2024-07-24

A Bhagavad Gītā sob a Ótica Sintrópica: 61 Proposições para Integrar Ciência e Espiritualidade


01. Este texto apresenta uma síntese, em sessenta e uma proposições, das conclusões alcançadas ao longo deste livro-blog sobre a interpretação sintrópica da Bhagavad Gītā. Essa abordagem proporciona um novo entendimento da ciência e da sua conexão com a realidade sagrada. Partiremos da filosofia sintrópica, que tem se consolidado nos últimos anos, e exploraremos sua relação com o neo-Vedānta, com ênfase no Viśiṣṭādvaita (não dualismo qualificado), que afirma a realidade inerente do indivíduo e sua conexão com o todo.

02. De acordo com a perspectiva sintrópica, a experiência essencialmente amorosa, que dissolve a ilusão da dualidade e nos oferece a percepção da unidade, só é alcançada através da relação, que fundamenta a própria existência do mundo. "Ser é inter-ser", como afirma o monge budista vietnamita Thich Nhat Hanh, refletindo a interconexão, expressa como “eu sou porque nós somos”, presente na filosofia africana Ubuntu e na ecologia profunda.

03. A declaração "Aham Brahmāsmi" ("Eu sou Brahman") da Bṛhadāraṇyaka Upaniṣad (capítulo 1, seção 4, versículo 10) introduz a discussão sobre a identidade entre o eu individual e a Realidade Suprema. O título do texto, "Bṛhadāraṇyaka", tanto em seu sentido literal (o local de sua composição) quanto metafórico (o ambiente contemplativo necessário para sua compreensão), sugere que ele pertence (ka) ao ambiente sereno e isolado da floresta (āraṇya), onde os sábios buscavam atingir a vastidão (Bṛhat) de Brahman, a Realidade Suprema, a consciência cósmica, o princípio absoluto e infinito que permeia toda a existência.

04. A raiz "bṛh" está ligada à busca humana por compreender e conectar-se com o infinito e o absoluto, como exemplificado pela expressão "Ahaṃ Brahmāsmi" ("Eu sou Brahman"). Como veremos adiante, o sentido desta proposição está presente na Bhagavad Gītā. O Ser se manifesta dentro de uma relação que é simultaneamente uma relação de identidade e diferença; uma relação intransponível de afirmação e negação simultâneas do Ser, que integra e transcende seus aspectos com e sem atributos, Saguṇa e Nirguṇa. 

05. A Bhagavad Gītā descreve a reportagem feita ao rei cego Dhṛtarāshtra em seu palácio sobre o diálogo entre os protagonistas, Krishna e Arjuna, momentos antes do início da grande batalha final. Trata-se de um registro, quase em tempo real – muito provavelmente o primeiro –, de uma reportagem de guerra. A narrativa tem a forma de um pequeno diálogo de coração-a-coração (saṃvāda), de 700 versos, dentro da narrativa maior do épico Mahābhārata (aproximadamente 100.000 versos). 

06. No texto, é a fala verdadeira e amorosa (satya) de Krishna que orienta Arjuna para a percepção e contemplação, em meditação, da lei universal de funcionamento, Ṛta. Inicialmente, Arjuna questiona Krishna devido à sua dúvida, causada por uma percepção equivocada da realidade, desconectada de Ṛta. Sua compreensão da realidade era meramente teórica e rudimentar, guṇa-para, ou seja, focada no conhecimento aparente da realidade material e entrópica.

07. Quando Krishna o ajuda a se libertar, ainda que parcialmente, dos estímulos dos pares de opostos da realidade material, Arjuna começa a experimentar o funcionamento sintrópico, ātma-para, ou orientado para o Ser, aproximando-o da meta desejada. É sobre esta transição do funcionamento de guṇa-para para ātma-para, conforme vivida por Arjuna, que iremos tratar nas quatro seções apresentadas a seguir:

(1) Introdução aos conceitos de entropia e sintropia;
(2) Introdução à filosofia sintrópica na Bhagavad Gītā;
(3) O sentimento sintrópico e a sua relevância para a ciência
(4) Discussão Final

08. Vamos explorar a epistemologia da Bhagavad Gītā, destacando como śraddhā (sentimento intuitivo e sintrópico) nos conecta à verdade e à realidade sagrada. O neologismo "grok", cunhado pelo autor americano Robert A. Heinlein em seu romance de ficção científica Stranger in a Strange Land (1961), denota uma compreensão intuitiva ou empática, do mesmo modo que o conceito de śraddhā. 

