2018-04-24

O que é a Prática do Bhāvana do Śuddha Rāja Yoga?

A Prática do Bhāvana1

Há dois termos técnicos muito próximos, presentes nos textos sagrados da Índia, tanto em sânscrito como no páli, que indicam o processo de desenvolvimento mental e contemplação. São eles: "bhāvana" e "bhāvanā". Ambos foram, originalmente, empregados no campo da agricultura, para designar o cultivo da terra. "Bhāvana" é um adjetivo e/ou substantivo neutro, que dá a ideia de desenvolvimento; enquanto "bhāvanā" é um substantivo feminino, que expressa a reflexão e a meditação budista. Ambos os termos referem-se à ideia de "cultivo", no sentido de se trazer algo à existência. Designavam, portanto, o cultivo da terra. O Senhor Buda os utilizou para explicar como cultivar o sentimento intuitivo e a meditação. Uma ideia que é cultivada, ou seja, colocada em prática com o devido fervor, tem mais valor que outra que permanece apenas como uma abstração teórica. Na prática do bhāvana procura-se externar o sentimento sintrópico de unidade e harmonia que decorre da meditação e se aperfeiçoa com ela. O bhāvana representa, portanto, a visualização e o reconhecimento da presença, em todas as coisas, da Essência do Sagrado. 

O conceito de bhāvana chega ao ocidente como esse elemento fundamental de universalização da meditação budista, com o significado de “cultivar, ou trazer para a existência o sentimento de identificação com a consciência de sagrado”.  No budismo, o mais comum é que o termo "bhāvanā" forme expressões junto a outro substantivo do idioma páli, como em “citta-bhāvanā” (desenvolvimento da consciência), “mettā-bhāvanā” (desenvolvimento do sentimento do amor e da compaixão), “paññā-bhāvanā” (desenvolvimento da sabedoria) e samādhi-bhāvanā (desenvolvimento do êxtase de sabedoria), para indicar o cultivo das habilidades necessárias à prática da meditação, que os mestres da Escola Theravada do Budismo classificam em “samatha-bhāvanā”, (desenvolvimento da tranquilidade) e “vipassanā-bhāvanā” (desenvolvimento da sabedoria intuitiva do coração; meditação vipassanā). Já no jainismo, em geral, o termo ocorre de forma isolada, “bhāvana”, com o sentido de “moral da estória”. O conceito de “bhāvana” com o sentido geral e abrangente de "concepção" e de "visão sistêmica do mundo", contudo, é anterior, tanto ao budismo como ao jainismo, estando já presente na cultura védica, desde as suas origens. 

Na pouco conhecida Bhāvana Upaniṣad, do Atharva Veda, por exemplo, o termo sânscrito “bhāvana” significa a capacidade de conceber, de cultivar em si mesmo, continuamente, com uma mente pura e imperturbável, a ciência divina, Brahma Vidyā. Nesta Upaniṣad, “bhāvana” aparece associado ao shaktismo pré-Védico (doutrina sobre o poder do aspecto feminino do sagrado, a Mãe Divina, origem de todas as formas), expressando a unidade entre o conhecedor, o conhecimento e a coisa conhecida. Em textos mais recentes, como o Śrīmad-Bhāgavatam (Bhāgavata Purāṇa), de Śrīla Vyāsadeva, que trata de Krisha como Vāsudeva, o Ser Supremo (Parameśvara; Īśvara) que reside no coração de todos os seres, o termo “bhāvana” e suas variações aparecem inúmeras vezes para designar: 

(i) o sentimento de uma mente absorta em felicidade (4.31.20);
(ii) as coisas que existem (3.26.49, 11.10.14-16, 11.13.31, 11.16.1, 11.19.15, 11.20.22, 11.21.7) e
(iii) o Ser Supremo, que é o dispensador de toda a graça (3.14.14, 3.20.49); que cria, mantém e protege a criação (10.1.3, 10.44.49, 10.51.35, 10.72.46, 10.64.5, 10.86.37 e 11.13.18, 11.30.1 e 12.6.48-49) ou atua no mundo como um instrutor (3.24.4).  

Cabe destacar que a variante sem acento na primeira vogal, “bhavana” (morada, palácio, criação), também ocorre várias vezes no Śrīmad-Bhāgavatam (3.1.10, 3.22.32, 3.23.11, 4.21.5, 4.9.58-60, 5.24.8, 5.24.9, 6.14.14, 8.17.9, 10.2.20, 10.41.20-23, 10.41.43, 10.48.36, 10.56.39, 10.59.38-39, 10.69.7-8, 10.71.31-32, 10.81.28, 10.89.52 e 11.6.31).  E não é incomum ocorrer na literatura a confusão de se tomar um termo pelo outro. 

