2016-10-03

Ensaio Autobiográfico

Este Diário é a bússola anti-psicanalítica de que me valho para alcançar o porto seguro do Ser.
Ashram Ātma
Até onde consigo me recordar, foi em 1972, após completar quinze anos de idade, que despertei para a espiritualidade pura e os valores do sagrado coração. Nesse ano, se não me falha a memória, assisti Siddhartha e, em seguida, li o livro homônimo de Hermann Hesse, que deu origem ao filme. A partir de Hermann Hesse, descobri Krishnamurti, Vivekananda e vários outros expoentes da Teosofia e do neo-Vedanta então em voga. Foi, contudo, por intermédio do meu falecido tio Sérgio Barretto, que vim a conhecer as práticas de meditação. Costumava passar as férias escolares em Ribeirão Preto e gostava de conversar sobre espiritualidade com ele. Percebendo o meu interesse crescente no assunto, ele logo me indicou o antigo Ashram Sarva Mangalam, dirigido pela Marinês Peçanha de Figueiredo e que funcionava em um casarão, na esquina da rua Aurélia com as ruas Heitor Penteado e Cerro Corá, no bairro da Pompéia, em São Paulo. Ali conheci o saudoso Sri Vajera, que estava de passagem pelo Brasil. Algumas semanas depois, mais precisamente em 25 de agosto de 1974, fui iniciado por ele no Śuddha Rāja Yoga. A partir desta data as práticas de meditação passaram a ocupar um lugar central em minha vida pessoal e acadêmica. É desta simbiose entre a teoria, entendida em seu sentido original, e a experiência pessoal com as práticas de meditação que pretendo tratar, brevemente, nas linhas que se seguem. O entendimento mais superficial e raso e que persiste até hoje, opondo de forma radical a teoria e a práxis, surge apenas com ​a filosofia do hilemorfismo,​ proposta por Aristóteles, segundo a qual todas as coisas ​seriam compostas, exclusivamente, de matéria (hyle) e forma (morphe)​.​ ​Para Aristóteles, a teoria representa a busca de conhecimento por mero prazer e deleite pessoal, enquanto a práxis envolve a aplicação dos conhecimentos teóricos em consonância com uma conduta moral e ética. A teoria estaria restrita ao domínio da forma; e a práxis, ao domínio da vida material. Originalmente, contudo, o termo grego "theoria" já denotava ​a ​contemplação ​amorosa ​e desapaixonada, acessível, unicamente, àqueles capazes de subjugar as suas emoções e desejos, de modo que o intelecto pudesse funcionar, na práxis, sob a luz do Espírito. 

Minha primeira experiência verdadeiramente espiritual e impactante, se posso chamar assim, deu-se quando eu era ainda muito jovem e fui conhecer, em janeiro de 1979, a convite do Instrutor do Ashram Ātma, Francisco Barreto, o núcleo inicial do Śuddha Sabhā Ātma. A vida de Francisco e o próprio Ashram Ātma pareciam um experimento de transcendência. Foi ali que comecei a escrever, em consonância com o que prevê a disciplina dos Śuddha Yogis, as primeiras linhas do meu diário da consciência. Embora tivesse chegado à Escola Śuddha em 1974, pelas mãos do próprio Instrutor Continental, Sri Vajera, um dos pioneiros do movimento espiritualista e introdutor, ainda nos idos de 1920, das práticas de meditação na América Latina e Brasil, não tinha, até então, me dado conta da importância de manter um diário para refletir sobre as experiências que nos aproximam da transcendência. Algumas destas reflexões constam do livro Síndrome do Pânico: Aprendendo com a pedagogia da dor (Ed. Litteris: 1998), escrito entre 1987 e 1990, período em que trabalhei como voluntário no Śuddha Sabhā Ātma. É desta época também a escolha dos seguintes versos de Fernando Pessoa para definir o meu sentimento em relação à transcendência:
A terra é feita de céu,
a mentira não tem ninho.
Nunca ninguém se perdeu,
tudo é verdade e caminho.
Este Diário é a bússola anti-psicanalítica de que me valho para alcançar o porto seguro do Ser.
Estes versos me sugeriam que era sempre possível reinterpretar a realidade sem os seus contornos, sem a ilusória noção de nitidez, tal como se vê, por exemplo, em um quadro de Monet, onde o objeto representado se mostra antes ao coração que à razão. Eles expressavam o meu entendimento do Śuddha Yoga revelado por Krishna a Arjuna no texto da Bhagavad Gītā – a Escritura Sagrada, por excelência, da arte da meditação e da ciência transcendental. Arjuna e Krishna representam as figuras arquetípicas que representam o processo de transcendência. O diálogo de ambos elimina os contornos da realidade material, que nos dão a falsa sensação de nitidez e certeza. A Bhagavad Gītā faz parte da literatura sagrada da Índia, conhecida como Śruti (escuta) e Smṛti (memória). Ela se constitui de uma pequena narrativa, de 700 versos, que ocorre dentro da narrativa maior, de 100.000 versos, do épico indiano Mahābhārata. Escuta e memória são fundamentais. 

