1. Todo Coração — Mayakovsky
e o Gesto Sintrópico
Há em Vladimir Mayakovsky, poeta russo, uma expressão viva da cultura sintrópica que o tropicalismo brasileiro começa a manifestar — uma cultura capaz de harmonizar a sabedoria ancestral de todas as raças, a ciência contemporânea e o impulso ordenativo do Espírito. Mayakovsky dizia ser “todo coração”. Assim como ele, reconheço no símbolo do coração o diapasão mais sutil da sintonia entre justiça social e amor.
Em seu último poema, A plenos pulmões (1930), Mayakovsky escreve:
E se me amarem, saibam:nos demais, todo mundo sabe,o coração tem moradia certa,fica bem aqui no meio do peito.Mas comigo a anatomia ficou louca,sou todo coração — em todas as partes palpita.
Essas palavras, entre a ironia e o lirismo, sugerem que há em nós uma possibilidade de presença integral, onde todo o ser pulsa em consonância com o outro — com o mundo, com Ṛta, a Grande Lei Cósmica, o Dharma vivo. Assim como Mayakovsky, também assim já afirmava o Śraddhā Yoga da Bhagavad Gītā: todo coração.
2. A Arte de Escutar o Coração — Bhagavad Gītā e Saṃvāda
A Bhagavad Gītā, principal canto da tradição védica sobre a arte de amar, é uma obra de meditação profunda centrada no coração. Escrito como saṃvāda, um diálogo de alma para alma entre Krishna e Arjuna, o texto não impõe doutrina, mas escuta. Não define, mas revela.
A Bhagavad Gītā nos mostra que a mente constrói métodos e sistemas; o coração, porém, pulsa em ritmo próprio, buscando sempre a harmonia com o invisível. A mente analisa; o coração compreende. A mente disputa; o coração se oferece.
Por isso, a Bhagavad Gītā ensina que a verdadeira ação (naiṣkarmya karma) só nasce do lugar onde o eu silencia. E é neste silêncio que se escuta a voz do Ser: uma voz que não comanda, mas chama. Uma voz que não impõe, mas convoca.
3. A Metáfora dos Dois Corações — o Sagrado e o Errante, Apaixonado
Vicente Celestino cantava o “coração vagabundo” — aquele que se apaixona e acredita que ama e por isso se perde; busca, mas se distrai. A tradição cristã nos apresenta o “sagrado coração” — aquele que arde em silêncio, que oferece amor impessoal, que sofre mas não fere.
Esses dois corações correspondem, em linguagem sintrópica, aos dois pássaros do Ṛg Veda: um deles come do fruto e se agita em busca de prazer (preyas); o outro contempla em silêncio, enraizado no Ser (śreyas).
Essa metáfora se atualiza no Śraddhā Yoga nos cinco gestos da disciplina — viniyoga, saṃkalpa, ṛṣi-nyāsa, satya-tyāga e upasthāna — que formam a travessia do coração errante ao coração desperto. Eles nos ajudam a discernir entre a paixão que escraviza e o amor impessoal que liberta; entre o desejo e o apego do ego, e a vivência do sentimento ardoroso e compassivo do Ser.
4. Caeiro e o Eu Profundo — Pessoa e Manoel de Barros
Fernando Pessoa dizia ser o psicógrafo de si mesmo. Seus heterônimos não eram invenções, mas escutas — vozes que brotavam do seu próprio silêncio. Alberto Caeiro, seu mestre interior, escrevia com o coração, sem querer ensinar:
Se há alguém para além da curva da estrada,Esses que se preocupem com o que há para além da curva da estrada.Essa é que é a estrada para eles...
Caeiro é essa escuta profunda.
Manoel de Barros, ao comentar O Eu profundo e os outros eus, percebe essa escuta como cura: “É preciso extrair do coração o que lhe pesa — a mágoa com o passado, a decepção com o presente, o medo do futuro — para que reste apenas o coração da criança.”
Esse retorno ao coração da criança é, no Śraddhā Yoga, o fruto de ṛṣi-nyāsa — a alegria de ser antes de fazer ou dizer. É o que nos permite reencontrar o mestre dentro de nós, a presença silenciosa que não exige explicações.
5. Cruz e Souza — o Cisne Negro, a Fé e o Sorriso Interior
O poeta Cruz e Souza, símbolo do cisne negro da literatura brasileira, nos ofereceu dois sonetos essenciais: Crê! e Sorriso Interior. Neles, o coração aparece como brasão, como chama e como flor — símbolo do ser que transfigura a dor em amor e compaixão.
O ser que é ser transforma tudo em flores…E para ironizar as próprias doresCanta por entre as águas do Dilúvio!
Esse “sorriso interior” é o sinal do coração que venceu os abismos da matéria sem perder a doçura. Ele não nega a dor, mas a atravessa com nobreza — como Arjuna na Bhagavad Gītā, quando já não luta por si, mas como instrumento do Ser que é Amor e se regula como dharma.
Na linguagem do Śraddhā Yoga, esse gesto é satya-tyāga: a renúncia à mentira interior, ao falso self, em nome da verdade que floresce do coração desperto.
6. Śraddhā-vṛtti como Prática do Amor Impessoal
A Bhagavad Gītā não é um livro de dogmas. É um campo de batalha, sim — mas um campo simbólico, onde o coração humano se despe do medo e aprende a ouvir a sua própria voz sutil. Essa voz não grita, mas sustém. Não ordena, mas vibra. É a śraddhā-vṛtti — o movimento da verdade, o gesto do Ser.
Quando dizemos "eu amo", estamos quase sempre falando de algo que desejamos. Mas precisamos recordar: śraddhā é a expressão do puro amor. Não há objeto de amor — há entrega. Por isso, śraddhā é mais que fé: é amor impessoal, é o fogo que se oferece sem buscar retorno.
Como Caeiro, como Cruz e Souza — o Śraddhā Yoga de Krishna nos lembra que todos somos discípulos do coração desperto.
Que esse sentimento se torne ponte.
Que esta troca floresça em novos gestos de equilíbrio.
Que a respiração do Haṁsa nos devolva à escuta daquilo que não se impõe, mas nos revela.
✨ OM NAMO NĀRĀYAṆĀYA ✨
Śubhamastu sarva-jagatām.
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