2016-10-02

Itihāsa: a mentoria segundo o cânone

A práxis sintrópica da filosofia do coração, revelada  na Bhagavad Gītā1, episódio central do Mahābhārata2, é discutida ao longo deste livro-blog a partir das experiências do autor. A cultura sintrópica não é algo que se transmite de forma passiva. Pelo contrário, é algo que se aprende de forma ativa quando se está disposto a ser o protagonista, na práxis, do seu próprio aprendizado. A maestria é antes uma habilidade prática que um conhecimento teórico. E o caminho para a maestria é feito de pequenos, mas constantes, passos. É deste entendimento que se segue a licença poética para utilizar o termo "Itihāsa" com o sentido de mentoria. "Itihāsa" indica, neste caso, o processo prático que objetiva emancipar o mentorado do seu mentor por meio da cultura sintrópica do Śuddha Yoga, que se funda na arte e na ciência da meditação, expostas por Krishna na Bhagavad Gītā. 

A marca característica fundamental e distintiva dos Itihāsas (iti-ha-āsa: literalmente, "assim, de fato, se deu") é o fato destas narrativas de caráter histórico mitológico representarem relatos testemunhados diretamente pelo autor, presente na trama como personagem. Itihāsa representa um estilo de narrativa em versos, de certa forma, semelhante ao Os Lusíadas, de Camões. Neste grande poema épico (8.816 versos simples) sobre o povo Luso, Camões narra a viagem às Índias, por "mares nunca dantes navegados", dos argonautas portugueses liderados por Vasco da Gama, mesclando elementos de história, religião e mitologia.  Para a Igreja, o poema serve-se da mitologia e do "politeísmo" dos indianos, unicamente, com o intuito de manter as verdades da santa fé. Daí ela entender Os Lusíadas como um instrumento da fé cristã e do seu ideal evangelizador. Contudo, é inegável que a narrativa poética de Camões acrescenta ao espírito católico o sentido histórico mitológico do ecletismo religioso, presente na cultura grega e também nos Itihāsas indianos – compostos, fundamentalmente, pelo Rāmāyaṇa (24.000 versos duplos) e pelo Mahābhārata (100.000 versos duplos).

As raízes da tradição (paramparā) de
​mentoria (guru śiṣya) perdem-se no tempo.
Mentoria representa aqui o processo de ancoragem e compartilhamento de experiências práticas sobre a cultura sintrópica e o conhecimento de natureza psico-sócio-ambiental, relevantes para o desenvolvimento integral do ser humano, onde leitor e narrador fundem-se na escuta da voz do coração. Representa um processo de parceria, que assegura ao leitor o acesso à bússola do seu próprio desenvolvimento e aprendizado. Entende-se por mentoria, neste contexto, a orientação que visa levar as pessoas a encontrarem, à luz da filosofia do coração, a voz da consciência sintrópica, que as orienta em direção à harmonia e a unidade. Deste modo, quando, por força do processo individual e interno, nos sentimos fragilizados e temerosos, somos convidados a mergulhar no silêncio e na contemplação, confiantes de que encontraremos em nosso próprio coração as respostas aos nossos problemas e a força necessária para implementar os devidos reajustes de comportamento. As raízes desta tradição (paramparā) de mentoria (guru śiṣya) sintrópica perdem-se no tempo. Estão presentes tanto na cultura grega (por exemplo, na Odisséia de Homero, quando Athena orienta Telemachus), como nas Upaniṣads da cultura védica, nos Sūtras do budismo, na tradição rabínica do judaísmo e no próprio discipulado da Igreja católica.

O Foco e a Metodologia da Mentoria: 
uma reflexão canônica sobre a práxis sintrópica do Śuddha Yoga

O foco da presente mentoria é a promoção da práxis sintrópica, que se funda na filosofia do coração do Śuddha Yoga e na arte e ciência da meditação, introduzidas por Krishna na Bhagavad Gītā.  A mentoria desenvolve-se a partir da experiência pessoal com o sagrado, bem como da análise textual de Escrituras Sagradas do período épico da Índia. A Bhagavad Gītā trata do processo de implementação da cultura sintrópica, ou do Śuddha Yoga, a partir de uma proposta de solução para a crise de Arjuna que unifica as esferas do público e do privado. A marca característica da práxis sintrópica é śraddhā, a inteligência espiritual que orienta o processo de tomada de decisão, encorajando-nos a viver a vida com transparência, de forma virtuosa, honesta e leal, segundo o caminho da verdade e do bem. O que define os grandes líderes como Krishna é a harmonia que demonstram entre as esferas de suas vidas pública e privada. Krishna mostra a Arjuna como alcançar esta harmonia por meio da práxis sintrópica e da meditação no Ser, fonte de amor. Agir com amor implica em falar apenas daquilo que se pratica, sem jamais permitir a contradição entre o discurso e a prática. O amor está na base do processo de tomada de decisão dos grandes líderes espirituais da história da humanidade.

