2023-07-01

Sintese da Práxis e da Meditação Sintrópicas em Dezoito Passos

​1. Tudo no universo é constituído por duas forças, dois princípios, ou leis, que se manifestam como energia: a entropia e a sintropia. O Oriente expressa o equilíbrio destas duas potências por meio de dois símbolos: um chinês, o Yin/Yang ([);  e o outro indiano, AUṂ (\).

​2. Há autores que aproximam estas duas representações. Um exemplo notável é encontrado no livro The Gospel of Sri Ramakrishna. O texto é uma compilação das conversas e ensinamentos do santo indiano Sri Ramakrishna, registrado por seu discípulo Mahendranath Gupta.

3. Ele utiliza o símbolo indiano pouco conhecido de dois peixes invertidos, similar ao símbolo chinês, para representar a dualidade entre o aspecto manifestado (aparente) e o aspecto não manifestado (essencial) do universo – um peixe branco, com olhos pretos; e outro preto, com olhos brancos:

"Aquele é o ser supremo,
E esta alma individual é o mesmo ser supremo.
Este ser supremo é quatro-quartos,
E esta alma individual também é quatro-quartos.
Estes dois peixes separam-se de onde a linha se encontra com a água
Da mesma forma, estas duas porções
Deste ser supremo separam-se quando este mundo se manifesta."

4. A expressão "quatro-quartos" se refere à natureza quadripartida da realidade, descrita na Māṇḍūkya Upaniṣad. Ela descreve quatro estados de consciência fundamentais. Cada "quarto" representa um estado específico de consciência: Jāgrat (estado de vigília); Svapna (estado de sonho): Suṣupti (estado de sono profundo): e Turīya (o estado de consciência transcendental).

​5. Ainda não há uma referência direta que associe a metáfora dos dois peixes à a  metáfora dos dois pássaros  que habitam na mesma árvore (Jīva e Ātman), encontrada no famoso hino conhecido como "Hino do Pássaro" (Sanskrit: "Śyena vāk") do Ṛigveda (1.164.20), a primeira imagem da história, que nos remete à ideia de meditação.

6. Ambas as metáforas sugerem que a realização interior começa com o cultivo em nossa mente do sentimento sintrópico (bhāvana), que nos conduz à contemplação (divyacakṣus) do Princípio Sintrópico (Ṛta) que rege o universo, conforme ilustrado no paradigmático capítulo XI da Bhagavad Gītā.

7. A realidade sintrópica (Ṛta) é ​descrita pela primeira vez nos Vedas. Ela é experimentada pelo sujeito (Jīva, o ser animado) enquanto sentimento e percepção da relação de equilíbrio, entre os processos entrópico (guṇa-para), característico do princípio material que rege o nosso corpo (ahamkāra, o ego), e sintrópico (ātma-para), característico do princípio espiritual que o anima (Ātman, o Ser).

8. Para aprender a senti-la e a contemplá-la, faz-se uso das práticas de meditação (dhyāna). Segundo alguns, o termo “dhyāna” deriva da raiz verbal “dhyai”, que significa “refletir”, “contemplar”, “meditar”. Segundo outros, “dhyāna” deriva da raiz verbal “dhi”, que indica o receptáculo, ou seja, a faculdade cognitiva da mente e os seus processos de percepção e compreensão, e de “yana”, que indica o seu movimento, a sua operação. Neste sentido, “dhyāna” envolve a boa operação da mente e o bom direcionamento do seu conteúdo, o fluxo mental.

9. A metáfora dos dois pássaros é objeto, direta ou indiretamente, de vinte Upaniṣades conhecidas em conjunto como “Yoga Upaniṣades”. Ela é tema, em especial, da Dhyānabindu Upaniṣad.

10. “Bindu” quer dizer “ponto” e se refere ao ponto (anusvāra) sobre o símbolo \ (AUṂ). Representa a Brahma Śakti (Ṃ), ou seja, a energia sintrópica, promotora da unificação do aspecto material e concreto da pessoa humana (U) com o seu aspecto espiritual e sagrado (A), a um só tempo imanente e transcendente. “Bindu” também significa "origem, raiz, semente", indicando que a Dhyānabindu Upaniṣad trata das origens da meditação.

11. A Dhyānabindu Upaniṣad trata da unificação dos dois pássaros descritos nos Vedas por meio de outra metáfora, relativa ao cisne “haṃsa”, conhecido pela sua capacidade de separar o leite que se encontra diluído na água. O termo “haṃsa” é também utilizado como uma representação onomatopeica do processo pendular de respiração. “Haṃ-sa, haṃ-sa”, representa o ininterrupto mantra da vida e simboliza a prática de meditação em Brahman. Daí se dizer que o mantra haṃsa simbolize o Dhyāna Mantra.

