Aqueles que percorrem os cinco gestos da śraddhā-vṛtti não são mais os mesmos que os iniciaram. Algo em nós se realinha. Algo silencia. Algo floresce. Quem escutou o instante (Viniyoga), decidiu com lucidez (Saṃkalpa), assentou-se no Ser (Ṛṣi-nyāsa), renunciou ao falso (Satya Tyāga) e repousou na presença (Upasthāna), agora inspira na escuta do real e expira na ação impecável, movido por śraddhā, a bússola do processo natural de meditação e da práxis sintrópica.
Assim como a luz segue o fio e acende a lâmpada, a śraddhā percorre o canal do corpo, da fala e da mente, e transforma a presença em altar. A Bhagavad Gītā (17.14–17) ensina que a austeridade (tapas) só é efetiva quando se desdobra nessas três esferas. A śraddhā as percorre como um sopro único, que ora purifica, ora sustenta, ora consagra. Essa trilogia prática — corpo, palavra, mente — torna-se assim uma única via: a da conduta luminosa, aquela que, mesmo silenciosa, transforma o mundo ao redor.
O néctar dessa conduta não se encontra nas aparências. Ele se manifesta quando a ação não busca fruto. Quando a palavra não exige resposta. Quando o corpo não se impõe, mas oferece. Há dias em que a śraddhā se acende com força, clareando tudo. Outros dias, ela se esconde — e é preciso recomeçar do silêncio. Mas mesmo nesses dias, algo se move. Um sopro discreto. Uma recordação tênue. Um arrepio involuntário. Esse arrepio é a assinatura do Inefável. É a presença de Brahman tocando a alma com sua Luz silenciosa. E então compreendemos: o gesto que busca, o gesto que oferece, o gesto que repousa…Todos eles são o mesmo. São variações do mesmo movimento oculto da śraddhā-vṛtti: não uma linha reta, mas uma espiral que une começo e fim no centro do coração.
Os cinco gestos do despertar sintrópico
Já não é método — é natureza.
O que permanece? Quando o praticante silencia, depois de tudo, o que resta? Nenhuma doutrina. Nenhuma teoria. Nenhuma técnica. Resta apenas o Ser — e sua luz discreta, como aroma de flor aberta.
Neste ponto, o Śraddhā Yoga já não é método, é natureza, puro Svatantra, liberdade. E a śraddhā já não é escolha, é condição do Ser desperto, cujos gestos de liberdade e unidade já trazem embutidos os cinco gestos de equilibrio oriundos do coração, que nos possibilitam estar no mundo em ressonância com o que é vivo, luminoso e verdadeiro.
Como vimos, essa jornada de realinhamento e despertar, impulsionada pela śraddhā, não é uma abstração distante, mas se concretiza em ações e intenções bem definidas. A śraddhā encontra sua expressão prática e tangível em cinco gestos do coração, que nos guiam em direção a essa escuta profunda e ação impecável. São eles:
1. Saṃkalpa (Decisão, Resolução) é a firme resolução (Ananta he!) da faculdade da vontade de projetar o comportamento futuro segundo a luz natural do coração, vigiando para não se afastar da escuta interior que nos orienta em direção à da meta suprema. Representa a firme resolução de vigiar os mais inocentes pensamentos, não permitindo que a mente se afaste do coração durante o cumprimento da nossa rotina;
2. Ṛṣi-nyāsa representa a capacidade de fazer de toda atividade uma Invocação de unificação, no coração, com a energia sintrópica do Ser Supremo (Brahma-śakti), que se manifesta nos seres humanos como śraddhā. Esta energia aparece personificada no Ṛgveda como a deidade Śraddhā, que, no épico Mahābhārata, é invocada em seu aspecto de Durgā (Invencível) por Arjuna, em conformidade com a orientação de Krishna. Como consequência e expressão de Ṛṣi-nyāsa nasce, então, o próprio diálogo da Bhagavad Gītā;
