2019-01-07

A Bhagavad Gītā e a Bhāṣyopetā de Haṃsa Yogi

A Khaṇḍa-Rahasya de Haṁsa Yogi: uma análise sobre a Mística da Bhagavad Gītā
Os Śuddha Acharyas R. Vasudeva Row, Dr. Sir. S Subramania Iyer e Pandit K. T. Sreenivasacharya, oriundos, respectivamente, dos três principais sistemas filosóficos do vedānta: Dvaita (dualismo de Madhva), Advaita (não-dualismo de Shankaracharya) e Visishtadvaita (não-dualismo qualificado de Ramanuja).


















Pretendo discutir neste artigo duas questões relacionadas com a tese "Śraddhā in the Bhagavad Gītā" (2007). A primeira refere-se às razões para não ter considerado diretamente no corpo da tese o texto da  Bhagavad Gītā editado pela Śuddha Dharma Maṇḍalam1. A segunda questiona a relevância das discussões geradas em torno desta nova recensão da Bhagavad Gītā. Em linhas gerais, pode-se afirmar que a polêmica gerada por esta nova versão da Bhagavad Gītā constitui um "pseudo-problema", ocasionado pela publicação desse extrato do seu "comentário-guia" da Bhagavad Gītā, intitulado Śrī Bhagavadgītā Bhāṣyopetā, que que apresenta, para efeitos de sua análise (Śuddha Sāṃkhya) e síntese (Śuddha Yoga), uma ordem de versos e capítulos distinta da usual.

Bhagavad Gītā editada pela organização externa Śuddha Dharma Maṇḍalam
Bhagavad Gītā editada pela organização religiosa
Śuddha Dharma Maṇḍalam
A primeira edição da Bhagavad Gītā do Śuddha Dharma Maṇḍalam, com 745 versos, publicada em 1917 pelo Paṇḍit K. T. Sreenivasachariar em um único volume, conjuntamente com a "Gītārtha Saṃgraha" (Apreensão do Significado da Gītā) do Maharishi Gobhila, foi muito mal recebida pela academia. O texto foi considerado “não científico” (unwissenschaftliche) e “infeliz” (leider) pelo scholar F. Otto Schrader que, curiosamente, é citado com apreço na revista The Suddha Dharma, (June 1937, p. 567). Para mais detalhes sobre essas críticas, ver o seu artigo “Neues über die Bhavavadgítá” (Aus Indiens Kultur, Festgabe zum 70.  Geburtstag von Richard von Garbe (1927), 171-183): n. 1, p. 173). Não causa estranheza a rejeição inicial à ideia da existência de uma nova recensão do texto da Bhagavad Gītā (veja aqui uma edição em português, com apresentação do Prof. J. Hermógenes de A. F.), uma vez que essa baseava-se, não em manuscrito original, mas em uma cópia em posse do editor, Paṇḍit Sreenivasachariar, feita anos antes, a partir de um suposto manuscrito do Swami Yogananda, conhecido apenas dos membros internos do Śuddha Dharma Maṇḍalam. O manuscrito teria ainda sido cuidadosamente comparado com dois outros textos, em poder, respectivamente, dos Swâmis Śāṁkarānanḍa e Bhavānanḍa, e confrontado com um fragmento escrito por volta de 1870 em folha de palmeira, e pertencente ao avô materno do Pandit Sreenivasachariar, Tiruvelundoor Bhashyam Tiruvenkata Chariar, membro externo do Śuddha Dharma Maṇḍalam, antes mesmo de sua constituição oficial (1915).

