2020-05-08

A epistemologia e a teoria da verdade da Bhagavad Gītā

Tudo flui dos infinitos modos de ser (bhāva) por necessidade (ṛta)

O que vem primeiro, o sentimento (bhāva; bhāvanā; anubhūti) ou o pensamento (cintā; cittavṛtti)? A Bhagavad Gītā assume que o sentimento tem precedência sobre o pensamento. Os sentimentos de Arjuna são utilizados para representar a fenomenologia da consciência. O sentimento de impotência e incerteza, típico daqueles que se encontram desconectados da sua śraddhā (bússola interior), qualifica o seu emotivo estado de paralisia inicial. E o sentimento sintrópico de potência, convicção e certeza (śraddhā), posteriormente manifestado sob a forma de alegria espiritual e amor universal, o faz superar a sua condição inicial. "Sentir" (verbos “aṇūbhū” e “bhū”) denota a experiência de ser, significa “experimentar ser”, ou “vir-a-ser”. Os sentimentos expressam necessidades imediatas dos seres e a memória dos mesmos é conhecida como “rasa”. Quando o sentimento é o amor, diz-se que o resultado de rasa é a paz (śānti).

 Nós não somos movidos pelas ideias. Nós somos movidos pelos sentimentos. A vida é uma sucessão de sentimentos. Os conceitos podem ser apreendidos pelas máquinas. As pessoas pensam porque sentem, e não o contrário. São os sentimentos que acionam os pensamentos e as ações. Simbolizado na famosa expressão sânscrita OM (AUM), o sentimento de amor representa, segundo a epistemologia da Bhagavad Gītā, a semente original de todas as existências e a causa do próprio surgimento do universo, que teria se dado segundo a fórmula: “Ekoham, bahusyam prajayeyeti” – Eu sou Um, tornar-me-ei também múltiplos seres. Tudo se origina do Transcendente Logos (OM), o Espírito Absoluto (Ātman, ou Paramātman), o Verbo Divino, a expressão do Amor Transcendental, que dá forma ao universo segundo os seus três aspectos: A-U-M, espírito (Ātman), matéria (Prakṛti) e energia amorosa (Śakti). Assim o universo teria surgido da amorosa vontade criadora, que, no ser humano, se expressa como consciência (espírito), mente (matéria) e alento vital (energia).

Os sentimentos superiores nos aproximam da realização espiritual, tanto quanto os pensamentos, emoções e sentimentos inferiores obsidiam e escravizam a nossa mente. Se concentrarmos os nossos pensamentos em coisas negativas, nosso subconsciente nos fará experimentar os sentimentos, emoções e memórias associados a esses pensamentos. A parte consciente da mente, que tem consciência e é a fonte do raciocínio lógico e do pensamento, o ego, é como o teclado do computador que fornece os estímulos, refletindo os sentimentos que estão sendo experimentados. As partes acessível (o subconsciente, a memória de acesso aleatório, RAM) e não diretamente acessível (o inconsciente, a memória do disco rígido, HD) da mente regem as nossas intuições e rotinas automatizadas e representam a memória e os programas de comunicação de todas as emoções e sentimentos que formam os nossos hábitos, crenças e valores. 

Como diferenciar as emoções dos sentimentos? Podemos afirmar que os sentimentos são interiores, vem primeiro, e que eles se exteriorizam sob a forma das emoções. Ou seja, os sentimentos não são perceptíveis pelos sentidos. O que é perceptível são as emoções. Mas este é um tema sobre o qual não há consenso. De forma geral, costuma-se fazer um recorte um pouco distinto e afirmar que as emoções são mais viscerais e instintivas, enquanto os sentimentos já envolvem a reflexão a racionalidade, o entendimento e a compreensão, apontando para o próprio sentimento superior do espírito, que é o amor. Raiva, tristeza, medo, ira seriam sentimentos que nos mostram distanciados do amor. Supera-se a raiva e as emoções a ela associadas, como a mágoa, o rancor e o ódio, por exemplo, desenvolvendo-se a paciência, a tolerância e uma forma amorosa de compreensão. De outro lado, quando nos entregamos ao sentimento de tristeza, o resultado é a depressão, uma forma de emoção. De igual modo, quando somos controlados pelo sentimento de medo, o resultado é o pânico.


Ṛta, um dos conceitos mais importantes
do Rigvedaocorre 390 vezes no texto.

