2021-12-31

A Jornada do saṃsāra ao nirvāṇa em quarenta movimentos

​A Bhagavad Gītā no Mahābhārata:​
Sanjaya narra para o rei cego Dhritarashtra a revelação do Śuddha Yoga



As quarenta proposições a seguir ilustram como o Śuddha Yoga, revelado na Bhagavad Gītā sob a luz de śraddhā, nos conduz, por meio da arte e da ciência da meditação, do saṃsāra ao nirvāṇa. 

01. Cada novo dia é uma oportunidade de iniciação na heroica jornada do saṃsāra ao nirvāṇa. Para que esta iniciação ocorra e/ou se atualize, temos que tomar a resolução firme de não cair ante o desânimo e todas as demais dificuldades que forem se apresentando como provas, ou obstáculos, ao desabrochar de nossa śraddhā. Colocado em termos da filosofia grega, este desabrochar guarda semelhanças com o processo descrito na Alegoria da Caverna de Platão.

02. Para vermos com clareza as direções a tomar à medida em que desbravamos os mares e as florestas e selvas mais internas do ser, devemos nos preparar para lançar luz e iluminar o nosso próprio caminho.

03. Temos que nascer na noite de cada novo dia, com a disposição para compreender que cada movimento que fazemos representa uma forma de expressão da poderosa onipresença do sagrado.

04. Todo conhecimento deve ser praticado para revelar o sagrado processo sintrópico que regula amorosamente a vida toda do universo.

05. Quando compreendemos que todo o caminho pré-estabelecido é um descaminho e que todos os descaminhos não deixam de ser caminhos, nos aproximamos do momento em que o amor espiritual nasce em nossos corações, iluminando as nossas mentes.

06. Desse momento em diante, o que fora outrora a nossa loucura torna-se luz, a serviço de todos e de todas, tal como descreve a famosa Oração do Amanhecer, atribuída a São Francisco de Assis.

07. Como identificar e, verdadeiramente, entrar em sintonia com a silenciosa voz do espírito em nosso coração? Como identificar este poder revolucionário do ser, que nos liberta da prisão de saṃsāra e nos revela a realidade do nirvāṇa?


08. PRIMEIRA SÍNTESE: A convicção interior na luz do coração (śraddhā) funciona como uma bússola, que nos orienta em nossos primeiros passos rumo à verdade e à transcendência. Ela se torna força crente que tudo torna belo e diviniza.

 09. A Bhagavad Gītā descreve, integralmente, a jornada do saṃsāra ao nirvāṇa, conforme testemunhado por inúmeros espiritualistas e ascetas. Assim como as noites escuras revelam o brilho e a luz que vêm da lua e das estrelas, assim também, mesmo sob uma mente conturbada e turva, sempre existem pontinhos de luz, que podem ser cultivados e amplificados, por meio de uma vontade firme e de uma disciplina apropriada. 

10. O altruísmo protege a mente e possibilita que a meditação dê frutos, assim como as árvores no outono. Num primeiro momento, desenvolve-se a vontade de aprimoramento. É como se a árvore estivesse se renovando e florescendo. Num segundo momento, essa vontade forte produz frutos e as quedas não se repetem. Assim é a cura que se processa pelo coração: uma nova via vai se formando e a velha, aos poucos, se apagando.

11. Logo ganhamos serenidade para aceitar o que não podemos mudar, coragem para mudar o que for possível e "bom-senso" (com hífen) para saber diferenciar entre um e outro caso. Assim diz a oração de Reinhold Niebuhr, adotada pelo AA. Este bom-senso (com hífen), representa, diferentemente do bom senso (sem hífen), a base fundamental onde se assentam todas as expressões verdadeiras, justas e belas. Ao superar o que se entendia por bom senso, Descartes preparou o terreno para estabelecer o "bom-senso" como fundamento da consciência e do conhecimento.