A Bhagavad Gītā do Śuddha Dharma Maṇḍalam, apresenta em sua introdução um minucioso estudo, de Dr. Sir S. Subrahmania Iyer Avergal (vice-presidente da Sociedade Teosófica entre 1907 e 1911), sobre a estrutura quaternária dos textos sagrados que tratam da Unidade da Trindade, conforme representada no Praṇava OM. Segundo Subramania, a mesma estaria presente, tanto no antigo Bhārata de vinte e quatro mil ślokas, origem ao atual Mahābhārata, como na Bhagavad Gītā, que não seria outra senão esta que agora o Maṇḍalam apresentava ao mundo. Independentemente desta desnecessária defesa da legitimidade da versão de 745 versos do Maṇḍalam, é importante destacar na Introdução de Subramania os seguintes dois pontos: (1) a afirmação de que as duas versões da Bhagavad Gītā não se afastam ou desviam uma da outra em nenhum ponto, uma vez que os versos adicionais foram extraídos diretamente do Mahābhārata, acrescentando apenas simetria e completude; e (2) que o valor desta nova versão reside, principalmente, em respeitar a divisão em vinte e seis capítulos, utilizada na Śrī Bhagavadgītā Bhāṣyopetā do Adhikāra-puruṣa (autoridade espiritual) Haṁsa Yogi (nome que designa, não uma pessoa, mas o título do seu cargo na hierarquia espiritual). Vou me deter, por ora, neste segundo ponto, reservando para um próximo artigo a discussão em torno da comparação entre as duas versões da Bhagavad Gītā.

A Upodhgāta (Introdução) da Śrī Bhagavadgītā Bhāṣyopetā discorre sobre a síntese do dharma, expresso de modo dual como pravṛtti dharma (funcionamento objetivo, exteriorização) e nivṛtti dharma (funcionamento subjetivo, interiorização). Krishna discute na Bhagavad Gītā sobre estes dois aspectos da ação humana, entendidos até então, principalmente no seio do ​Vedānta, como mutuamente exclusivos: pravṛtti (movimento de exteriorização, ou de ação concreta na realidade objetiva) e nivṛtti (subjetivo; movimento de interiorização – ou de “não-ação” –, decorrente do entendimento e controle de todo o processo de formação da vontade). De acordo com a Śrī Bhagavadgītā Bhāṣyopetā, pravṛtti e nivṛtti compõem as duas asas necessárias ao voo rumo ao sagrado, os dois eixos do gradual processo de síntese dialética de toda a atividade humana.

Os termos "kāṇḍa" (seção, capítulo) e "khaṇḍa" (parte, capítulo) designam as disciplinas ou exposições (adhyāya) relativas à ciência dos tattvas (princípios fundamentais da realidade). Daí decorre a divisão temática dos versos da Bhagavad Gītā conforme quatro pilares (Jñāna Ṣaṭkaṁ, Bhakti Ṣaṭkaṁ, Karma Ṣaṭkaṁ e Yoga Ṣaṭkaṁ), de seis (ṣaṭka) capítulos (kāṇḍas). Haṁsa Yogi afirma estar retomando, pedagogicamente, à divisão original em vinte e quatro capítulos, adicionada de dois capítulos sobre o Praṇava OM – um capítulo introdutório e outro de conclusão, resultando nos vinte e seis capítulos da presente edição. O Praṇava OM (A-U-M) – origem e causa do universo, presente no coração de todos os seres, e transcendendo aos aspectos de Ser e Não-Ser – é exaltado em sua natureza quádrupla (a Trindade: A-U-M; e a Unidade: OM), manifestando-se como  (1) pensamento, (2) devoção, (3) atividade e (4) síntese e originando os processos relativos (1) ao conhecimento, (2) ao poder da vontade, (3) à capacidade realizadora e (4) ao estado de meditação e intuição divina.

Subramanya destaca em sua Introdução que a razão para a divisão da Bhagavad Gītā em vinte e quatro capítulos relaciona-se com a própria natureza quádrupla do Praṇava OM (Trindade e Unidade), bem como da métrica conhecida como Gāyatrī (vinte e quatro sílabas, em geral, em tripletos de oito sílabas), expressa no Gāyatrī-Mantra: – tat/ sa-vi-tur/ va-re-ṇi-yam/ bhar-go/ de-va-sya/ dhi-ma-hi/ dhi-yo/ yo/ naḥ/ pra-co-da-yāt. Há uma longa tradição de composição estabelecida em analogias ao Gāyatrī-Mantra, uma vez que a epistemologia Sāṁkhya afirma que os vinte e quatro tattvas surgiram na matéria por ação dessa energia, ou Śakti de Brahman.  A expressão “Gāyatrī” é composta de “Ga”, que significa entoar, e “Yatri”, que significa proteção.  Atribuído a Vishwamitra, o Gāyatrī-Mantra consiste do verso 3.62.10 do Ṛg Veda, onde não aparece a expressão “Oṃ Bhūr Bhuvaḥ Svaḥ”, acrescida ao mantra posteriormente. O Gāyatrī-Mantra representa a invocação da proteção da Śakti, ou do Poder Supremo, personificada como a divindade Sāvitrī, o deus Sol. Na Bhagavad Gītā, o próprio Krishna diz que, entre todos os mantras, ele representa o Gāyatrī-Mantra.