12. O diálogo da Bhagavad Gītā pode ser compreendido como um ensinamento iniciático (Gītopadeśa) para este processo de unificação dos dois pássaros, simbolizado pelo cisne haṃsa: a quadriga onde se encontram os dois protagonistas representa o corpo; Arjuna representa a alma, a pessoa (Nara); e Krishna, o Espírito, que transcende a noção de “pessoa” (Nārāyaṇa). Daí se dizer que o mantra OṂ NAMO NĀRĀYAṆĀYA simbolize a Bhagavad Gītā, constituindo-se, portanto, como o Gītā Mantra.

13. Em um primeiro momento, a meditação constitui-se como uma práxis interior, individual, silenciosa e solitária, que estimula a percepção e a compreensão da realidade subjetiva e, consequentemente, da falsa dicotomia entre sujeito e objeto. Em um segundo momento, quando da nossa interação com a realidade objetiva, a meditação torna-se o processo de "internalizar" todo o exterior. Torna-se “meditação em movimento”, ou seja, torna-se uma prática espiritual que visa dissolver a nossa percepção superficial e ilusória da realidade, em termos da falsa dicotomia interior-exterior.

14. A energia que nos anima e motiva, mais que as palavras, conduz o processo meditativo. A meditação começa com a sincronização desta energia vital por meio da respiração e avança como meditação em movimento, quando a nossa respiração se dá em sincronia com o ambiente, induzindo, inclusive, a sincronização da respiração daqueles sob a nossa esfera de influência. Deste modo, a energia, o prāṇa, se irradia do nosso ser e toca o coração dos demais, fazendo movimentar a consciência de cada um em direção à compreensão da realidade sintrópica que nos une e integra ao cosmos.

15. Enquanto o Mahābhārata se dá como uma representação do universo exterior, a Bhagavad Gītā se dá como uma metáfora para o universo interior. No Mahābhārata, há uma correspondência biunívoca entre os cinco pilares que orientam a práxis sintrópica (Saṃkalpa, Ṛṣi-nyāsa, Viniyoga, Satya Tyāga e Upasthāna) e os cinco modos de contemplar e sentir a unidade sintrópica do universo que promovem o estado meditativo (Vibhūti-cintā, Jñāna-cintā, Saṃkalpa-cintā, Karma-cintā e Brahma-cintā).

16. A meditação (dhyāna), em suma, resulta do cultivo dos estados mentais (cintās) associados ao sentimento (bhāvana) e à práxis (karma) sintrópicas:
1.Vibhūti-cintā, ou seja, o sentimento, a percepção e a ideação (cintā) das excelências (vibhūti) divinas que compõem o universo manifestado;
2. Jñāna-cintā, o sentimento intuitivo e a reflexão crítica e racional (cintā) sobre todo o conhecimento (jñāna) adquirido e testado na práxis do cotidiano;
3. Saṃkalpa-cintā, a lembrança constante (cintā) do compromisso na práxis (karma) com as resoluções (saṃkalpas) tomadas, de uma vez por todas e para sempre (Ananta he!);
4. Karma-cintā, a reflexão (cintā) na práxis sobre o modo correto de atuar no mundo (karma), fazendo de toda ação uma meditação na ação; e
5. Brahma-cintā, a percepção, ou o sentimento (bhāvana), e o esforço prático (karma) de ideação e adequação (cintā) ao processo sintrópico de manifestação do cosmos, que nos conduz ao estado de contemplação (dhyāna) do infinito Brahman. 
 
17. Tudo isto, conforme já vimos em textos anteriores, está sintetizado no Praṇava OṂ (AUṂ), que expressa o alento vital do cosmos, reverberando até hoje como o ruído de fundo do big bang, o som primordial do universo. O mantra OṂ (AUṂ) aponta para a energia sintrópica, a Śakti (Ṃ), que regula a vida, equilibrando a interação do espírito (A) na matéria (U), de forma dialética, e revelando, ao mesmo tempo, a identidade e a diferença entre a matéria e o espírito; entre o Ser (A) e o não Ser (U); entre o sujeito e o objeto; entre o interior e o exterior.

18. Este mantra sintetiza, em suma, a sintrópica arte e ciência da meditação, bem como a sua disciplina sêxtupla, ou Śaṭkarma, revelada pelos grandes yogis e místicos da tradição védica:
1. Adhyayana: o estudo sobre a essência do sagrado;
2. Adhyāpana:  a instrução aos demais sobre Adhyayana;
3. Yājña: a realização do sacrifício de si mesmo, que significa contemplar o Ser;
4. Yājana: a realização de sacrifícios pelo próximo. Significa o nosso esforço para ver e compreender o sagrado, sempre manifesto em todas as experiências da vida;
5. Dāna: a doação de si mesmo e a rendição ao Sagrado, que representa o verdadeiro ato de caridade; e
6. Pratigraha: a plena aceitação da graça, ou da Vontade Suprema.


(Atualizado em 14.07.23)

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