2022-06-26

O Novo Paradigma da Ciência Política do século XXI

Não há dúvidas de que qualquer governo sempre elege o seu sucessor, ou seja, os governantes são sempre a causa direta da eleição dos seus sucessores. Se o índice de aprovação do governo é alto, os aliados apoiados pelo governo serão eleitos; se o índice de aprovação for baixo, quem se elege são os adversários do governo. Como os índices de um governo são de sua única responsabilidade, assim também o são as suas consequências, expressas no resultado das urnas. Em geral, se quer jogar esta responsabilidade toda na conta do eleitor, fazendo-o se esquecer de que, quando muito, ele permanece apenas como a causa indireta do resultado das eleições. O eleitor mal se dá conta que só dependeria dele a aceleração do processo natural e sintrópico que, aos poucos, vai tomando o seu lugar, superando o jogo de cartas marcadas, da cômoda e distinta alternância entre dois falsos opostos. Isto porque ele desconhece, por exemplo, as razões para que um governo aparentemente bom faça como sucessor o seu oposto. Os governantes, contudo, sempre conhecem muito bem estas razões, embora raramente admitam, ou estejam dispostos a fazerem a necessária “mea culpa”.

Diferentemente de muitos críticos que refletem sobre a nossa realidade política e social, não quero contemplar um discurso não-dialógico, emoldurado na polarização e no ressentimento. Quero me manter próximo daquilo que compreendo como a via da práxis sintrópica, na plenitude de sua perspectiva multicultural, de celebração da unidade na diversidade. Esta surge apenas quando o eleitor manifesta a vontade de superar estas duas alternativas polarizadas que, no fundo, ainda representam as duas faces de uma mesma moeda. Como ele pode tomar parte neste processo de gestação? Apenas quando ele se der conta que traz em si mesmo as ambiguidades que se manifestaram nas urnas até o presente e que tanto o inquietam.

Em uma entrevista gravada em 1959 para o programa Face to Face da BBC, Bertrand Russel, filósofo e ícone do pacifismo, antecipa esta perspectiva sintrópica quando responde, de forma brilhante, à última pergunta do entrevistador:

REPÓRTER: Uma última pergunta: suponhamos professor Russell, que esta gravação seja encontrada por nossos descendentes após centenas de anos, tal como se deu com os Manuscritos do Mar Morto. O que valeria a pena dizer a essa geração sobre a vida e as lições que aprendeu?

RUSSEL: Gostaria de dizer duas coisas: uma intelectual e uma moral:

(1) A intelectual é esta: quando estiver estudando qualquer tema ou considerando qualquer filosofia, pergunte apenas a si mesmo: “quais são os fatos?” e “qual é a verdade que os fatos sustentam?” Nunca se deixe desviar pelo que deseja acreditar, ou pelo que lhe traria benefício se assim fosse acreditado. Observe unicamente quais são os fatos. Este é o aspecto intelectual que gostaria de dizer.

(2) O aspecto moral é muito simples. O amor é sábio, o ódio é estúpido. Neste mundo, que cada vez se torna mais e mais estreitamente interconectado, temos que aprender a nos tolerar uns aos outros e aceitar o fato de que alguém nos dirá coisas que não gostaremos. Só podemos viver juntos dessa maneira. Se vamos viver juntos, e não morrer juntos, devemos aprender um pouco de compaixão e um pouco de tolerância, que é absolutamente vital para a continuação da vida humana no planeta.

Não há dúvidas de que as pessoas se tornam melhores quando trilham a via da amorosa práxis sintrópica, capaz de organizar e estruturar o território psico-sócio-ambiental, onde se fundam todas as experiências do Ser. E esta via de síntese, por nascer no imo do coração, conduz, necessariamente, à superação do entendimento dicotômico e polarizado da realidade onde o inferno, o mal, são sempre os outros. Acessamos a verdade e nos motivamos a alcançá-la quando colocamos o coração em tudo o que fazemos. Onde há mais amor, há mais justiça, há mais paz e o mundo é melhor. Logo, nenhum processo de mudança que não o promova, ou não seja nele fundado, pode produzir qualquer melhora significativa no mundo.