 
Segundo o Ṛgveda, a  expressão maior da verdade é Ṛta (ordem cósmica, sintropia, lei, verdade), a lei geral da necessidade, que regula a operação do cosmos e de todas as coisas. Os conceitos de dharma (lei, sagrado, espiritualidade) e karma (o princípio espiritual de causa e efeito que rege as ações), discutidos na Bhagavad Gītā, derivam de Ṛta, o axioma fundamental do conhecimento védico (Brahmavidyā).  Embora o termo ocorra na Bhagavad Gītā uma única vez (BhG 10.14) e com o sentido de "verdade", o conceito geral de Ṛta permeia todo o texto. Ṛta, quando expressa de forma benevolente, torna-se satya, a verdade amorosa, que possibilita o avanço de todos os seres e de todas as ciências particulares. Conforme se infere do diálogo entre Krishna e Arjuna, sentimentos inferiores impedem a percepção espiritual e intuitiva de Ṛta. É a fala verdadeira e amorosa (satya) de Krishna que leva Arjuna a direcionar a atenção para a percepção de Ṛta e à compreensão sobre como atender as necessidades reais de todos os seres. A sintonia com Ṛta conduz aos distintos “dheyas”, ou objetos de reflexão de cada ciência. E logo, o hábito de operar (karma) no mundo cultivando esta sintonia amorosa com a verdade (bhāvana) nos conduz aos estados contemplativos de meditação (dhyāna), culminando no êxtase da realização espiritual (Brahma-Prāpti). 

Ser e pensar não são o mesmo, como queria Aristóteles. Ser é sentir. É experimentar, progressivamente, o amor. Quando os sentimentos se encontram unificados no amor tal como expresso no bhāvana, aí, entramos, realmente, em estado de meditação, e este, rapidamente, nos conduz ao Ser. Não é, portanto, o conhecimento intelectual, racional, do conceito de amor, que leva à realização espiritual mas o sentimento deste amor universal (śraddhā), que unifica todos os demais. No centro de toda a epistemologia da Bhagavad Gītā está a referência à dimensão amorosa e universal do Ātman (Ser), presente em nossos corações espirituais como a consciência intuitiva, com o poder de iluminar a nossa razão individual e egocêntrica. É o sentimento de amor universal da consciência espiritual, representada pelo pássaro testemunha da metáfora descrita no Ṛigveda (1.164.20), que dá vida à mente material, onde se projetam todos os pensamentos, emoções e sentimentos particulares. É a consciência universal que, por ser luminosa como o sol, reflete algo da sua luz na mente material e opaca como a lua.

As portas da percepção do nosso coração espiritual

É comum nos referimos ao Ser Universal (Sat), manifestado como a consciência espiritual (Cit) que promove os estados de perfeita alegria espiritual (Ānanda) por meio da metáfora do "coração espiritual". Também é comum a referência a este coração metafórico como a sede de todas as paixões que nos aprisionam ao mundo. Em nossa herança genética trazemos os vestígios de nossas naturezas de ordem mineral, vegetal e animal. Ainda temos em nós algo do cérebro dos reptilianos, que se movem segundo mecanismos de recompensa para a satisfação imediata de desejos. Trazemos adormecido em nós o réptil que não cria laços de amizade com o mundo, tal como a cobra que, faminta, se alimenta do próprio ovo. E trazemos também o comportamento de grupo, típico dos mamíferos, que vivem segundo relações de apego familiar, um primeiro tipo de amor. As células do nosso corpo guardam o mesmo modo de funcionamento (vyavasāya) das formigas e abelhas, que agem como se formassem uma entidade única, sacrificando-se pelo bem do formigueiro e da colmeia. Trazemos em nossas veias e órgãos, em suma, os rios, as montanhas, a luz do sol e da lua, o espaço, o ar, o fogo, a água e a terra e todos os seres que habitaram este planeta.

