2020-10-17

A Fenomenologia da Consciência do Śuddha Yoga: (II) A Natureza da Meta

A Bhagavad Gītā como a Expressão Paradigmática da Metáfora Fundamental sobre a Arte e a Ciência da Meditação
Sanjaya narra o diálogo da Bhagavad Gītā
para o rei cego Dhritarashtra.

Este texto é o segundo da serie de pequenos artigos adaptados do capítulo "A Fenomenologia da Consciência do Śuddha Yoga: ciência, espiritualidade, meditação e o surgimento de um novo paradigma", de minha autoria, que encerra o livro O Estudo da Consciência – Inovação Pessoal e Redes Sociais (Rio de Janeiro: Editora Ciência Moderna, 2020), objeto do texto anterior (ver aqui).

Parte essencial da narrativa maior do épico Mahābhārata (aproximadamente 100.000 versos), os setecentos versos da Bhagavad Gītā constituem, muito provavelmente, a primeira reportagem de guerra em tempo real de que se tem notícia (TURCI, 2007b). O episódio da Bhagavad Gītā representa a reportagem feita ao rei cego Dhṛtarāshtra em seu palácio sobre os fatos que estão se passando no campo de batalha, instantes antes do seu início. A importância da Bhagavad Gītā deve-se ao fato dela registrar o diálogo que restabelece os fundamentos perdidos da ancestral arte e ciência da meditação, conforme praticada pelos antigos sábios da tradição védica (Ṛṣis). 

De acordo com a Bhagavad Gītā, disciplinar a mente significa conseguir que esta abandone o seu funcionamento predominantemente egoísta, materialista (guṇa-para), simbolizado na metáfora do barco, presente no verso sessenta e sete do segundo capítulo, e adote um modo de ser espiritualista (ātma-para), não egoísta, fundado nas intuições e sentimentos superiores do sagrado coração, conforme sugere a metáfora da tartaruga, presente no verso cinquenta e oito do mesmo capítulo. O verso BhG 2.67 diz, em suma, que a mente que se influencia pelos sentidos é como um barco sem rumo, ao sabor dos ventos. O verso BhG 2.58 afirma que assim como uma tartaruga recolhe todos os seus membros para dentro do casco, assim também o aspirante é capaz de recolher os seus sentidos dos objetos dos sentidos, firmando-se, deste modo, na sabedoria que emana do imo do sagrado coração. Sem esta escuta da realidade a partir do coração, a mente racional e os cinco sentidos comportam-se como um barco sem bússola e à deriva, ao sabor das ondas.

O diálogo de coração-a-coração (saṃvāda) ocorrido entre Krishna e Arjuna revela como este recupera e apura a disposição mental conhecida como śraddhā[1]para poder superar o seu funcionamento guṇa-para, fundado em sua visão de mundo de base ainda materialista e ilusória, e alcançar o funcionamento ātma-para, fundado no coração. Este funcionamento, fundado em śraddhā, possibilita a superação de toda a dor causada pelo entendimento superficial da realidade dual, caracterizada por todos os pares de opostos. Śraddhā representa o sentimento sintrópico e a bússola interior que acompanham o movimento do amor e da verdade, podendo ser considerada como a principal categoria conceitual para explicar como o pensamento humano evolui mudando de um paradigma para outro.

Bhagavad Gītā estabelece a sua filosofia da mente segundo os quatro pilares básicos em que se assenta a discussão sobre o processo de inversão do funcionamento do ser de guṇa-para para ātma-para: (a) a natureza da meta; (b) a disciplina que nos faz convergir para esta meta; (c) os pré-requisitos e as qualidades necessárias; e (d) a forma de engajamento no mundo. Cada um destes quatro pilares aparece, com maior ou menor ênfase, em praticamente todos os sistemas metafísicos e tratados religiosos do mundo[2]. Na Bhagavad Gītā, Arjuna (príncipe representante da classe político militar e espécie de arquétipo da condição humana) escuta de Krishna (príncipe guerreiro e arquétipo da divindade em forma humana) como desenvolver o poder de disciplinar a sua mente, possibilitando que a razão se oriente pela luz dos sentimentos superiores do sagrado coração.

Na Bhagavad Gītā tudo começa pela escuta do sagrado coração[3]. O texto desenvolve-se entre a recusa inicial e o aceite final de Arjuna ao convite de Krishna para que ele renunciasse, tão somente, ao fruto das ações necessárias e jamais à ação ela mesma. Tal qualidade de renúncia (saṁnyāsa) constitui a marca característica do funcionamento ātma-para (orientado pelo sentimento sintrópico da realidade numênica), por oposição ao funcionamento guṇa-para (orientado pelas aparências da realidade fenomênica) caracterizado, tanto pela omissão das ações necessárias, como pelo apego ao fruto das ações em geral. O funcionamento ātma-para revela a própria vida como um guru; ou seja, revela o próprio plano existencial onde estamos inseridos como o maior de todos os mestres. O funcionamento guṇa-para, por sua vez, contempla a omissão e o escapismo[4]. Conforme Krishna explica, uma vez que compreendemos como a vida reage à nossa atuação no processo do mundo, revelando a si mesma em sua sacralidade, toda ação torna-se um aprendizado e uma oportunidade de comunhão com o sagrado. Esta é, em síntese, a essência do seu ensinamento a Arjuna. Há nas antigas Escrituras Sagradas e na filosofia do ocidente, igualmente, muitas passagens com referências similares a esta sobre o modo de ser e estar no mundo, segundo as leis da realidade numênica, acessíveis ao sagrado coração. Salomão, por exemplo, quando se encontra com Deus em seu sonho, pede um coração que saiba escutar a vida e o sagrado que a constituem (Re 3:4-15).