Os vinte e quatro tattvas onde repousa o ser estão presentes na Bhagavad Gītā, como se vê, por exemplo, no verso BhG 13.5, que na edição do Maṇḍalam aparece como SDM 21.6. São eles:
(BhG 13.5 e SDM 21.6) Os cinco Elementos Primordiais (Mahābhūtas, ou protótipos daquilo que no plano físico é percebido como éter, ar, fogo, água e terra); o princípio de identidade (Ahaṅkāra: ego); o intelecto ou intuição (Buddhi); a Natureza Fundamental e Imanifestada (Mūla Prakṛti; Avyaktam); os Dez Sentidos (Indriyas: cinco jñāna-indriyas: olho, orelha, pele, língua e nariz; e cinco karma-indriyas: mão, pé, boca, anus e órgão genital) mais o Sentido Singular (Manas, a mente); e os Cinco Componentes Vibratórios que regulam os Objetos dos Sentidos (Tanmātras: luz, som, toque, gosto e odor).
Os vinte e quatro tattvas, descritos acima, são classificados em dois grupos (BhG 7.5 e SDM 12.5): (1) Parāprakṛti (a natureza material sutil e superior), constituída pelo Avyaktam (não-manifestado), ou o tattva (elemento) da matéria não manifestada e (2) e Aparāprakṛti (a natureza material), que envolve os demais constituintes materiais. A Parāprakṛti é também conhecida como Jīvabhūta (origem da vida), isto é, a origem de todo o universo, o grupo Aparāprakṛti. Compondo a arquitetura do corpo (kṣetra), os vinte e quatro tattvas funcionam como o veículo de manifestação do Princípio de Consciência e Vida (kṣetrajña), o vigésimo quinto tattva. Conforme o Paṇḍit Srinivasachariar destaca em seu Prefácio à Bhagavad Gītā do Maṇḍalam, os vinte e quatro tattvas estão presentes na raiz de todas as artes e ciências, as quais se classificam de acordo com os mesmos, representando, juntamente com o Praṇava AUM (o vigésimo quinto tattva, também conhecido como Puruṣa), o tema da Bhagavad Gītā – ou seja, a resposta de Krishna às dúvidas de Arjuna relativas ao Parabrahman. A Bhagavad Gītā, portanto, seria a própria expressão do Gāyatrī-Mantra. Daí se dizer que, de todas as artes e ciências, a Gāyatrī de quatro pés é a mãe; e o Praṇava, o pai.

Dentre os trabalhos disponíveis para se compreender a Bhagavad Gītā à luz do texto de Haṁsa Yogi, encontra-se o livro The Heart-Doctrine of Sri Bhagavad Gita & Its Message, de Vasudeva Row (1938). O texto discute a versão da Bhagavad Gītā do Maṇḍalam e, logo em suas páginas iniciais, afirma que o seu tema principal é a realização de Brahman (Brahma-prāpti, considerado o quinto puruṣārtha) e que esta é função de śraddhā (o compassivo sentimento sintrópico, a espiritualidade pura, a fé interior, o ardor do amor em ação e o esforço de convergência para Brahma-prāpti)Esta afirmação sobre a centralidade de śraddhā, que no texto de Vasudeva Row aparece como mera especulação, é demonstrada como tese, válida para ambas as recensões da Bhagavad Gītā, em "Śraddhā in the Bhagavad Gītā" (2007). Se a versão clássica respeita a psicologia de Arjuna e a ordem natural de suas dúvidas, a recensão do Maṇḍalam constituí-se, de forma pedagógica, como uma arrumação temática em consonância com o comentário de Haṁsa Yogi. As diferenças entre os dois textos não são propriamente de conteúdo, mas de apresentação. Em ambos os textos, contudo, śraddhā destaca-se como a chave e a condição necessária e suficiente para se alcançar a realização.

