2016-12-08

A Meditação na Práxis Sintrópica (Haṃsa), ou "Meditação em Movimento"

Haṃsagati, desse modo, nomeia o estado de meditação alcançado quando estamos em movimento, em marcha – “gati”, no sânscrito.
Francisco Barreto, na Fazenda Mãe Natureza e
em uma caminhada na Serra de Itabaiana.
Bhagavad Gītā nos revela que não há uma única situação concreta da vida em que a capacidade de cultivar em si mesmo o estado meditativo não possa ser praticada e desenvolvida. O texto descreve o movimento sintrópico da consciência de Arjuna nos campos objetivo (kuru-kṣetra) e subjetivo (dharma-kṣetra) da vida. No campo objetivo da ação concreta (kuru-kṣetra), Arjuna busca o conselho e a unificação com Krishna, que representa o observador (Dṛg), a testemunha (Sākṣī) do Espírito Supremo (Ātman), que não toma parte nas lutas efêmeras do mundo das aparências (saṃsāra). No campo subjetivo do diálogo da consciência de Arjuna (dharma-kṣetra), ele se torna tanto o observador (Dṛg) de si mesmo observando o mundo, como a própria coisa observada (Dṛśya). E é a isto, de acordo com este entendimento da Bhagavad Gītā, que se denomina como a Meditação na Práxis Sintrópica (Haṃsa), ou "Meditação em Movimento". 

A  Meditação na Práxis Sintrópica (Haṃsa), ou "Meditação em Movimento", origina-se do Dhyāna Mantra, expresso no Haṃsa Prāṇāyāma, discutido brevemente no artigo O que é Sākṣī?. O termo sânscrito “Haṃsa” significa “cisne” e simboliza o Espírito (Ātman). A expressão “Haṃ-sa” significa, literalmente, “Eu sou (‘haṃ) Aquilo (sa)”, ou seja, o Espírito. Haṃsa, desse modo, nomeia o estado de meditação alcançado na práxis, quando estamos em movimento, em marcha, realizando as nossas atividades do dia-a-dia. Em sua forma mais simples, a Meditação Haṃsa, assemelha-se às Meditações em Movimento (Walking Meditations) do budismo, que aparentam simples e descontraídas caminhadas, sem destino ou meta, a não ser o exercício da atenção sintrópica e da busca de sintonia do nosso alento vital com o coração do mundo.

A Meditação em Movimento expressa a compreensão de que Krishna e Arjuna representam os dois pássaros da metáfora védica, introduzida anteriormente, que se unificam no cisne Haṃsa (veja aqui). O cisne representa a culminação do processo sintrópico de unificação com o Ser, ilustrado, por exemplo, na seguinte passagem do pequeno texto medieval Dṛg-Dṛśya-Viveka, atribuído por alguns a Adi Sankaracarya:
Quando a forma é o objeto de observação, então os olhos são o observador; quando os olhos são o objeto de observação, então a mente é o observador; e quando as modulações mentais são o objeto de observação, então o Espírito, a Testemunha (Sākī), se revela o verdadeiro observador. 
Está aí o segredo da meditação sintrópica, contida no Dhyāna Mantra "Haṃsa". Percebemo-nos como este corpo corruptível e sujeito à morte somente enquanto não alcançamos a unificação com esta instância de nós mesmos que experimenta a existência do mundo sem ser afetado por ela. A seguinte passagem da Śvetāśvatara Upaniṣad ilustra bem este ponto: “oculto em todos os seres e representando o “Ser”, ele é a testemunha e o dispensador de vida.” (ŚU 6.11)

O Dhyāna Mantra “Haṃ-sa” exprime o ideal de fazer do próprio ato de respirar uma meditação. Deriva do anseio de que cada inspiração e expiração nossa esteja em sintonia e em ressonância com o Supremo Vir-a-Ser do mundo. Este ideal de sintonia torna manifesta a onomatopeia do processo de respiração. A inspiração revela o som “haṃ”; e a expiração, o som “sa” e assim, aos poucos, todo o nosso processo de respiração vai se tornando o Haṃsa Prāṇāyāma. Este prāṇāyāma é, algumas vezes, chamado “a-japa mantra”, porque é realizado sem a utilização do “japamala”, ou rosário, uma vez que expressa o som do processo involuntário de respiração. Ao trazermos à consciência e repetirmos mentalmente este imperceptível mantra, natural do processo de respiração, e realizado, em média, vinte e quatro mil vezes por dia, adquirimos foco e energia para nos aproximamos da nossa real identidade espiritual.  