09. Grok significa compreender algo em sua totalidade, de forma tão profunda que o observador e o objeto da observação se fundem. Representa a percepção que nasce não apenas da mente, mas do coração e da alma. Deste modo, o processo de grokar apaga as fronteiras entre o eu e o outro, capacitando-nos para mergulhar no universo da comunicação não-violenta e da empatia.

10. A filosofia sintrópica compartilha semelhanças com o existencialismo, ao questionar a natureza do ser humano e da consciência – aquele “nada” que não pode ser apreendido pelos cinco sentidos, mas que expressa o Ser-para-si. Sartre e Heidegger abordaram essas questões. Em O Ser e o Nada, Sartre torna mais acessíveis as questões exploradas por Heidegger em O Ser e o Tempo (1927), onde Heidegger realiza uma analítica existencial como preparação para a filosofia do Ser. Conhecer o Ser exige compreender o “dasein”, o ser humano que questiona o Ser. 

11. Heidegger possuía algum conhecimento das visões não dualistas do hinduísmo e do budismo. Para Heidegger, a physis grega não se refere apenas ao físico ou à natureza, como defendia Aristóteles, mas a tudo o que tem presença, transcendendo as definições lógicas que não alcançam o “logos”, o princípio de animação que permeia o Universo, ordenando todas as coisas. 

12. O logos tem semelhanças com o Tao na filosofia chinesa, que significa caminho. O que ocorre no caminho é o desvelar da verdade, aletheia. A história do Ser é, portanto, a história do seu velamento e desvelamento. O ente é o que se manifesta; a existência, a expressão dos modos de Ser. O Ser é a presença que permite ao ente aparecer; é a essência que fundamenta e ilumina a existência. O Ser faz o ente se manifestar. 

13. A partir de Heidegger, o campo da filosofia se tornou mais propício para uma reavaliação do pensamento poético da Bhagavad Gītā. Pode-se argumentar que a Bhagavad Gītā retrata a experiência existencial e única de Arjuna. O episódio Anu-Gītā (“depois” da Gītā), que compõe os capítulos 16 a 51 do Aśvamedha-parvan (Livro 14 do Mahābhārata), corrobora a visão de que o sentimento experimentado por Arjuna na Bhagavad Gītā foi uma experiência existencialista única, impossível de ser totalmente reproduzida em outras circunstâncias. Na Anu-Gītā, Arjuna pede a Krishna que explique novamente o ensinamento transmitido durante a Bhagavad Gītā, e Krishna explica que isso é impossível devido à singularidade do momento de percepção e escuta do sentimento intuitivo e sintrópico, ou śraddhā.

14. A ideia de ouvir este sentimento intuitivo e sintrópico também está presente na maioria das Upaniṣades. A alegoria da quadriga, descrita na Kāṭha Upaniṣad e ilustrada pelo episódio da Bhagavad Gītā, mostra como o sentimento sintrópico nos conduz ao vislumbre da verdade. A alegoria da quadriga simboliza o corpo como a carruagem; os cavalos, a mente e os sentidos; e os dois passageiros (o viajante e o cocheiro), os modos contraditórios do Ser, Jīva e Ātman. Na Bhagavad Gītā, esses passageiros são representados por Arjuna e Krishna.

15. Esta alegoria fala mais ao coração do que à razão, como ocorre com as artes. Ao ouvir uma canção, não nos focamos apenas na linguagem e nas proposições lógicas da letra, mas em como sentimos sua verdade, como a melodia nos toca e desperta nossa śraddhā, assim como aconteceu com Arjuna..