O texto básico para se compreender o amor em ação, na práxis dialética e sintrópica, é a Bhagavad Gītā. Segundo Mahatma Gandhi, um profundo conhecedor da Bhagavad Gītā, todo o líder deve se tornar, ele mesmo, a mudança que ele deseja ver no mundo (veja aqui um vídeo ilustrativo). Um grande líder inspira condutas éticas. Ele não admite que o resultado do seu trabalho seja descolado do seu próprio exemplo de vida pessoal. Quando um líder revela um duplo padrão de conduta, o seu pragmatismo não contagia nem arrasta os seus liderados em direção ao bem comum. Conforme ensina Krishna a Arjuna, o grande líder é aquele que age de forma sintrópica, unificando as realidades externa e interna a si próprio, emancipando-se, desta forma, do interesse pelos resultados imediatos das ações.

Bhagavad Gītā apresenta a revelação da essência mais pura da cultura sintrópica, que se desenvolve por meio da arte e da ciência da meditação. Ela trata do ancestral Śuddha Yoga, que se encontra apenas parcialmente compilado nos Yoga Sūtra de Patanjali e no Bhodicaryāvatāra de Śāntideva. Este último representa a bem elaborada visão crítica do budismo indiano à tradição do yoga, representada pelos Yoga Sūtra. Estes três pequenos textos oferecem uma síntese do pensamento indiano, que mais tarde iria inspirar, tanto o romantismo alemão, quanto o transcendentalismo norte-americano. Emerson, Thoreau, Aldous Huxley, Schelling, Schopenhauer, Nietzsche, Jung, Gandhi e Luther King representam apenas algumas das personalidades, direta ou indiretamente, influenciadas pela rica literatura filosófica desenvolvida no subcontinente indiano.

Quatro pontos cardeais

Há quatro marcos de minha jornada espiritual, introduzida no artigo Ensaio Autobiográfico, que foram fundamentais para a definição das estratégias adotadas para a elaboração desta pequena Itihāsa. O primeiro ficou caracterizado pela cerimônia de minha consagração ao Śuddha Rāja Yoga Mārga em 28 de agosto de 1974. O segundo, pela finalização do Glossário Yoga Brahma Vidya Sanhita, elaborado de janeiro de 1987 a 25 de dezembro de 1990, quando trabalhei em Aracaju como voluntário no projeto do estabelecimento dos primeiros pilares do Śuddha Sabhā Ātma. O terceiro marco, de todos o mais importante, pela cerimônia realizada em 17 de abril de 2007 para a defesa de tese de doutorado e o reconhecimento de minha Gītā Bhāṣya (explanação abalizada da Gītā) como uma contribuição original no campo da filosofia, das ciências sociais e da hermenêutica dos textos sagrados. O quarto marco expressa a decisão de acolher o convite do Jñāna Dāta Surya Yogue Dasa para colaborar mais ativamente no processo de implementação da Universidade do Coração e está representado na cerimônia de 29 de maio de 2010, quando Cássia e eu aceitamos a Credencial de Emissários do Śuddha Dharma Maṇḍalam para podermos nos integrar, formalmente, ao corpo diretor da instituição.

O valor e a importância relativa desta Itihāsa

O leitor não deve subestimar o valor e a importância desta Itihāsa. Estes se revelam de forma gradual, na exata medida em que começamos a enxergar o valor real do diamante que trazemos em nossos corações3. Corre na internet o seguinte texto (e também um vídeo com a mesma mensagem), de autoria desconhecida, que nos auxilia a compreender esse ponto: 
Um pai, antes de morrer, disse ao filho: “este é um relógio muito antigo, foi do seu bisavô, tem mais de 200 anos. Antes de ficar com ele vá ao café da rua e tente vendê-lo para ver quanto vale.” O filho lá foi. Quando voltou disse que conseguia vendê-lo por R$10,00. Então o pai disse: “agora vás à relojoaria e faça a mesma coisa”. O jovem assim fez e na relojoaria conseguiu uma oferta de R$30,00 pelo relógio. O pai disse: "agora vá ao museu e mostre lá esse relógio". Quando ele voltou disse ao pai: "no museu ofereceram R$100.000,00 pelo relógio!!!” O pai, esboçando um sorriso discreto, disse: “filho, a herança que tenho para deixar não é o relógio​,​ nem os R$100.000,00 que ele pode valer, mas o ensinamento de que, para sermos valorizados da maneira certa, temos que estar no lugar certo. Não fique irritado por não o valorizarem no lugar errado. Quem sabe o seu valor é quem o aprecia e respeita; não frequente ambientes que o desmereçam". Conheça o seu valor!
N O T A S

​(1) Para conhecer melhor como a Bhagavad Gītā está sendo interpretada aqui, veja também:

(2) Para conhecer a pronúncia das palavras sânscritas veja o nosso resumo do Guia de Transliteração e Pronúncia das palavras sânscritas.

(3) Veja aqui a experiência realizada em 2011, no metrô de Washington, com o violinista Joshua Bell, para ilustrar esse ponto.

SUMÁRIO GERAL: A Arte e a Ciência da Meditação segundo a Bhagavad Gītā
Próximo texto:  O significado da Gītopadeśa

Rio de Janeiro, 02 de outubro de 2016
(Atualizado em 18.02.23)

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