Eu penso, portanto eu sou.
(Discurso do Método, 1637)
12. Para desenvolvermos o bom-senso que orientou as meditações cartesianas, temos que estabelecer o firme propósito e compromisso de exercer a escuta do coração. Esta escuta, resoluta e forte, só é possível por meio de śraddhā. Necessitamos coragem e honestidade para inquirirmos sobre o que nos aflige, verdadeiramente, com humildade e respeito. Devemos confessar para nós mesmos as nossas dúvidas, erros e o que pretendemos corrigir. Esta reflexão em forma de diálogo interior, que coloca todo o nosso conhecimento e todas as nossas crenças em xeque, nos conduzirá, no devido tempo, ao estado de meditação contemplativa superior, tal qual se deu com Arjuna no décimo primeiro capítulo da Bhagavad Gītā

13. A partir desse momento, tendo despertado para os valores o coração, seremos movidos pelo "bom-senso", a bússola que nos torna instrumentos do sagrado. Conforme ensina Teófano, o Recluso, em A Arte da Prece, "quando a consciência está dentro do coração, ali também está o Senhor; e assim os dois tornam-se um.

14. Este "bom-senso" nos faz perder o interesse nos atrativos do mundo e convergir para a pura morada do Ser, que nos revela a nós mesmos. E assim vamos nos tornando a cura, não apenas para nós mesmos, mas para todos aqueles ao nosso alcance. 

15. Está ao alcance de todos nós criar as condições necessárias à realização espiritual. Assim desenvolvemos a compreensão de que cada ser humano que atravessa o nosso caminho representa, potencialmente, um guru. Esta humildade, que nos torna aprendizes da vida, por meio de todas as experiências que ela nos oferece, é uma das marcas características dos verdadeiros gurus, que já alcançaram a condição de mestres de si mesmos.

16. SEGUNDA SÍNTESE: A Bhagavad Gītā desenvolve a arte e a ciência da meditação sob a forma de um diálogo, que tem como espinha dorsal o conceito de śraddhā – o compassivo sentimento sintrópico, que define a Cultura Sintrópica e a sua práxis e se traduz como o princípio da confiança e da prudência, a bússola interior que acompanha o movimento da compaixão, do amor e da verdade, iluminando a razão em seu processo de convergência para a Verdade e o Absoluto (Brahma-sāmīpya). Śraddhā é a bússola que nos indica o caminho da realização espiritual.

17. A jornada do saṃsāra ao nirvāṇa exige o desenvolvimento do poder de renúncia e entrega à vontade suprema. Sócrates, de forma heroica, ante a sua morte, referiu-se à cicuta, não como o veneno que lhe tiraria a vida, mas como o medicamento que lhe traria a libertação de sua alma. Jesus, igualmente, poderia ter evitado a cruz, mas não o fez. O próprio Buda, segundo alguns acreditam, próximo já de sua morte, ante o desespero dos seus discípulos, em especial, de Ananda, teria dito: "O que mais a comunidade pode esperar de mim? Já ensinei a vocês tudo o que sei. Chegou o tempo de vocês se tornarem ilhas de refúgio para si mesmos, sem dependerem de mim. A Verdade deve ser o refúgio, e nada além disso." 

18. Todos nós vivemos, em maior ou menor medida, submetidos à intoxicação cultural e mediática do mundo de saṃsāra, que nos impede vislumbrar o universo de nirvāṇa. Daí a necessidade de sermos constantes em nossa vigília e disciplina em relação aos estímulos que nos chegam pelos sentidos.

19. A vigília nos dá foco e aumenta o nosso poder de enfrentar os desafios que a vida nos apresenta. Por isto, no Mahābhārata, no momento que antecede o início da Bhagavad Gītā, Krishna pede a Arjuna que entoe o Hino a Durgā.

20. Toda vez que quebramos nossos propósitos, enfraquecemos o nosso poder de concentração e meditação, pois permitimos que a mente se desvie do coração e fique oscilando, sem controle, ao sabor dos desejos. A grande maioria de nós ainda não conseguiu vencer essa batalha, que significa sempre dar precedência aos nossos anseios altruístas (Śreyas).

21. Para alcançar a maestria sobre as ações, necessitamos exercitar a arte de amar, que nos dá a compreensão de que o interior e o exterior são os dois lados de uma mesma moeda. Quando a mente se aquieta no coração, ocorre esta unificação, a transcendência sobre a realidade dual de saṃsāra.