Embora a divergência de sentido dentro de uma mesma escola também ocorra, em geral, os termos em sânscrito mantêm o seu significado essencial ao longo do tempo. “Bhāvana” deriva de “bhāva”, que significa “o vir-a-ser”, ou “o processo de manifestação do Ser real”, e representa o modo natural e correto de cultivar o campo (kṣetra) dos estados mentais, livre das influências dos sentidos.  A mente representa um campo que sempre pode ser cultivado para se alcançar um estado ativo de absorta concentração na realidade do momento presente. Resulta dessa noção o entendimento contemporâneo de bhāvana como a “atenção plena, no momento presente, à unidade da vida” e que os budistas referem como “vipassanā-bhāvanā” (a prática de meditação e também o insight sobre a natureza da realidade) e também “mindfulness”. Místicos contemporâneos do neo-Vedānta, como Ramana, de outro lado, mencionam o sentimento de bhāvana apenas como parte de um processo preliminar ao estado de dhyāna, ou meditação. Ramana define dhyāna como a capacidade de se manter em estado de sat-cit-ānanda-brahman (estado de existência real, consciência, graça espiritual e identidade com Brahman) o qual transcenderia o sentimento e o estado meramente imaginativo de bhāvana. Para Ramana, somente em dhyāna seria possível alcançar a real identificação com o Supremo, pois bhāvana ainda pertenceria ao plano dual da realidade, caracterizado pela dicotomia sujeito-objeto, representando apenas a atitude do sujeito que constrói o Supremo como um objeto do seu pensamento.

Arjuna, cultivando a consciência do sagrado.
Arjuna, o herói da Bhagavad Gītā,
cultivando o sentimento de unidade.
A Prática do Bhāvana do Śuddha Rāja Yoga

Designa-se com nome de bhāvana no Śuddha Rāja Yoga à seguinte ideação, oriunda do sentimento sintrópico de que tudo se origina do Supremo Espírito:
Cultivo o sentimento universal de amor de que todas as coisas surgem do Supremo Espírito, que a tudo compenetra e a tudo sustém em uma ordem constante e em vida eterna. Cultivo o sentimento universal de amor de que todos os seres, tanto inferiores como superiores, participam de uma mesma vida e formam nos espaços infinitos um só corpo cósmico.
Em seu Prólogo à edição chilena de Śuddha Rāja Yoga (1976), de Sri Haṃsa Yogi, Sri Vajera Yogi Dasa, introdutor da ciência da meditação na América Latina, nos idos de 1920, lembra da importância de “Bhāvana” (visão e  sentimento sintrópicos), que constitui, juntamente com os termos “Karma” (praxis sintrópica) e “Dhyāna” (meditação sintrópica) a base onde o próprio Śuddha Rāja Yoga se assenta.  Sem o sentimento de bhāvana, nem a atividade no mundo concreto (Karma), nem a meditação na essência e unidade de todas as coisas (Dhyāna), podem ser consideradas práticas perfeitas e completas. Na prática do bhāvana procura-se externar o sentimento sintrópico de que o universo constitui-se como a mais perfeita obra de arte. Não basta compreendê-lo pela razão. Torna-se necessário emocionar-se com ele, ou indignar-se, até, ante os casos de violência e injustiças. É o sentimento sintrópico que nos permite contemplar a vida e o universo como uma espécie de poema cósmico, onde o solo, os rios, a água, o ar que respiramos e a própria vida aparecem como partes de um todo sagrado e em perfeito equilíbrio. Nem a razão tecnicista da ciência do século passado, nem os antigos dogmas de fé possibilitaram esta solução, que passa por reaprender a olhar para este universo e para a vida como expressões do sagrado. Quando se trata a vida toda como sagrada, percebe-se que a Natureza cuida e zela por todos nós. O bhāvana representa, portanto, o reconhecimento da presença, em todas as coisas, da harmonia essencial (śuddha) da lei eterna (dharma). É a isto que se chama, verdadeiramente, de contemplação. Não se trata aqui da adoração a alguma divindade externa, mas desse esforço que nos conduz ao reconhecimento da presença do princípio da sintropia, harmonizando a realidade entrópica e tornando sagradas todas as coisas.

Haṃsa Yogi inicia o seu discurso sobre Rāja Yoga afirmando que o bhāvana (visão sintrópica) constitui o seu primeiro e mais importante componente, expressando a compreensão da Unidade que existe na criação inteira, incluindo todos os seres vivos, os distintos seres espirituais, o meio ambiente, os diversos planos sutis da existência e as suas leis de funcionamento. Argumenta que, no início, a prática do bhāvana aquieta e tranquiliza a mente para que esta possa se conduzir à sua realização espiritual, quando então ela se torna a expressão e a marca característica de quem alcançou a realização. Ele afirma que três coisas facilitam o desenvolvimento desse estado onde a consciência de bhāvana se desenvolve:
(1) o estudo da Ciência Sintética do Absoluto (Yoga Brahma Vidyā),
(2) a associação com pessoas que estão se esforçando para viver os mesmos ideais e
(3) a busca de aprimoramento da prática do bhāvana por meio do cultivo dos ensinamentos sobre o Śuddha Yoga, revelado por Krishna na Bhagavad Gītā. 
A disciplina espiritual de trazer à mente o sentimento de bhāvana, com o tempo, se confunde com os movimentos de exteriorização (bhāva) e interiorização (abhāva), inerentes à natureza própria do sagrado. É a esta experiência que nos identifica ao sagrado que se denomina, adequadamente, de bhāvana. Haṃsa Yogi deixa claro, contudo, que o conceito de bhāvana (ideação) não se confunde com o conceito de dhyāna (meditação), pois esta é indicativa de um estado fixo em que a mente se encontra absorta e imóvel. "Bhāvana", de outro lado, deriva de “bhāva”, “sentimento intuitivo”, “processo de vir-a-ser’. A prática do bhāvana procura externar o sentimento de unidade ("tudo é manifestação de Brahman") que decorre da meditação e que se aperfeiçoa com ela. O bhāvana representa, portanto, o reconhecimento da presença, em todas as coisas, da essência do sagrado, ou śuddha dharma.