3. Viniyoga nomeia a iniciativa e a iniciação que nos revelam o caminho sintrópico e nos capacitam a recomeçar de onde se está e a avançar, simplesmente empregando o primeiro minuto no sentido da convergência para a meta. O Yoga Sūtra afirma que a prática de saṃ-yama (conjunção de dhāraṇā [concentração e foco], dhyāna [meditação] e samādhi [êxtase]) favorece o desenvolvimento das intuições relativas à formulação de viniyoga (Yoga Sūtra 3.6: "tasya bhūmiṣu viniyogaḥ" – o processo prático [viniyoga] para isto [tasya] ocorre gradualmente [bhūmiṣu]). Viniyoga envolve o esforço de manter a escuta interior, ou Bhāvana. Todo o imprevisto deve ser visto apenas como uma oportunidade para se intensificar a disciplina de aproximação à unidade (Bhāvana Namaḥ), desenvolvendo e adaptando métodos específicos para enfrentar cada desafio que nos convide a dar um novo primeiro passo no sentido da convergência para a meta;
4. Satya Tyāga pressupõe a renúncia (samnyāsa) a tudo que impeça o foco na consagração de si mesmo a Vontade Suprema, manifesta no coração, no instante presente. Representa a dedicação, de forma impessoal, de todas as ações à divindade, de forma que cada novo passo esteja sempre vinculado e em consonância com o processo gradual de construção e reforma íntima. Significa, desse modo, o esforço contínuo de cultivar e manter a sintonia com a Vontade Cósmica (Bhāvana Namaḥ), renunciando (saṃnyāsa) de imediato e de forma impessoal a toda e qualquer circunstância inibidora da consagração (tyāga) de si mesmo ao Supremo; E por fim;
5. Upasthāna simboliza a gratidão pela sintonia (bhāvana) com a Vontade Cósmica, de onde resulta a experiência amorosa que destrói a ilusão da dualidade (dhyāna). Quando nos lembramos constantemente de dar graças por tudo, mantemos acesa a chama e ganhamos foco para seguir convergindo para o Ser em sua liberdade suprema. Upasthāna é a vida transformada em prece de graça. Traz implícito o pedido honesto para que o universo nos perdoe e oriente, caso haja, em nosso esforço diário para agir com śraddhā, algo de impuro, impróprio, inadequado, ou que seja excessivo.
Śraddhā-gṛha e Śraddhā-vṛtti:
o corpo como templo, o coração como altar e śraddhā como contemplação viva
![]() |
Cartão postal de 02.07.79, enviado por Francisco Barreto, seis meses após minha primeira visita ao Ashram Atma: Existem mundos maravilhosos e fascinantes, mas existe um mundoinfinitamente mais misterioso e atraente: o céu que está dentro de nós. |
A marca característica (lākṣaṇa) de śraddhā – esta força (śakti) que jorra do coração puro, orientando o processo de convergência sintrópica (Brahma Sāmīpya) – é a unificação dos ambientes (kṣetra), interiores (dharma-kṣetra) e exteriores (kuru-kṣetra), sob a nossa esfera de influência, tal como se dá com Arjuna na Bhagavad Gītā. Śraddhā, o sentimento amoroso de conexão com o sagrado no coração, resulta da consagração (tyāga) de si mesmo à escuta do coração e à busca da perfeição em cada minúscula ação. Quando śraddhā orienta a nossa conduta (karma) estabelecemos com a vida, de forma definitiva (Ananta he!), o compromisso de nos orientar pela relação de precedência dos anseios superiores do espírito (Śreyas) sobre aqueles passionais e egoístas (Preyas).
Ao subordinar a razão pura e prática ao fogo ardente da lei moral, que caracteriza o altruísmo natural e biológico, śraddhā-vṛtti, essa modulação interna do nosso ser, promove o sentimento de amor universal, expresso na tríplice disciplina do Śraddhā Yoga (bhāvana, karma e dhyāna), explicitado na Bhagavad Gītā. Daí que a śraddhā-vṛtti represente uma síntese viva da disciplina espiritual da Bhagavad Gītā, o que nos faz guardiões, portanto, da śraddhā-gṛha.
Em última análise, a prática diligente desses cinco gestos do coração gradualmente nos despoja de ilusões e nos reconecta com nossa natureza essencial. Saṃkalpa refina nossa vontade, Ṛṣi-nyāsa nos ancora no Ser, Viniyoga nos impulsiona ao movimento consciente, Satya Tyāga nos liberta de obstáculos internos e Upasthāna cultiva a gratidão e a unidade. Através dessa disciplina amorosa, o Śraddhā Yoga transcende a mera técnica, revelando-se como a própria natureza desperta, onde a śraddhā floresce não como um esforço, mas como a irradiação espontânea de um coração em ressonância com a totalidade.
Rio de Janeiro, 07.03.20.
(Atualizado em 06.05.25)
(Atualizado em 06.05.25)
Nenhum comentário:
Postar um comentário