No Mahābhārata, no momento que antecede o início da Bhagavad Gītā, Krishna pede a Arjuna que entoe o Hino a Durgā. “Dur-gā” nomeia aquele aspecto do sagrado feminino que nos auxilia a transpor () as dificuldades (dur) aparentemente intransponíveis. Durgā corresponde à deusa Śraddhā do Ṛg Veda[5] (X, 151). É neste aspecto que ela reside no coração de todos os seres, simbolizando o despertar da beatitude (ānanda), que ocorre durante as revelações e as epifanias. O contexto maior do Mahābhārata facilita a compreensão do sentido e da centralidade de śraddhā na Bhagavad Gītā (TURCI, 2007a). Ao longo de todo o Mahābhārata, o tema da morte e os ritos funerários, ou ritos de śrāddha (acento longo no primeiro “a”), estão sempre presentes, fazendo do elo entre o substantivo śraddhā (acento longo no segundo “a”) e o adjetivo śrāddha a espinha dorsal do épico. Quatro grandes capítulos, incluindo-se aí o Bhīṣma-parva (capítulo sobre Bhīṣma) onde a Bhagavad Gītā está inserida, se centram, respectivamente, nas mortes ritualísticas dos generais de guerra Bhīṣma, Droṇa, Karṇa e Śalya. Desde o primeiro estudo em língua ocidental sobre os ritos de śrāddha, realizados por David Urquhart (The śraddhā: the keystone of the Brahmanical, Buddhistic, and Arian religions, as illustrative of the dogma and duty of adoption among the princes and people of India. London: D. Bryce,1857), já se insinuava esta ligação entre o substantivo śraddhā e o adjetivo śrāddha, cunhado para qualificar os rituais cujo componente essencial é śraddhā. A obra gigantesca de Pandurang Vaman Kane (History of Dharmasàstra. 2nd ed., Government Oriental Series Class B, No. 6, 5 vols. Poona: Bhandarkar Oriental Research Institute,1968-1977) deixa claro que śrāddha deriva de śraddhā. Desde Maxmüller esse vínculo teológico entre śraddhā e śrāddha aparece de forma mais ou menos clara. Dakshina Ranjan Shastri (Origin and Development of the Rituals of Ancestor Worship in India. Calcutta: Bookland Private Limited,1963) lembra que Maxmüller enfatiza o fato de śraddhā ser parte essencial dos rituais funerários, nomeados ritos de śrāddha. Uma cuidadosa análise dos ritos de śrāddha, portanto, nos remete à compreensão de śraddhā como a força interior e o fervor demandado dos familiares nesses ritos funerários. Parece estar nesta relação entre śraddhā e śrāddha, inclusive, a origem daquilo que hoje se entende por religião. Simbolicamente, o fogo (agni), como o mediador entre as esferas do humano e do divino, carregaria, por meio do ato crematório, as oferendas e o próprio espírito para o mundo do além, onde o falecido receberia um novo corpo e se reencontraria com os seus ancestrais.

A novidade do Mahābhārata, em relação à tradição védica, está precisamente no episódio da Bhagavad Gītā, onde Krishna faz o convite para que Arjuna recupere a sua śraddhā, resgatando, deste modo, a cultura do ancestral Śuddha Yoga, que havia se perdido e que se funda na tese da síntese das duas grandes seções dos Vedas, conhecidas respectivamente como karma-kāṇḍa, ou seção ritualística, e jñāna-kāṇḍa, ou seção do conhecimento especulativo. A tese sobre esta postura superior (upāsana), de síntese dos opostos, proposta no Śuddha Yoga, é conhecida como jñāna-karma-samuccaya-vāda – a tese (vāda) sobre a via (mārga) de síntese (samuccaya) que unifica (1) a via da ação (karma-mārga), fundada na maestria ritualística da tradição bramânica e (2) a via da “não ação”, ou do conhecimento (jñāna-mārga), fundada na superação do estado de ignorância do ser por meio exclusivo do pensamento especulativo. Krishna vale-se do conceito de śraddhā para dar assento à síntese (upāsana) destas duas vias, até então compreendidas como mutuamente exclusivas, conforme o próprio argumento inicial de Arjuna deixa transparecer. O Śuddha Yoga revelado por Krishna permite a Arjuna superar este seu entendimento limitado e decidir-se pela jñāna-karma-samuccaya-vāda. Se a Bhagavad Gītā tem início com Arjuna insistindo em renunciar à via da ação e afirmando o seu desejo de seguir o kevala-sāṁkhya, ao longo do diálogo, Krishna o convence da superioridade do śuddha sāṁkhya, expresso na jñāna-karma-samuccaya-vāda[6].