Haṃsagati, desse modo, nomeia o estado de meditação alcançado quando estamos em movimento, em marcha – “gati”, no sânscrito.
Thich Nhat Hanh conduzindo uma Meditação em Movimento.
Não é necessário mais de um ou dois minutos de prática do Dhyāna Mantra, inicialmente, sob a forma das pequenas meditações em movimento, ou Meditação na Ação, para se começar a sentir os seus resultados. Esta modalidade de meditação, portanto, é a nossa grande aliada de todos os momentos, inclusive aqueles em que estivermos ocupados, nos sentindo ansiosos, estressados e com necessidade de relaxar; ou pelo contrário, nos sentindo apáticos e depressivos.

A meditação do cisne Haṃsa propõe-se como uma atividade contínua, em tempo integral. Pode exercitar-se a partir de pequenas caminhadas; mas o ideal é que esta prática se estenda pelo dia todo, pela vida toda, como expressão de uma intensa e profunda prática do Dhyāna Mantra “Haṃ-sa”, exaltado no não menos conhecido mantra “OM Haṃsa So ‘haṃ” – OM, o Espírito, de onde emana o sentimento de unidade (Bhāvana), Este sou eu. O mantra Haṃsa unifica e identifica os dois modos onomatopeicos da respiração: “Haṃ-sa” e “So ‘haṃ” – ambos mantras conduzem aos mais elevados estados da alma. Muitos adeptos do prāṇāyāma "So ‘haṃ" afirmam que esta modalidade de prática produz calma, tranquilidade e um estado de relaxamento profundo. 

A energia (śraddhā) da meditação em movimento influencia e induz o sentimento de unidade e amor universal, ou Bhāvana, em todos à nossa volta. Um exemplo disto pode ser visto nas “Walking Meditations” coletivas, conduzidas pelo monge vietnamita Thich Nhat Hanh. Segundo uma das técnicas zen budistas que ele pratica, “ao inspirar, devemos dizer para nós mesmos, ‘eu cheguei’; e ao expirar, ‘estou em casa’.” Deste modo, ele explica, “transcendemos as distrações e residimos na paz do momento presente”. Ele faz questão de deixar claro: "nós não temos que ir a lugar algum para obter a verdade; só precisamos nos harmonizar para que as coisas se revelem nas claras águas do nosso coração".

Haṃsagati, desse modo, nomeia o estado de meditação alcançado quando estamos em movimento, em marcha – “gati”, no sânscrito.
A Meditação em Movimento está compreendida no entendimento mais amplo dos conceitos sintrópicos de Bhāvana e de Śuddha Prāṇāyāma. O Bhāvana e o Śuddha Prāṇāyāma costumam ser exercitados de forma tão discreta e imperceptível que a sua prática se confunde com as atividades mais corriqueiras e triviais do dia-a-dia. É o rito amoroso de atenção plena ao processo sintrópico do alento vital que faz de cada minúscula atividade uma meditação. A atitude discreta do praticante torna a sua meditação invisível aos olhos das pessoas em geral, contudo, não impede que a energia desta forma superior de Meditação na Ação beneficie e influencie àqueles à sua volta. 

Um exemplo vivo do poder e alcance desta meditação "invisível" está ilustrado na vida do grande místico brasileiro, instrutor do  Śuddha Dharma Mandalam e encarnação plena de śraddhā, Francisco Barreto. Decorrente do poder emanado da sua meditação na ação, todos aqueles envolvidos nos trabalhos sociais e com a terra, desenvolvidos por ele na Fazenda Mãe Natureza, participavam da consciência sintrópica e do amoroso sentimento de unidade ali presentes. Francisco, vez por outra, também organizava caminhadas coletivas, onde as pessoas experimentavam o poder regenerador deste exercício de fazer de toda ação uma meditação.

Muitos místicos relacionam o mantra Haṃsa com a região do corpo caloso do cérebro, que tem a forma de um cisne e se diz ser a área responsável pelas intuições e o desenvolvimento espiritual de uma pessoa. Da região do corpo caloso flui o líquido cérebro-espinhal por onde ascende, quando estimulada pelas práticas de meditação, a energia kuṇḍalinī, que conduz aos estados de êxtase, ou samādhi.  

Tomar consciência do mantra Haṃsa, em suma, faz da respiração natural um poderoso prāṇāyāma, que logo se revela como uma forma meditação capaz de nos conectar com a fonte de energia cósmica, que é a Suprema Consciência Sintrópica (Ātman), presente em nosso próprio coração, bem como no coração do mundo.  "Haṃ-sa", inspiro paz e expiro amor... Quando inspiro, sinto a presença do Ātman no meu coração; quando expiro, sinto o meu coração no Paramātman...

Um vídeo ilustrativo do poder das caminhadas




Rio de Janeiro, 08 de dezembro de 2016.
(Atualizado em 15.05.23)

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