2023-06-06

O Sentimento Sintrópico (Śraddhā) do Espírito Humano (Ātman) e a sua Relação com a Razão (Buddhi e Manas) na Produção da Ciência Contemporânea (III)


III. Entropia, Sintropia e os Novos Paradigmas da Ciência

O sentimento intuitivo tem uma dimensão que ultrapassa os limites estabelecidos pelas nossas vestimentas culturais. Ele se estabelece a partir de um núcleo invariante do espírito que nos anima e define a nossa natureza. Manifesta-se mediado e filtrado pela nossa herança psíquica e instintiva, transmitida geneticamente de geração em geração e armazenada no inconsciente de cada ser humano. Jung refere-se a este espaço psíquico de onde surge o sentimento intuitivo de certeza como inconsciente coletivo, diferenciando-o do inconsciente freudiano, o repositório das experiências particulares de cada indivíduo. O sentimento intuitivo captura em uma imagem, que pode ser descrita como sagrada, aquilo que, num segundo momento, irá receber da razão uma formulação discursiva laica e lógica.

No dizer de Artur Barthelmess, o mundo emerge do caos após serem apartados os contrários – o Céu e a Terra. Deste modo, a vida nasce modelada do barro, tal como teria se dado com Adão. O Espírito anima a matéria, não surge desta. Em outras palavras, a Sintropia fecunda a Entropia, possibilitando a sua marcha. Sob este ponto de vista, a Biologia materialista, fruto da mera razão, nada mais alcança senão a realidade empírica e aparente que a constitui, ou seja, Māyā. O sentimento intuitivo elucida o jogo da Razão, que se deixa capturar por Māyā, a própria matéria de que é constituída a Razão. A Razão, por si só, não tem envergadura para acessar a verdade, do mesmo modo que Adão não a tinha para poder se alimentar da maçã sem se ferir de morte. É o sentimento sintrópico que, por partir da percepção sutil e intuitiva do aspecto de sagrado de todas as coisas, nos permite contemplá-las em sua unidade mais fundamental.

A ciência ocidental, contudo, ainda considera o sentimento intuitivo, próprio da alma e não da mente onde este se manifesta, como algo estranho e pertencente a outro domínio, ou seja, o domínio da metafísica e dos seus mitos. De qualquer modo, no ato de optar por alguma estratégia criativa, sempre somos conduzidos por algum obscuro instinto, relacionado ao “bom senso”, sem o qual, inclusive, sequer seria possível formular qualquer Lei. Tais sentimentos se desenvolvem, primeiro com a cultura, conforme a estrutura social dos diferentes povos; e segundo, em conformidade com o referencial axiológico prévio que define a conduta do indivíduo e expressa o seu nível de coerência entre o discurso e a prática.

A perspectiva da Termodinâmica, uma ciência dedutiva, sugere que a compreensão da evolução biológica escapa à ciência materialista e indutiva, que não deixa de ser metafísica, na medida em que professa o mito positivista do progresso. Contrariamente ao que esse mito indica, a crença gratuita, presente no pensamento dos séculos XIX e XX, de que a ciência e a sua racionalidade elevariam os níveis de qualidade e de sustentabilidade da vida no planeta não se concretizaram. E isto fez nascer o sentimento de que a ciência materialista é a responsável pelo recrudescimento da nossa desumanidade, pelo terror nuclear e pela destruição ambiental, conduzindo a humanidade para a sua destruição.

Não deixa de ser surpreendente que ainda não entendemos o papel fundamental que ocupa o sentimento intuitivo no desenvolvimento da verdadeira Ciência. A Razão material não possui o dom de inventar, apenas participa do roteiro da invenção. Contudo, quando se deixa iluminar pelo sentimento luminoso do Espírito, opera como se fosse o próprio, constituindo-se, então, legitimamente, como a guardiã da boa Ciência. O progresso da Ciência se faz mostrando como falsa a teoria que se pretende substituir por outra. Foi o trauma vivido no período Escolástico, fruto da fé (fides), que nos fez desacreditar do intuitivo sentimento sintrópico (śraddhā) e do seu papel na construção do saber científico. É preciso se compreender, contra a cultura religiosa ocidental, inclusive, que a razão científica de nada vale se não se percebe a reboque, não da fé, como quer a religião (conforme explicitado na expressão medieval de Santo Anselmo, fides quaerens intellectum), mas do sentimento intuitivo que lhe serve de luz e guia (conforme a expressão híbrida śraddhā quaerens intellectum que, corrige e atualiza a expressão medieval). Por si só, a Razão apenas monitora o processo criativo, não representa a sua origem, que se dá com o sentimento intuitivo, expresso com śraddhā, conforme temos argumentado em diversos artigos. Quando a razão entra em crise por perceber que os dados não se coadunam com o que seria de se esperar, o sentimento intuitivo se manifesta, desde que atendidos certos requisitos do espírito, e aponta em direção a uma nova solução.