A redação do livro foi a forma que encontrei para exercitar esta escuta interior. Chega a idade em que todos começamos a avaliar a vida. Fazemos um balanço e vamos compondo um roteiro com as experiências acumuladas. Em geral, iniciamos esse roteiro quando sentimos que nos aproximamos da morte, ou seja, quando já é muito tarde para se poder apreciar sem pressa o filme de nossa própria história. Se queremos extrair desse filme o registro das experiências que a vida nos ofereceu, contudo, o mais apropriado é iniciar o quanto antes este balanço, onde nos vemos, frente a frente, a nós mesmos, com todos os nossos medos. Onde ficamos em falta? O que faltou corrigir? Este balanço nos prepara gradativamente para enfrentar o mistério da morte sem receio de nada e com a certeza que tiramos da vida o proveito e as experiências de que necessitávamos.

A seguinte passagem da Introdução ilustra este processo:
Tendo adoecido da alma, um dia também precisei inventar um deus. Dei-lhe o nome de Amor. Criei em mim aquilo que se costuma rotular de alienação. Mas era uma alienação por amor e, assim, por ela me deixei governar. Em latim, “outro” se diz alienus. É crítica e lugar comum nos dias de hoje a afirmação de que os homens se alienam. Com isto pretende-se dizer que os homens criam ou produzem alguma coisa dando-lhe independência para que exista por si mesma, e então deixam-se governar por ela, como se ela tivesse poder em si mesma. Esta, por exemplo, a crítica marxista sobre a alienação social. Marx chamava a ação sociopolítica e histórica de práxis; e o desconhecimento de sua origem e suas causas, alienação. (Síndrome do Pânico; p. 18)
A alienação no amor transcendental e altruísta representava a superação do seu entendimento polarizado, dual e egoísta, conforme expresso no pensamento de Marx. Via assim o deus-amor que criara ganhar realidade e concretude em minha própria práxis, tal como o fizera Cruz e Souza, o Cisne Negro. Antes de escrever, refletia e meditava sobre alguns de seus versos, presentes no livro Últimos Sonetos (1905), principalmente, nos sonetos “Crê!” e “Sorriso Interior”, este último considerado por muitos o seu testamento espiritual:
Crê!
Vê como a Dor te transcendentaliza!
Mas no fundo da Dor crê nobremente.
Transfigura o teu ser na força crente
Que tudo torna belo e diviniza.
Que seja a Crença uma celeste brisa
Inflando as velas dos batéis do Oriente
Do teu Sonho supremo, onipotente,
Que nos astros do céu se cristaliza. 
Tua alma e coração fiquem mais graves,
Iluminados por carinhos suaves,
Na doçura imortal sorrindo e crendo.. 
Oh! Crê! Toda a alma humana necessita
De uma Esfera de cânticos, bendita,
Para andar crendo e para andar gemendo!
Sorriso Interior 
O ser que é ser e que jamais vacila
Nas guerras imortais entra sem susto,
Leva consigo esse brasão augusto
Do grande amor, da nobre fé tranqüila. 
Os abismos carnais da triste argila
Ele os vence sem ânsias e sem custo...
Fica sereno, num sorriso justo,
Enquanto tudo em derredor oscila. 
Ondas interiores de grandeza
Dão-lhe essa glória em frente à Natureza,
Esse esplendor, todo esse largo eflúvio. 
O ser que é ser tranforma tudo em flores...
