2017-03-21

Convergindo para a Pura Morada do Ser (Mestre de Si Mesmo)

O Guardador de Rebanhos
Qual dos "eus" guarda o rebanho?
Pretendo refletir nos artigos deste capítulo sobre algumas das questões filosóficas abordadas no Mahābhārata e na Bhagavad Gītā e descrever como fui aprendendo, na prática, a exercer a escuta desta voz interior a quem Fernando Pessoa chamava de Alberto Caeiro, o seu mestre – "Mestre, meu mestre querido! Coração do meu corpo intelectual e inteiro!" Conforme o próprio Fernando Pessoa esclarece em Carta a Adolfo Casais Monteiro, em 13 de janeiro de 1935, "o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro", "foi o dia triunfal da minha vida".  Assim surgiu o seu consagrado O Guardador de Rebanhos.

 Alberto Caeiro é o "mestre" de Fernando Pessoa e de todos os seus heterônimos porque se fez mestre na arte de subordinar o pensamento ao sentimento, a marca característica de toda a filosofia do coração, tratada neste compêndio e exemplificada na práxis das pessoas que dão corpo a este capítulo. É a filosofia do coração conforme aqui retratada de diversas maneiras, que nos unifica ao todo e nos integra com a própria vida. É ela que permite a Alberto Caeiro libertar-se dos grilhões do mundo: a dor, a angústia da morte e a sensação de falta de sentido da vida. Tal como Arjuna na Bhagavad Gītā, Alberto Caeiro experimenta, diretamente, a partir do coração, a alegria de contemplar o que lhe aparece constituindo a realidade do mundo exterior em toda a sua beleza natural e sagrada. A sua única disciplina, por assim dizer, é não permitir a interferência de um pensar desprovido de sentimento – aquele mesmo pensar pessimista, representado por uma pseudo-racionalidade, ou seja, uma racionalidade inorgânica, mecânica, que nos torna doentes dos olhos e nos impede de perceber a racionalidade orgânica do coração. Daí Fernando Pessoa ter dito em sua carta a Adolfo Casais Monteiro, "desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre." E um pouco mais adiante:
Creio na existência de mundos superiores ao nosso e de habitantes desses mundos, em experiências de diversos graus de espiritualidade, subtilizando até se chegar a um Ente Supremo, que presumivelmente criou este mundo. Pode ser que haja outros Entes, igualmente Supremos, que hajam criado outros universos, e que esses universos coexistam com o nosso, interpenetradamente ou não. Por estas razões, e ainda outras, a Ordem Extrema do Ocultismo, ou seja, a Maçonaria, evita (excepto a Maçonaria anglo-saxónica) a expressão «Deus», dadas as suas implicações teológicas e populares, e prefere dizer «Grande Arquitecto do Universo», expressão que deixa em branco o problema de se Ele é criador, ou simples Governador do mundo. Dadas estas escalas de seres, não creio na comunicação directa com Deus, mas, segundo a nossa afinação espiritual, poderemos ir comunicando com seres cada vez mais altos.
Vela, incenso, rituais, mantras, danças e cantorias; ainda que todos estes e outros aparatos religiosos se acabem, esta classe de seres, à qual  pertence o próprio Fernando Pessoa, não se abala, pois nada afeta o que reconhecem como a verdadeira e única forma universal de religião: o sentimento de comunhão com a essência do sagrado (śuddha dharma) no imo de seus próprios corações. Os verdadeiros mestres deste mundo não costumam pertencer à classe sacerdotal. Não se apresentam, necessariamente, por meio de patentes, ou títulos, mas por suas obras. Neste presente capítulo apenas descrevo algumas experiências concretas com esta voz interior que nos revela pequenos sacerdotes do mundo e de nós mesmos, tal como o fez o próprio Fernando Pessoa, por meio do seu heterônimo Alberto Caieiro.