Na Bhagavad Gītā (BhG), texto fundacional do Śuddha Yoga e que se propõe como uma síntese de todo o pensamento védico e não-védico, o termo “bhāvana” ocorre nos versos BhG 2.66, BhG 9.5 e BhG 10.15, que correspondem, respectivamente, aos versos ŚDM 18.15, ŚDM 17.5 e ŚDM 13.1 da Gītā Bhāṣya de Haṃsa Yogi, publicada pelo Śuddha Dharma Maṇḍalam (ŚDM). O capítulo 18 da recensão da Gītā Bhāṣya de Haṃsa Yogi é especialmente útil para esclarecer o significado de bhāvana. O texto inicia com a discussão sobre a natureza necessária e complementar de bhāva (exteriorização) e abhāva (interiorização).  Enquanto bhāva expressa o “o vir-a-ser”, abhāva representa a “cessação do vir-a-ser que é ilusório”, fruto de se cultivar o campo (kṣetra) dos estados mentais sob a influência enganosa dos órgãos dos sentidos.  Os versos das duas outras ocorrências do termo “bhāvana” na Bhagavad Gītā são BhG 9.5 (ŚDM 17.5) e BhG 10.15 (ŚDM 13.1). Em BhG 9.5 “bhāvana” indica o aspecto transcendental do Ser Universal, passível de representação apenas como o Īśvara, o Ser Supremo. E em BhG 10.15, “bhāvana”  designa a experiência do ser humano (na pessoa de Arjuna) com o Ser Supremo (na pessoa de Krishna), origem do cosmos, morador interno, presente em todos os seres, regente e protetor  das inúmeras formas de vida. 

Na prática do Bhāvana procura-se externar o sentimento de unidade (Tudo é manifestação de Brahman) que decorre da meditação e se aperfeiçoa com ela.  O Bhāvana representa, portanto, o reconhecimento da presença, em todas as coisas, da Essência do Sagrado.
Esquema da ordenação do pensamento (cintā)
Esquema da ordenação do pensamento (cintā)

A figura ao lado apresenta um pequeno esquema da ordenação do pensamento (cintā) realizado em 1987, quando procurava compreender a relação entre os três componentes do Śuddha Rāja Yoga. Vasudeva Row discute as cintās (pronuncia-se “tchintaas”) em um estudo que acompanha a tradução ao espanhol da obra Yoga Dīpikā (Madras: 1916), publicada pela seção chilena do Śuddha Dharma Maṇḍalam (1972). Afirma que a Brahma-cintā, ou seja, o esforço de contemplação da ideação (cintā) da projeção parcial do infinito Brahman durante o processo de manifestação do cosmos já é, por excelência, meditação (p. 161). Por estar na origem de tudo, tal ideação atua sobre as faculdades mentais, onde se originam as demais cintās, que compõem o Śuddha Rāja Yoga: Vibhūti-cintā (ideação ou percepção das excelências); Jñāna-cintā (reflexão sobre o conhecimento adquirido); Saṃkalpa-cintā (lembrança constante das resoluções tomadas) e Karma-cintā (exercício constante do modo correto de atuar).

Não é difícil perceber que as cinco cintās compõem as três bases onde se funda o Śuddha Rāja Yoga:

(1) a prática de bhāvana está compreendida nas duas primeiras cintās -- Vibhūti-cintā e Jñāna-cintā;
(2) aquilo que se entende por Karma está representado nas duas seguintes -- Saṃkalpa-cintā e Karma-cintā; e
(3) Brahma-cintā representa aquilo que está na raiz mesma de toda a criação, Dhyāna.

A prática do Śuddha Yoga resulta, simplesmente, em se deixar guiar pelo sentimento sintrópico da essência pura (śuddha) da lei (dharma) que rege o funcionamento do universo. Esta particularidade denota a sua natureza universal, que o distingue e, ao mesmo tempo, o unifica às demais modalidades de yoga e sistemas de pensamento. 

(1) Para conhecer a pronúncia das palavras sânscritas veja o nosso resumo do Guia de Transliteração e Pronúncia das palavras sânscritas.

Próximo texto: O que é a Ação (Karma) no contexto dos Seis Deveres Diários?

Rio de Janeiro, 24.04.18.
(Atualizado em 07.06.23)

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