E para ironizar as próprias dores
Canta por entre as águas do Dilúvio!
Este Diário é a bússola anti-psicanalítica de que me valho para alcançar o porto seguro do Ser.
Cruz e Souza fazia uso do símbolo e dos seus desdobramentos para superar o entendimento dual e polarizado da realidade e assim alcançar um profundo estado de conforto espiritual. Em Cruz e Souza os aspectos exógenos e endógenos da vida se unificam e harmonizam, tal como se dá na Bhagavad Gītā. Seus versos nascem da coragem para os nobres enfrentamentos da decepção e da dor, que aceitara de forma compreensiva e amorosa. É desta capacidade de sublimação da dor que nasce a sua relação de intimidade com a estética do sublime, de onde afloram as intuições.  Cruz e Souza trata em seu diálogo sobre a arte, “Intuições”, que aparece no volume de poemas Evocações (1989), da intimidade com a mística das intuições. Toda a visão física esconderia uma penumbra de correspondência entre a arquitetura cósmica e a natureza de Deus. Haveria certo sentido de correspondência cifrada, a ser decifrada por nós, entre o mundo interior e a realidade exterior. Aí nesse gérmen da purificação ascensional que escapa aos materialistas como Marx, encontrava-se a semente da transcendência, gestada em seus versos. No texto “Um homem dormindo”, que também consta de Evocações, Cruz e Souza declara:
Entretanto, assim parecendo despreocupado dos segredos e signos da Vida, renunciando a tudo, agora, nesse aspecto de aparente tranquilidade simples do sono, ele está ali curiosamente, em fundas brumas, vivendo uma alta e íntima vida psíquica muito mais intensa, muito mais complexa e preocupada do que a outra.

Porque ninguém sabe que, a seu pesar, ele, por mil sutis combinações transcendentes e engenhosas do querer latente do seu organismo anelante deseja atingir, tocar e radiar entre as esferas siderais do majestoso Espírito.

Porque mesmo não há alma nenhuma, por mais vã, por mais humilde, por mais obscura que seja que não aspire subir, por secretos movimentos instintivos e intuitivos, que são as transfulgentes escadas do Abstrato, às transfiguradoras montanhas do Sonho, ao desenvolvimento melhor, à pura perfectibilidade; penetrar, consolada, alheando-se de tudo, nas transcendentalizantes auroras boreais do Sentimento, satisfazendo assim, embora inconscientemente, a ansiedade de Infinito que cada alma traz mais ou menos em si, por maior ou menor que seja a esfera de ação onde ela gravite.
Esta passagem de Cruz e Souza ilustra a complexidade da natureza humana. O texto revela o autor se descobrindo como um observador neutro, que aprendeu a contemplar o Ser, presente em si mesmo, e que está além dos antigos hábitos, antigas amizades, dos dissabores e de tudo que toma forma e vida em nossa mente, podendo tanto iluminar como assombrar o nosso caminho. 

O vídeo abaixo, gravado em 1971 para a televisão holandesa, apresenta um debate entre Chomsky e Foucault que nos revela um pouco da complexidade da mente humana.    

A natureza humana



Rio de Janeiro, 03 de outubro de 2016
(atualizado em 25.06.23)

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