A intuição que passa pelo crivo da razão ganha força e potência, pois passa pelo filtro que separa os mitos e as crenças tolas e ingênuas da alma humana daquelas que provêm da sua essência mais profunda. A Razão humana só é de utilidade na Ciência quando é bem-informada pelo Espírito que a anima. De outro modo, sucumbe ante qualquer paradoxo, tal como mostrou Zenão de Eléia (495-430 a.C.), que “provou” ser possível partir de pressupostos aceitáveis logicamente e, seguindo um raciocínio lógico, chegar a resultados absurdos e/ou desastrosos. Do ponto de vista lógico, cada novo conceito deriva de uma escolha intuitiva. Tais escolhas, que expressam sentimentos intuitivos, nos possibilitam estabelecer os nexos teoréticos. Elas nos mostram ainda o que, após ser filtrado pela cultura e pelas circunstâncias de tempo e lugar, seria, ou não, plausível.

Por exemplo, desde Tales de Mileto (c. 624 – 546 a. C) tem-se a formulação do pressuposto da Unidade do Universo. Caberia, portanto, à Ciência reduzir o entendimento que se tem da realidade múltipla à sua unidade fundamental, sugerindo que nada poderia existir de forma isolada e independente. A conceituação de buraco negro parece apontar na direção desse entendimento sistêmico e holístico da realidade. No interior do buraco negro, inacessível à pesquisa empírica, a presença da gravidade poderia, em tese, obrigar os raios de luz a convergirem, em vez de divergirem, o que diminuiria o nível de desordem nesse interior. Os raios se comportariam de forma inversa àquela observada no universo exterior, ou seja, atuariam em ordem crescente, aprimorando a organização do sistema e aumentando a sua complexidade, tal como ocorre com tudo o que é vivo. Curiosamente, a vida subsiste em um ambiente de natureza contrária à sua há bilhões de anos, com todas as transformações que ocorrem dentro do organismo vivo respeitando as leis da Física e da Química.

Quando a Ciência descarta a intuição e se apega unicamente à racionalidade lógica, torna-se incapaz de atender aos anseios humanos. Como dizia Karl Popper (1902-1998), a ciência deveria sempre questionar as suas próprias teorias, pois esta não se destina a provar que “temos razão”, mas, ao contrário, a mostrar as limitações dos nossos modelos teóricos.  Como se sabe, foi com Immanuel Kant (1724-1804) que o trauma causado pela Escolástica se amenizou. Em seu pensamento, a própria Razão vira, novamente, objeto de crítica, mas agora de uma forma nova, lembrando-nos de que o conjunto do campo do conhecimento racional é limitado, restringe-se aos fenômenos, não alcança a coisa em si. É somente com Jean Jacques Rousseau (1712-1778) que o Sentimento Intuitivo entra em cena na Europa. Tomando por pretexto o entendimento kantiano de que a Razão não apreende a coisa em si, passa-se a atribuir à Razão uma insuficiência radical que só poderia ser sanada com o auxílio do Sentimento, este entendido como uma revelação interior ao próprio sujeito.

Haveria no homem estes dois tipos de convicção: um oriundo de um sentimento interior; o outro, do raciocínio, não podendo este subsistir sem o primeiro. Abria-se, finalmente o caminho para se desenvolver as propostas de Blaise Pascal (1602-1662), segundo o qual, o coração teria razões que a própria razão desconhece. Logo se argumenta que o Sentimento, quando opera em sintonia com a Razão, a ilumina. Desta forma, Friedrich Hegel (l770-1831), em sua Tese "Sobre as Órbitas dos Planetas" (1801), pode argumentar que a obediência dos corpos celestes às trajetórias racionalmente calculadas comprovaria a identidade entre a Razão e a Natureza. Se René Descartes (1596-1650) chegara à expressão do cogito (penso; logo, sou/existo), que representa a primeira verdade irrefutável relativa ao sujeito, agora Hegel teria encontrado o mesmo grau de certeza em relação ao mundo objetivo, exterior ao sujeito.

A Razão ilumina-se, portanto, com este Sentimento novo da sua identidade com a Natureza. Estabelece-se deste modo uma ciência romântica e é esta que, em meados do século XIX, introduz na ciência o Primeiro e o Segundo Princípios da Termodinâmica. O período romântico da ciência dá início a um primeiro esboço da ciência sintrópica que começa agora, neste novo milênio, a se estabelecer de forma mais explícita. Ela nasce do equacionamento racional do sentimento intuitivo da nossa relação com o Universo, este entendido como um todo onde a realidade material, múltipla e finita, se harmoniza com o Espírito infinito que traz unidade para todas as coisas. Deste modo, agora de forma plena e científica, a consciência de infinito passa a ser experimentada pelo sujeito como um sentimento acerca da sua própria natureza.

Em conclusão, o presente ensaio parte do contexto e do desenvolvimento da práxis sintrópica para discutir a centralidade do Sentimento Sintrópico na boa ciência. O ensaio introduz a noção de Sentimento Sintrópico do Espírito Humano e destaca a sua importância na condução da Razão durante o processo de desenvolvimento da ciência. Ao explorar a interconexão entre o conhecimento da realidade material e o progresso espiritual do indivíduo e da sociedade, o ensaio enfatiza a importância de subordinar a razão lógica ao escrutínio dos sentimentos intuitivos e sintrópicos. Tal subordinação promove soluções holísticas e estimula a visão de mundo orgânica e sintrópica, capaz de impulsionar a ética, a sustentabilidade e o bem-estar humano. O estímulo ao reconhecimento do papel do Sentimento Sintrópico na produção de conhecimento abre um campo de estudos novo e promissor para o desenvolvimento harmônico e sustentável da ciência.



Nenhum comentário:

Postar um comentário