16. O termo śraddhā, que denota este sentimento intuitivo e sintrópico, aparece em dezesseis hinos do Ṛg Veda e pode ser entendido também como “engajamento entusiasmado”, “lealdade”, “dedicação”, “confiabilidade” e “credibilidade”, demonstrando que śraddhā é a base de todas as ações virtuosas. Em algumas dessas passagens, śraddhā é personificada como a filha do deus Sol. Nessa visão, a deidade Śraddhā representa o estado de entusiasmo, contentamento e confiança demonstrado no ritualismo cerimonial. Śraddhā, afirma o texto, desperta a deidade Agni, o fogo do coração.  

17. Todas as ações ritualísticas são realizadas através da deidade Śraddhā. Estar possuído por śraddhā significa dedicar-se de todo o coração e espírito à execução das ações de forma ritualística. Assim, desde o Ṛg Veda, śraddhā é o centro e a essência das experiências místicas e do pensamento filosófico-espiritualista.

18. Na Bhagavad Gītā, śraddhā representa um aspecto essencial da pessoa humana que define sua identidade e a conecta com a realidade sagrada. O verso BhG 17.3 afirma que somos moldados continuamente pela nossa śraddhā. A identidade de uma pessoa é definida pela sua śraddhā, que se manifesta como certeza sensível e fé em si mesmo, semelhante à certeza indubitável do cogito cartesiano. A partir dessa compreensão, podemos explorar como os princípios científicos se entrelaçam com os fundamentos de sentido e significado da vida. 

19. Livre dos enganos que levaram ao esquecimento do Ser e enriquecida por śraddhā, conforme ilustrado pela experiência de Arjuna na Bhagavad Gītā, a filosofia sintrópica se centra no Ser e não no ente, um foco do qual a filosofia ocidental esteve enraizada por séculos. Ela se baseia no entendimento, presente na Bhagavad Gītā e no neo-Vedānta, de que a verdade é um estado do espírito, experienciado como um sentimento sintrópico. A verdade não pode ser formulada pelo discurso racional, como geralmente se pretende na filosofia ocidental. Portanto, a tentativa de alcançar o conhecimento do Ser através da linguagem seria absurda.

20. Para entender o que significa o sentimento sintrópico que revela a verdade, devemos voltar às origens históricas dos conceitos de entropia e sintropia. O par sintropia/entropia possibilita a discussão de uma nova filosofia e ciência: a filosofia e a ciência sintrópicas, que buscam harmonizar seus princípios com a sabedoria das tradições ancestrais.

Introdução aos conceitos de entropia e sintropia

21. A Segunda Lei da Termodinâmica, na qual o conceito de entropia está profundamente enraizado, foi formulada por Rudolf Clausius em 1850 e publicada em 1854. Alguns anos depois, em 1865, Clausius define a entropia como a medida do grau de desordem de um sistema material. 

22. Quanto maior o grau de desordem de um sistema, maior é sua entropia. Assim, a entropia descreve a direção do fluxo de energia no universo material, indicando que o universo tende a se mover em direção a um estado de maior desordem. O físico Arthur Eddington resumiu essa ideia ao afirmar que "a entropia é a seta do tempo". Com o tempo, a entropia material aumenta.

23. Em contraste, a sintropia refere-se à energia que organiza a vida. Embora o conceito de sintropia tenha sido reconhecido pela comunidade científica desde a década de 1940, o termo "sintropia" só foi oficialmente introduzido na ciência com a publicação em 1974 do artigo "The Concept of Syntropy" por Albert Szent-Györgyi, laureado com o Prêmio Nobel de Medicina em 1937.

24. A teoria evolutiva, delineada pelo naturalista britânico Charles Darwin em sua obra A Origem das Espécies (1859), preparou o terreno para a formulação do conceito de sintropia por Szent-Györgyi em 1974. Darwin lançou as bases para entender a evolução dos seres vivos, facilitando o surgimento do conceito de sintropia. 