O Śuddha Yoga revelado na Bhagavad Gītā aprofunda e radicaliza a discussão em torno das três aspirações humanas (puruṣārthas) características da vida em sociedade (karma-mārga) – ou seja, a busca por segurança (artha), pela virtude (dharma) e pelo prazer (kāma) – com aquela característica da vida do renunciante (jñāna-mārga), ou seja, a busca da libertação espiritual e da realização suprema (mokṣa). A Bhagavad Gītā retoma, deste modo, as principais discussões do Mahābhārata, que pode ser entendido como o maior e mais importante discurso sobre os quatro puruṣārthas, constituindo-se como um tratado (śāstra) sobre: (1) o princípio universal de sustentação do universo (ātma-dharma-śāstra); (2) a arte de governar a si mesmo e de relacionar-se em grupo (artha-śāstra); (3) a natureza do desejo (kāma-śāstra), e (4) a via da realização humana (mokṣa-śāstra e brahma-prāpti).

SUMÁRIO GERAL: A Arte e a Ciência da Meditação segundo a Bhagavad Gītā
Próximo textoA Fenomenologia da Consciência do Śuddha Yoga: (III) A Teoria de Verdade


Rio de Janeiro, 17.10.20.
(Atualizado em 01.09.23)

[1]Śrad-dhā” significa, literalmente, sentir e considerar (dhā) a partir do Espírito que habita o coração (śrad).

[2] No budismo, por exemplo, esses pilares tomam a forma das Quatro Nobres Verdades, enunciadas no primeiro sermão do Buda, logo após a sua iluminação.

[3] Há uma metáfora atribuída por alguns ao líder religioso Sai Baba que diz, em linhas gerais, o seguinte:

Se uma porta está trancada e você deseja abri-la, você deve colocar a chave dentro da fechadura e girá-la no sentido anti-horário. Se você girar a chave no sentido contrário, a fechadura permanecerá trancada. O segredo está na forma como você gira a chave. Seu coração é a fechadura e a sua mente, a chave. Se girar a mente para Deus no coração (Ātman), você obtém a liberação. Se girá-la para o mundo exterior, você permanece na escravidão. É a mesma mente que é responsável por ambas, a liberação e a escravidão.

[4] Arjuna manifestara, no início do segundo capítulo da Bhagavad Gītā, seu desejo de abandonar a vida em sociedade e viver de esmolas, como um renunciante (saṁnyāsin). “Melhor viver de esmolas que matar a esses preceptores de elevado espírito,” afirma no quinto verso. Krishna esclarece, no verso cinquenta, que Yoga é maestria nas ações (yogah karmasu kauśalam), não se confundindo, portanto, com escapismo. O verdadeiro sentido de renúncia (saṁnyāsa) não contempla a omissão às ações necessárias (como entendia Arjuna), mas apenas o desapego em relação aos seus frutos.

[5] O termo śraddhā aparece em dezesseis hinos do Ṛg Veda.  Em algumas passagens o termo pode ser entendido como “engajamento entusiasmado”, “lealdade”, “dedicação”, “confiabilidade” e “credibilidade”, mostrando que śraddhā representa a base de todas as ações virtuosas e que a sua ausência seria a marca característica das hostes do mal. Em outras passagens śraddhā aparece como a filha do deus Sol.  Nesse caso, a personificação sugere que śraddhā significa aquele estado de entusiasmo, contentamento e confiança que o praticante demonstra ter no cerimonial ritualístico.  Śraddhā, afirma o texto, desperta Agni (deidade do fogo, fogo interior) no coração.  Todas as ações ritualísticas são realizadas por meio de Śraddhā. Estar possuído por śraddhā significa atender ao sentimento intuitivo que nos convida a colocar todo o coração e espírito na execução de todas as ações de forma ritualística.

[6] O Śuddha Yoga continua sendo praticamente ignorado pelos especialistas contemporâneos em função das críticas do grande filósofo indiano Shankara (séc. VIII), que, como se sabe, era defensor da jñāna-mārga, também conhecida como kevala-sāṁkhya, ou a via exclusiva do conhecimento. O comentário de Shankara à Bhagavad Gītā nada mais representa que uma estratégia de desqualificar a jñāna-karma-samuccaya-vāda. Vale conferir esta discussão e, em especial, os argumentos que Shankara apresenta, na glosa ao verso BhG 18.17, quando procura minimizar o fato de Krishna estar pedindo à Arjuna para não renunciar à via da ação.

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