 22. As verdades intuitivas (pratyakṣa) surgem na mente (citta) quando controlamos e harmonizamos (nirodha) a sua atividade (vṛtti) por meio da prática de meditação. O iogue, de mente disciplinada, age no mundo harmonizando as posições contrárias (tese ou sañkalpa e antítese ou vikalpa) e estabelecendo novas sínteses (anukalpa).

23. Daí decorre a práxis da filosofia do coração, elaborada por Krishna ao longo do Mahābhārata e equacionada na Bhagavad Gītā como uma fenomenologia da consciência amorosa.

24. TERCEIRA SÍNTESE: Quando nos identificamos com o fogo ardente do coração, experimentamos a vida toda como uma expressão do sagrado. Tudo isto que fez o Cristo e ainda mais, segundo as suas próprias palavras, podemos  também realizar, se a nossa mente aprender a residir e se estabelecer, sem oscilar, no coração, onde habita o Espírito

25. Não é possível avançar pela via do saṃsāra ao nirvāṇa e desenvolver os estados de meditação e paz enquanto o coração estiver intoxicado com sentimentos negativos. Denomina-se como "bhāvana" (adjetivo/substantivo) e "bhāvanā" (substantivo feminino) o convite para que "cultivemos" pensamentos e sentimentos que purifiquem os nossos corações.

26. É o estado de paz, oriundo das práticas de bhāvana, que indica o nosso progresso durante o processo de harmonização dos contrários que habitam em nós.

Representação da Gītopadeśa
27. Conforme o ensinamento iniciático da Bhagavad Gītā (Gītopadeśa)é o engajamento decidido e corajoso na práxis sintrópica (śuddha yoga) de síntese dos opostos, que nos conduz, dos estados de depressão e desânimo, típicos daqueles desprovidos de śraddhā, para os estados de entusiasmo e força interior, que caracterizam aqueles providos de śraddhā.

28. O estado de nirvāṇa dissolve a percepção do mundo que considerávamos real e concreto (saṃsāra) e promove a  síntese (yoga), entre a nossa práxis externa (karma) e interna (dhyāna).

29. Quando se alcança este yoga (síntese), percebe-se a função sagrada daquilo que antes víamos como "o mal" em nossas vidas. Alcança-se, deste modo, o entendimento da cadeia causal e sintrópica que envolve todos os pares de opostos, que colocam à prova as nossas virtudes.

Aprendendo com Francisco Barreto em dezembro de 2006:
"Primeiro ser; depois fazer; e só então, dizer..."
30. Quem nunca se sentiu, em algum momento da vida, extremamente só e com vontade de desistir? Até que alcancemos o estado de Perfeita Alegria  ficamos todos sujeitos às contradições do universo dual. Contudo, nenhum filho de Deus fica esquecido e sem o auxílio espiritual para transcender o sofrimento e alcançar a participação na vida divina. Diz o grande sábio budista Śāntideva, “para a mente debilitada, até mesmo uma dificuldade insignificante representa um opressor tirânico.”  (Bodhicaryavatara, 7:52). 

31. Para alcançar o nirvāṇa, devemos cultivar śraddhā, a bússola interior que nos orienta ao nirvāṇa. O que é śraddhā senão a capacidade de empreender, conforme a luz do coração, o que é mais meritório? O que é śraddhā senão a própria força de vontade para fazer de cada minúscula ação um ato de amor puro e universal?

Quadro simbólico da sagrada síntese
da cultura universal de paz e amor.
32. QUARTA SÍNTESE: Tudo o que alcançaram os grandes seres e ainda mais, podemos também alcançar, se aprendermos a trilhar para o nosso interior e ali realizar a sagrada síntese do amor puro e impessoal, a única capaz de harmonizar todos os contrários.