O estudo de Vasudeva Row sobre a versão da Bhagavad Gītā do Maṇḍalam constitui um roteiro simples e claro dos meios discutidos por Haṁsa Yogi para se alcançar a Brahma-prāpti. Daí decorre a sua importância fundamental. De acordo com a epistemologia śuddha sāṁkhya, exposta por Haṁsa Yogi e discutida por Vasudeva Row, as faculdades de que dispomos para alcançar a Brahma-prāpti são quatro: (1) faculdade dos sentidos (indriyas); (2) mente emocional (manas); (3) faculdade cognitiva (buddhi ou jñāna), e (4) faculdade sintética (yoga). E os nossos esforços de convergência para a Brahma-prāpti dão-se em termos de: (1) conhecimento (jñāna), (2) desejo (icchā, bhakti) e (3) ação (karma), que culminam em (4)  síntese (yoga), como o ATO (kriyā). Todo ATO sempre envolve, em alguma medida, a conjunção de seus três constituintes: (1) o conhecimento dos meios, (2) o anseio de realização e (3) o esforço na prática.  Vasudeva Row explica que quando o ATO em questão refere-se à realização da Brahma-prāpti, seus constituintes refletem a natureza última desta realização do sagrado, sendo designados, respectivamente, de (1) Brahma Jñāna, (2) Brahma Bhakti e (3) Brahma Karma. Essa é a natureza do (4) Brahma Yoga que conduz à Brahma-prāpti, conforme discutido na Bhagavad Gītā.  Cada um desses tópicos é tratado, separadamente, nos quatro grupos de seis capítulos (Ṣaṭka) da versão da Bhagavad Gītā publicada pelo Maṇḍalam, designados, respectivamente, de: (1) Jñāna Ṣaṭka, (2) Bhakti Ṣaṭka, (3) Karma Ṣaṭka, e (4) Yoga Ṣaṭka.

Em suma, um dos maiores méritos da recensão do texto da Bhagavad Gītā, extraída da Śrī Bhagavadgītā Bhāṣyopetā, está em sua cuidadosa estruturação que, além de explicitar a tripla natureza do śuddha sāṁkhya, previne contra os argumentos falaciosos, tais quais os levantados, por exemplo, por Śāṁkara em defesa do kevala sāṁkhya (via exclusiva do conhecimento) que constitui o Advaita Vedānta. Śāṁkara critica o entendimento do śuddha sāṁkhya, já presente na tradição de comentaristas que o antecederam. Entretanto, uma vez que o seu comentário é o mais antigo que chegou até nós, pouco se saberia desta tradição, não fosse pela Śrī Bhagavadgītā Bhāṣyopetā e, consequentemente, por esta nova recensão da Bhagavad Gītā, editada pelo Śuddha Dharma Maṇḍalam. Todos os manuscritos dos comentários à Bhagavad Gītā anteriores a Śāṁkara se perderam. O próprio Śāṁkara, todavia, refere-se à eles em sua Srīmad Bhagavad Gītā Bhāṣya (comentário ao texto da Gītā). A sua Bhāṣya é uma crítica ao entendimento do seu antecessor de que a Bhagavad Gītā propõe a via de síntese dialética entre as vias da ação e da não-ação (jñāna-karma-samuccaya-vāda), aqui denominada de śuddha sāṁkhya.

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(1) Para conhecer a pronúncia das palavras sânscritas veja o nosso resumo do Guia de Transliteração e Pronúncia das palavras sânscritas.


Rio de Janeiro, 07 de janeiro de 2019.
(Atualizado em 14.10.23)

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