizeram a bola vermelha se afastar e parar em um ponto particular da mesa, para daí arremessar o bastão, sustentado pelo jogador, para fora da mesa. Quando a ciência materialista assiste a esse filme invertido, neguentrópico, que se passa no interior dos elétrons, reforça a sua crença de que a consciência é um fenômeno material, pois consegue ver, unicamente, o movimento das bolas de bilhar, que parecem dotadas de vontade própria e consciência, decidindo, livremente, o seu comportamento. Mas, quem percebe o taco e o jogador, não se deixa enganar. Compreende, imediatamente, que se trata de um filme ao inverso e que as bolas não passam de simples objetos materiais.

Para Charon, o jogador é o nosso “Eu” inteiro, contido em cada um dos elétrons que nos constituem, principalmente aqueles que participam da edificação do nosso DNA. Seriam os elétrons os portadores do Espírito constituinte da “memória” que faz funcionar e aprimora esta máquina viva e complexa, formada de carbono assimétrico, o ser humano. Nas cadeias carbônicas longas, como as das proteínas, os elétrons dispõem das condições adequadas para orientar o desenvolvimento da vida. Charon enfatiza que o conhecimento abstrato e elementar que temos das coisas inibe o nosso sentimento intuitivo sobre o mistério da vida e do vivo, quer se trate do reino animal ou vegetal. Segundo ele, falta-nos ainda desenvolver o sentimento de amor, elo com a realidade universal. Seria necessário romper com o paradigma da ciência moderna, que exila a subjetividade e a alma humana, negando-lhes qualquer valor. Para Charon, veicular amor é o meio mais simples e mais eficaz de aumentar o nosso conhecimento e a própria neguentropia do Universo. O Amor é aqui entendido como a forma mais elevada de Conhecimento, aquela forma telepática capaz de nos fazer sentir o outro como nós mesmos.

Ao esboçar a sua cosmologia neognóstica, em suma, Charon sugere o nascimento da Filosofia Sintrópica, da qual nos ocupamos e que procuramos desenvolver. A filosofia sintrópica, como temos discutido a partir do Śuddha Yoga, trata tanto da espiritualização da matéria como da materialização do espírito. Espiritualizar a matéria significa contribuir para organizar, sintropicamente, o universo. Deste modo, o que nos cabe a todos é atender ao objetivo cósmico de contribuir para aumentar ao máximo a sintropia do universo, pois é o Espírito que está no centro da aventura universal, manifestando-se no nível dos elétrons, os “portadores” do Espírito na matéria. Conforme afirma Charon, “Aquele que você vê no seu espelho é seu contorno de Matéria, e este não pensa” (1979, 124). A aventura do Espírito, concluímos, tem ligações estreitas com a da Matéria, pois os próprios elétrons, portadores do Espírito, são feitos de Matéria. O Espírito não poderia, portanto, ter se manifestado senão ao mesmo tempo que a Matéria. Charon encerra o seu texto com uma última reflexão:

Quem duvidará, no mais profundo de si mesmo, de que sua vida está bem utilizada quando ele procura ser mais no plano do Conhecimento e do Amor? Quem não perceberá, refletindo um pouco e deixando falar o íntimo de seu ser, que "avança" colocando sua Reflexão e suas Ações a serviço de mais Conhecimento e de mais Amor? Será necessário que, cada um de nós reencontre um pouco mais esta "voz interior", que sabe o caminho, pois este caminho é o seu. Mas é também o nosso. Um caminho que, olhando bem, nos foi proposto por todos os profetas de todas as religiões de nossa Terra...

...Quando procuro perscrutar o meu "Eu" no seu imenso passado histórico, descubro-o participando do fogo das primeiras estrelas, rastejando na areia úmida das praias pré-cambrianas, correndo entre as folhagens gigantes das florestas do Paleozoico, nadando nas águas tépidas do Jurássico inferior, voando no azul de um céu do Cretáceo. Mas eu o imagino também, no futuro, como um ser ainda desconhecido, vagando entre as estrelas, falando uma linguagem que compreenderá a nuvem negra ou o vento solar, transportado sempre mais alto e mais longe pelo Conhecimento, sempre mais ávido de Amor pelo outro. Até o dia em que, todos os nossos "Eu" eônicos reunidos em uma imensa estrutura mais neguentrópica do que todas aquelas do passado, nós chegaremos lá aonde o tempo parece parar, lá onde toda esta gigantesca evolução conduziu, finalmente, o Espírito, nas verdes pastagens onde o Universo retém seu sopro, ouvindo esta música secreta que corre agora como um canto etéreo, entre as formas movimentadas dos eons deste fim do mundo. Então, como dizia Vivekānanda, falando da existência de seu Mestre, talvez o povo dos eons se contentará, enfim, de viver esta grande vida deixando aos outros a tarefa de encontrar a explicação. (1979, pp. 162 a 172)

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