Desde a tradição védica é assim. Os verdadeiros sacerdotes são os mestres, guerreiros e poetas que se emanciparam da tradição ritualística e da mera erudição religiosa. Vivem de forma contemplativa e com alegria no coração. Esta é uma das grandes lições espirituais que Krishna transmite a Arjuna na Bhagavad Gītā. Krishna não era da classe sacerdotal. Buda e Jesus também não falavam como sacerdotes de nenhuma instituição. Contudo, eram verdadeiros mestres e sacerdotes. Atuando de forma sutil, discreta e quase invisível, ou apoiando reformas, tinham em mente a recuperação moral da sociedade e, inclusive, da classe sacerdotal, que não representavam. Os verdadeiros sacerdotes agem segundo a essência do sagrado (śuddha dharma), a partir do seu lugar na sociedade, qualquer que ele seja, sob a luz do coração que ilumina a razão. Integram-se nas leis do universo, rendendo-se ao destino e à ordem natural das coisas, tal como os rios, as árvores e tudo que é parte da natureza. Contrapõem ao vício do pensar desordenado a contemplação e a meditação. Atuam como livre pensadores, refutando a crença dogmática de que o significado das coisas possa ser algo distinto daquele aspecto revelado, unicamente, pela própria existência. Sempre guiados pela luz que irradiam de seus próprios corações, buscam a sintonia fina com aquela consciência interna que ordena os próprios pensamentos, dando sentido a todas as coisas. O verdadeiro sacerdote opera até mesmo disfarçado de sacerdote religioso, desta ou daquela instituição, mesmo que o seu coração já não possa pertencer a nada que divida os homens e a sociedade. Este parece ser o ponto de vista  que  Fernando Pessoa defende em sua carta a Adolfo Casais Monteiro, conforme se depreende da seguinte passagem:
Quanto a «iniciação» ou não, posso dizer-lhe só isto, que não sei se responde à sua pergunta: não pertenço a Ordem Iniciática nenhuma. A citação, epígrafe ao meu poema Eros e Psique, de um trecho (traduzido, pois o Ritual é em latim) do Ritual do Terceiro Grau da Ordem Templária de Portugal, indica simplesmente — o que é facto — que me foi permitido folhear os Rituais dos três primeiros graus dessa Ordem, extinta, ou em dormência desde cerca de 1881. 
 Tive o privilégio de conhecer pessoalmente nesta vida dois representantes desta elevada classe de seres espiritualistas (um deles ainda vivo e atuante) pertencentes a uma "Ordem, extinta, ou em dormência". É desta mesma matéria, em suma, que também trata o Mahābhārata, em especial em seu livro central, denominado  Bhagavad Gītā.




SUMÁRIO GERAL: A Arte e a Ciência da Meditação segundo a Bhagavad Gītā
Próximo texto: A superação da tradição "guru śiṣya paramparā"

Rio de Janeiro, 21 de março de 2017.
(Atualizado em 09.11.18)

4 comentários:

  1. Belíssimo texto, prof. Rubens! Destaquei em meu caderno vários trechos que falaram comigo... Gosto de pensar a espiritualidade desta forma desprendida de dogmas, mesmo quando nos voltamos aos textos das tradições, que é o caso aqui do blog. Quando você fala dos mestres como aqueles que "buscam sintonia fina com aquela consciência interna que ordena os próprios pensamentos, dando sentido às coisas", esse trecho achei muito especial. Esse tem sido o momento atual da minha vida, dar sentido as coisas! Inclusive foi o nome que dei a um blog que comecei a pouquinho tempo, o Que haja Sentido! Sigo na jornada, buscando essa escuta do coração como algo verdadeiro... Abraços!
    [esse aqui é o blog: quehajasentido.tumblr.com]

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    1. Grato, Isaabela! Vi também o seu blog. Gostei dos textos. Não sabia que você era estudante da Dança Clássica Indiana Odissi! Parabéns!

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  2. Belo reencontro este, através de seu texto, Professor, com meu querido Fernando Pessoa e seu sublime O guardador de rebanhos. Mais uma vez, parabéns pelo curso e pelo blog.

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