33. A jornada do saṃsāra ao nirvāṇa desenvolve-se em consonância com a arte e a ciência de fazer de cada minúscula ação uma meditação sintrópica. Quando a mente fica serena como a superfície cristalina de um lago, ela reflete a nossa imagem real, bem como revela e deixa transparente tudo aquilo que jazia oculto e inacessível em suas profundezas – esta a função real e o objetivo principal das práticas de meditação

34. A busca da perfeição na ação disciplina a mente e melhora a qualidade da meditação. Uma mente distraída e indisciplinada é como a superfície de um lago revolto pelo vento – não reflete com clareza nenhuma imagem, nem torna transparente o que reside nas profundezas. A marca característica (lakṣaṇa) dos praticantes de meditação é a capacidade que desenvolvem de agir de forma amorosa e altruísta, em conformidade com a consciência da verdade e da justiça, expressões da lei sintrópica universal (Ṛta).

35. O Sutra do Coração (Hṛdaya Sūtra) do cânone budista, utilizado durante o caminho que leva à Perfeição da Sabedoria (Prajñā Pāramitā), termina com o seguinte mantra, utilizado para concentrar, purificar e pacificar a mente: Gate gate; Pāragate; Pārasaṁgate; Bodhi svāhā (veja aqui com Deva Premal)"Adiante e além; todos, adiante e além; rumo à outra margem; da maravilhosa iluminação!" A verdade sobre a realidade do ser e do mundo fenomênico só pode ser plenamente compreendida nesta outra margem, onde se encontra a sabedoria intuitiva (prajñā), acessível pela meditação.


Sākśī (sa, “com”; e akśa, “centro da roda, olho”) significa, “observador”, “testemunha”. Quando a roda gira, seu centro (akśa) permanece imóvel. O estado de Testemunha, Sākśī, expressa a capacidade de observar impassivelmente os eventos que fazem o mundo girar.
Há dois pássaros, dois bons amigos, que habitam a mesma árvore do Ser.
Um se alimenta dos frutos desta árvore; o outro apenas observa em silêncio.”
(Ṛigveda 1.164.20 e Muṇḍaka Upaniṣad 3.3.1)

36. Disciplina-se a mente e aprimora-se a meditação com o exercício ininterrupto de viver a vida com o espírito de testemunha, por meio do coração. Quando todo e qualquer estímulo, originado pelos contatos dos órgãos dos sentidos com o exterior, passar primeiro pelo coração, antes de se constituir como pensamento; quando todo o pensamento que vier a se instalar em nossa mente tiver antes passado pelo crivo do coração, então a mente estará unificada ao coração, tal como propõe a metáfora dos dois pássaros.

37. Assim como o raio de luz, quando concentrado, transforma-se em poderoso laser; assim também a mente unificada ao coração não se deixa distrair na experiência das coisas transitórias do mundo e logo alcança o nirvāṇa. Na Bhagavad Gītā, Arjuna e Krishna compartilham da mesma quadriga, simbolizando estes dois pássaros, que representam, respectivamente, a mente e o coração.

38. A Bhagavad Gītā afirma que educar a mente para a prática da meditação significa guiar-se no mundo pela bússola do coração. A mente que permanece nos sentidos, não se acalma, nem se beneficia da luz que se irradia do coração, sede do Espírito Santo. 

Śrī Kṛṣṇa Dvaipāyana Veda Vyāsa, 
compilador do Mahābhārata e da Bhagavad Gītā.
39. A base teórica deste entendimento da Bhagavad Gītā está formulada na tese "Śraddhā in the Bhagavad Gītā" (2007) e está ilustrada ao longo de todo este livro-blog, conforme explica o seu Prefácio.

40. QUINTA SÍNTESE: Assim como a lâmina de uma navalha não pode cortar a si mesma, a mente não se ilumina por ela mesma, mas pelo coração. A ação de meditar e a meditação na ação compõem a via da síntese, que harmoniza a mente, fazendo-a retirar-se dos objetos dos sentidos e residir no coração, fonte de toda śraddhā e poder de realização da essência mais pura (śuddha) do sagrado (dharma).
(Atualizado em 01.09.23)

Um comentário:

  1. Para os filósofos gregos depois dos mitos tudo começa a ser feito pela razão já agora tudo passa pelo coração sempre do coração a paz Samurai

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