No ser humano, emoções primitivas, como o medo e a raiva, passam a competir com sentimentos mais nobres e altruístas. Os nossos mecanismos de recompensa são mais elaborados que dos demais mamíferos. Não são tão imediatos, nem estão associados, unicamente, à gratificação dos sentidos. Nós renunciamos aos prazeres imediatos e nos esforçamos, por anos, para alcançar um objetivo maior, como a maestria em alguma arte ou área de conhecimento. É esta jornada consciente, em busca de autoconhecimento, que nos coloca em contato com o nosso altruísmo inato, promovendo o seu desenvolvimento e possibilitando o gradual afastamento dos comportamentos mais instintivos, característicos do reino animal. Com o desenvolvimento do círculo pessoal de ações, os sentimentos vão se expandindo para fora das nossas primeiras relações e passamos a desenvolver o amor por diferentes áreas da natureza e do conhecimento – plantas, pedras, sociedades, etc. Deste modo, convergimos para o sagrado e o divino, aproximando-nos do sentimento de sermos um com Deus e a sua criação. Superamos o estágio do amor apegado dos animais e passamos a experimentar do amor incondicional, que não necessita de recompensa, ou de qualquer tipo de gratificação. Deste modo, sentindo empatia por todas as formas de vida, e experimentando do amor  altruísta, desinteressado, impessoal e não egoísta, aproximamo-nos dos reinos da consciência angelical.

A meditação como o instrumento de superação da doença do egoísmo 

A marca característica (lakṣaṇa) dos praticantes das formas superiores de meditação é a capacidade que desenvolvem de agir de forma amorosa e altruísta, em conformidade com a consciência da verdade e da justiça, expressões da lei sintrópica universal (Ṛta). A meditação, quando corretamente praticada, desperta a consciência de que devemos sempre agir da forma mais correta (śreyas), e não necessariamente da forma mais agradável (preyas). Esta relação de precedência, estabelecida na práxis, nos indica que estamos superando o egoísmo e nos aproximando da consciência universal. Ela representa a energia do amor (śraddhā) nascendo da tensão entre śreyas e preyas.

A meditação tem como função nos auxiliar no processo de conscientização de nós mesmos e de nossa relação e sintonia com a consciência universal, que rege todas as coisas. A consciência universal, expressão do Ātman, toma, inicialmente, a forma de um amor ainda egoísta, que se desenvolve, gradualmente, em direção ao amor altruísta. A meditação nos emancipa da sujeição à nossa materialidade instintiva e promove o desenvolvimento do altruísmo, característico da consciência espiritual. Assim como temos consciência de que as formigas e as abelhas operam sob a jurisdição de uma consciência coletiva, com a meditação tomamos consciência de que também operamos sob o campo de influência de uma consciência maior e universal. Desenvolvemos, deste modo, a capacidade de trabalhar em sintonia com a lei sintrópica (Ṛta) emanada desta consciência (Ātman), que zela pelo bem estar universal. Na base do altruísmo está a cooperação consciente, que se funda no sentimento de que nascemos e nos movemos como partes de uma consciência universal, formando um só corpo. Esse tema é desenvolvido ao longo da Bhagavad Gītā.

A Bhagavad Gītā desenvolve a sua fenomenologia da consciência em torno do conceito de śraddhā e de sua relação com três conceitos fundamentais: kārpaṇya doṣa, saṁnyāsa e tyāga.

O primeiro, kārpaṇya doṣa, é introduzido por Arjuna no início do segundo capítulo, nos versos sete e oito. Arjuna afirma em BhG 2.7: “Meu entendimento pessoal se desvia pelo corruptor apego pessoal ao fruto da ação, causado pela ignorância do supremo dharma”. Kārpaṇya doṣa designa a este comportamento faltoso (doṣa) devido ao apego, à fraqueza interior (kārpaṇya), que afeta o ser como um todo. Literalmente, kārpaṇya doṣa pode ser traduzido como a aflição do miserável, ou kabana – termo que define a pessoa afetada pelo interesse no fruto do seu modo de agir. Representa o elemento viciante no motivo para a execução ou abstenção de qualquer ação. Cair vítima deste doṣa (falta, erro, mal, transgressão, doença, vício, engano) é tornar-se presa da infelicidade e de toda a sorte de misérias. Afetado por esta fraqueza, perde-se toda a śraddhā e, consequentemente, a capacidade de distinguir o certo do errado, tornando-se presa da dor e do sofrimento. No Mahābhārata, o rei cego Dhṛtarāshtra chama a este, o maior inimigo da realização humana, de svārtha doṣa, o mal (doṣa) do egoísmo (svārtha). Svārtha é uma expressão composta, “sva-artha”, que significa “interesse (artha) pessoal (sva)”. Quando o motivo para agir, ou não agir, está contaminado pelo mal do egoísmo (svārtha doṣa), os resultados são a dor e o sofrimento. Svārtha doṣa caracteriza a essência da natureza material do ser humano. 