A alternância no poder de dois grupos extremamente polarizados e egocêntricos apenas indica que a via do coração, de superação de todo o egocentrismo e interesse pessoal, já está em processo de gestação. No mundo ocidental, ainda hoje, temos, de um lado, os defensores de uma ética neoliberal cristã; de outro, aqueles que professam um cristianismo-marxista quase ateu. O mal de ambos é o mesmo que nos assola desde o obscuro período medieval: a insistência em ver no outro os demônios que cada um traz em si mesmo. Consciente, ou inconscientemente, temos agido de modo a ratificar no plano das ideias e das emoções estes verdadeiros gritos de guerra e de exaltação do confronto, sob todas as suas formas, inclusive, o confronto armado. A paz que vislumbramos ainda não é a paz verdadeira, a paz do coração. Quando muito, é apenas a paz do mais forte, mantida sob a ponta da baioneta, em defesa de interesses e valores mesquinhos, de classe, ou seja, polarizados. 

A via sintrópica do coração, que é onde se processa a síntese, desafia a cultura vigente e o status quo, como se viu, por exemplo, nas manifestações que surgiram a partir dos anos sessenta e que foram rotuladas como “contracultura” – termo utilizado para designar as manifestações inimigas da cultura dominante, nos planos da política, do comportamento, da moral, da expressão artística, da filosofia e da religião. Esta via alternativa, portanto, é um fenômeno contemporâneo, de escala global, e que se manifesta na política dos diferentes países quando estes começam a se identificar com as manifestações da política pacifista, como o movimento a favor do desarmamento nuclear e as grandes manifestações de Trafalgar Square, que contaram com a presença de Bertrand Russell. Ela nos convida a refletir sobre todas as utopias e processos destinados a nos trazer a paz e a justiça. Ao renunciar à violência em palavra, pensamentos e atos contra os reinos humano e não-humano, os primeiros representantes da contracultura integravam os seus valores morais dentro de um sistema ético, que somente agora, neste desabrochar de século, começa a se delinear mais nitidamente. A origem pacifista marcou a atitude política da contracultura e dos hippies que, durante as manifestações, não reagiam à repressão policial, a não ser colocando flores nos canos das armas dos soldados, constituindo o Flower Power (Poder da Flor), contra o poder das armas. O ideal da contracultura era a construção de uma sociedade fundada no lema Paz e Amor, uma sociedade alternativa, distinta da sociedade patriarcal judaico-cristã, polarizada entre representantes de direita e de esquerda.

O seguinte aforismo de Johann Goethe, "Trate as pessoas como se elas fossem o que poderiam ser e você as ajudará a se tornarem aquilo que são capazes de ser", resume a essência da contracultura que, no Brasil começou a tomar forma sob a bandeira do tropicalismo – um primeiro e tímido passo em direção à via de síntese. No Brasil os anos sessenta também representaram uma época conturbada e o cenário político nacional estava um tanto confuso. No entanto, em muitos já estava brotando aquilo que realmente importa para esta nova via: a consciência socioambiental e o estilo de vida de "paz e amor" propostos pela nascente contracultura. Ecologia, vegetarianismo, virtude, justiça social, compaixão são termos desta nascente cultura sintrópica, mas que ainda não fazem parte do vocabulário dos políticos, a não ser em seus gestos falsos, calculados e demagógicos.

A verdadeira batalha da via de síntese não é a luta de gêneros, de etnias, de classes, nem se dá entre estereótipos de esquerda e direita. É aquela que se reflete no mundo como o esforço para vencer a si mesmo e não ao próximo. A maioria de nossa classe política, muito provavelmente, jamais ouviu falar do Mahābhārata, o texto que trata exaustiva e sublimemente desta grande batalha contra todas as manhas e artimanhas políticas. Qual o tema principal do Mahābhārata? O Mahābhārata pode ser compreendido como um grande jogo de xadrez político entre dois dos maiores estrategistas políticos da história: um em defesa da estratégia e da tática da arte e da ciência política sintrópica, de fundo altruísta, que unifica os universos interior e exterior; e o outro, em defesa da arte da trapaça e da corrupção e dos interesses pessoais. O primeiro, certo de que a verdadeira batalha, conforme ensinam os textos sagrados, é aquela que travamos dentro de nós mesmos; o outro, pelo contrário, de que ela se dá com aqueles que elegemos como nossos inimigo. O processo de síntese sintrópica que molda a nova via pode ser ilustrado, por exemplo, a partir da filosofia da ação psicopolítica de Gandhi, que se funda em torno dos conceitos de satyāgragha (o vigor do amor e da verdade em ação) e sarvodaya (crescimento e bem-estar de todos). A base epistemológica da filosofia da ação política de Gandhi, bem como a sua heurística, somente pode ser compreendida por meio do entendimento do épico Mahābhārata

No Brasil, este processo parece ter tido início com os primeiros Salesianos, que aportaram no Rio de Janeiro em 14 de julho de 1883, instalando-se em Niterói, onde inauguram o Colégio Salesiano Santa Rosa. Pouco depois, em 29 de agosto, Dom Bosco teria o sonho profético sobre Brasília – a capital de todos os brasileiros, formada por pessoas vindas de todos os cantos do país. Resultado do amálgama das distintas culturas de todas as regiões do país, Brasília estaria destinada a abraçar, no devido tempo, a via do sagrado coração. Competia aos educadores salesianos, portanto, a nobre missão de cuidar da formação integral dos jovens, despertando-os para esta realidade de que construímos o mundo a partir de cada minúscula ação, onde sempre se esconde uma oportunidade de contemplação e comunhão com o sagrado. Em vez de rejeitar a política do mundo, em suma, haveria que se trabalhar para transformá-la. Mais tarde, o teatro de natureza psicossocial e política e com elevado grau de compromisso entre a teoria e a práxis, conforme proposto no Teatro de Augusto Boal, representaria um novo passo na formação do ser humano e no seu processo de descoberta de si mesmo. Este teatro só encontra similar no oriente no ancestral Bharata-Muni-Nāṭya-Śastram, o Tratado (śāstra) do Sábio (muni) Bharata, acerca das Artes Performáticas (nāṭya). Em ambos, a experiência teatral não se destina à exaltação do bem em detrimento do mal, senão que ao papel de (re) apresentar a essencialidade das suas relações nos processos do mundo, tal qual também se dá no Mahābhārata. No caso do Bharata-Muni-Nāṭya-Śastram, os sentimentos (bhāva), a gestualística (abhinaya), os atores (dharmī), os estilos (vṛtti), a cultura local (pravṛtti), as habilidades (siddhi-s), as notas (svara-s), os instrumentos musicais (ātodya-s), a música (gāna) e o palco (raṇga) dão forma a uma experiência estética (rasa) cuja finalidade é a superação das baixas inclinações (grāmya) e a promoção dos sentimentos sintrópicos superiores (bhāva) que procedem do coração e das suas respectivas emoções.

A vida de Dom Bosco é um exemplo vivo da via de síntese sintrópica e de como educar o talento na calma interior e o caráter no tumulto da vida exterior. A sua práxis funda-se na paciência, serenidade, compreensão e no cultivo em nós mesmos do amor pela humanidade, a raiz da caridade do salesiano. A espiritualidade salesiana não é de clausura, pelo contrário, se alinha com a contemporânea definição de eco espiritualidade política, estruturada em torno da alegria, do respeito e da celebração do sagrado da vida. A via sintrópica do coração, representa um ato integral onde o diapasão para se encontrar a sintonia fina com o real é, unicamente, o coração. Sabemos que a mente segue métodos e metodologias, mas o coração, não. O coração apenas busca o seu ritmo e procura se harmonizar, para evoluir, sem perder a cadência, nem o compasso. A mente se filia a distintas correntes religiosas, filosóficas e políticas. O coração, não. O coração não tem corrente, porque não sabe viver acorrentado. As religiões ocupam-se da fé nas Escrituras, enquanto o coração ocupa-se do sentimento sintrópico de amor, ou fé interior, que dá origem a todas as religiões. O amor, portanto, é a lei natural que, no curso do tempo, aproxima o ser humano, sempre em transformação, ao seu estado mais bem acabado e completo. As pessoas tornam-se melhores quando desenvolvem plenamente esta natureza amorosa, capaz de organizar e estruturar o território psico-sócio-ambiental, onde se fundam as experiências do Ser. 

SUMÁRIO GERAL: A Arte e a Ciência da Meditação segundo a Bhagavad Gītā
Próximo texto: Homenagem a Luiz Carlos Maciel, o guru da contracultura

Rio de Janeiro, 26.06.22.
(Atualizado em 15.06.23)

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