O segundo conceito fundamental para se compreender a fenomenologia da consciência da Bhagavad Gītā é saṁnyāsa. Krishna atualiza, ao longo do texto, o seu antigo significado védico, redefinindo saṁnyāsa como a renúncia, não à ação, quando necessária e legítima, mas aos seus frutos, ou resultados. Trata-se de um conceito que, embora associado às nossas motivações interiores, é voltado para a realidade externa, para o plano da multiplicidade e a nossa interação com ele. 

O terceiro conceito, tyāga, relaciona-se diretamente com o nosso estado mental, com os nossos sentimentos e as nossas emoções. O sentido de tyāga fica claro no capítulo final do texto, no paradigmático verso BhG 18.66, onde Krishna pede a Arjuna que abandone o seu entendimento das normas que regulam a vida social e se entregue, unicamente, à direção da consciência universal, presente no coração de todos os seres e que dirige todo o cosmos. Esta forma de entrega, ou tyāga, dá-se pelo modo conforme nos relacionamos com as ações. Tyāga simboliza a renúncia pelo fruto da ação legítima e necessária, bem como a ausência de desejo pela execução da ação com motivação pessoal. Tyāga está totalmente voltada para a consciência interior. Representa uma disposição da mente e uma forma de disciplina interior com relação aos sentimentos e comportamentos que alcança toda a esfera de ações, fazendo de nós um instrumento e canal da consciência universal. A partir desse momento, já não somos nós que agimos, senão que esta consciência que age por meio de nós. Esse é o grande tema da Bhagavad Gītā.

O paradigma, rigorosamente científico, da arte e da meditação revelada por Krishna

Enquanto persistir a ênfase em nossa tendência egoísta, que reforça a separatividade, privilegiando o sentimento de “eu” e de “meu”, características do egocentrismo, a completa unificação dos campos da ciência e da espiritualidade é impossível. Antes é necessária a libertação das garras de svārtha doṣa e kārpaṇya doṣa, o que somente é possível por meio de saṁnyāsa e tyāga. Saṁnyāsa, em suma, é entendida como a renúncia ao egoísmo; e tyāga, como a entrega, em estado de contínua meditação, à luz natural da consciência de sagrado, manifestada em nosso coração. 

Quando a razão se deixa iluminar pela luz natural do coração, o sentimento intuitivo superior preenche a alma sob a forma de śraddhā e faz surgir na mente o pensamento, ou o plano que necessita ser executado. É a partir desse momento, propiciado por śraddhā, que a mente passa a compreender a ciência e a espiritualidade como um campo unificado. E é exatamente por isso, conforme já demonstrado (2015; veja aqui), que a expressão híbrida “śraddhā quaerens intellectum”, corrige e atualiza a fórmula latina medieval “fides quaerens intellectum” (a fé como o pressuposto para o conhecimento da verdade), elaborada por Santo Anselmo, e defendida por São Tomás, mas que viria a ser refutada pela ciência. O termo “fides” (fé) não contempla a ideia de refletir livremente, marca característica do pensamento científico. Ele sugere a ideia de fé como uma crença externa, objetiva, algo que pode, inclusive, ser irracional e desmedido. É uma verdade bem estabelecida que nenhuma crença torna-se conhecimento verdadeiro sem o suporte da devida evidência racional. Śraddhā, de outro lado, representa o sentimento sintrópico e a convicção interna do sujeito, que antecede qualquer crença. Śraddhā, enquanto princípio de confiança e prudência, implica em atender, simultaneamente, aos critérios da razão e da fé. Está em conformidade com o sentimento amoroso do sagrado coração, que nos compromete com os imperativos éticos da filosofia moral, presentes na origem das inquietações de Santo Anselmo e de São Tomás, sem prejuízo da nossa racionalidade. Deste modo, é śraddhā, e não a fides, o pressuposto que compõe o paradigma da ciência e de todo o conhecimento. A Bhagavad Gītā exemplifica esta via que conduz Arjuna do seu estado inicial de dúvida (BhG 2.7), até a certeza, oriunda de śraddhā, que é alcançada no capítulo final, quando Arjuna se mostra livre de toda incerteza  (BhG 18.73) e apto para agir em sintonia com a lei cósmica universal (Ṛta).


Rio de Janeiro, 08.05.20.
(Atualizado em 26.04.23)

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