25. A primeira fase da vida biológica é marcada por um estado de ordem e complexidade associado à sintropia, que é definida como uma tendência para a ordem e organização. O processo entrópico, por outro lado, é caracterizado pela tendência à desordem e decadência, associada à morte. 

26. Carregamos em nossa herança genética traços das nossas origens mineral, vegetal e animal. Herdamos aspectos do cérebro reptiliano, que responde a mecanismos de recompensa imediata para satisfazer desejos. Mantemos, adormecido, o comportamento reptiliano, que não estabelece vínculos com o mundo, semelhantemente à cobra que consome seu próprio ovo. No entanto, também carregamos o comportamento social dos mamíferos, que vivem em relacionamentos familiares e manifestam um tipo primário de sentimento amoroso.

27. A explicação para a dinâmica criativa da vida vai além do escopo da ciência material, fundamentada no conceito de entropia. De um lado, temos a materialidade da mente emocional, racional e lógica, constituindo nosso consciente, subconsciente e inconsciente (Jīva; a alma material). De outro lado, está a imaterialidade da consciência universal (Ātman; o espírito puro), que anima o corpo e é representada pelo alento vital. Esse entendimento só ganha impulso com a introdução do conceito de sintropia. O processo começou em 1920, quando Alexander Gurwitsch propôs o conceito de campo morfogenético em seu artigo “On the Nature of the Organizing Factors in Development”. 

28. Gurwitsch argumentou que a organização dos organismos vivos é guiada por um campo morfogenético, uma força não-material que atua à distância. Ele observou que, mesmo na ausência de estímulos externos, um broto separado da planta continua a se desenvolver. Ele concluiu que o desenvolvimento do broto deve ser guiado por uma força interna, a qual chamou de campo morfogenético. Embora sua existência ainda não tenha sido comprovada experimentalmente, o conceito tem sido cada vez mais aceito. 

29. A teoria do campo morfogenético sugere que a organização dos organismos vivos não resulta apenas de forças físicas e químicas, mas também de forças não-materiais. Esse entendimento possibilitou a Luigi Fantappiè apresentar, em 30 de outubro de 1942, sua famosa teoria unitária do mundo físico e biológico, desenvolvida em seu livro Princípios de uma Teoria Unitária do Mundo Físico e Biológico (1944). 

30. No mesmo ano de 1944, o físico austríaco Erwin Schrödinger, em seu célebre livro What is Life? The Physical Aspect of the Living Cell, demonstrou que a vida é um processo que resiste à entropia. Em 1974, o fisiologista húngaro Albert Szent-Györgyi publicou na revista Nature o artigo "The Concept of Syntropy", que explora a tendência dos sistemas vivos de se organizarem e aumentarem sua complexidade.

Introdução à filosofia sintrópica na Bhagavad Gītā

31. O conceito de sintropia pode ser encontrado de forma simbólica no Ṛg Veda, onde o termo “Ṛta” expressa a lei que regula o equilíbrio cósmico e ordena o funcionamento de todas as coisas no universo. De acordo com o Ṛg Veda, Ṛta representa a ordem cósmica, a expressão suprema da verdade que regula e ordena o cosmos e tudo o que nele existe. Ṛta expressa a regularidade observada no nascer e no pôr do sol. Ṛta (ordem cósmica; equilíbrio sintrópico) expressa a lei geral da interação entre espírito e matéria; ela assume uma forma convergente, ou sintrópica, quando predominam as forças espirituais, e uma forma divergente, ou entrópica, quando predominam as forças materiais.

32. Embora o termo Ṛta ocorra apenas uma vez na Bhagavad Gītā, no décimo-quarto verso do décimo capítulo (BhG 10.14), seu sentido permeia todo o texto, implícito no conceito de dharma (lei, sagrado, espiritualidade), que é central na Bhagavad Gītā. Dharma é uma expressão de Ṛta. Segundo a Bhagavad Gītā, ao renunciarmos aos frutos de nossas ações, libertamo-nos dos grilhões do ego, transcendendo desejos e apegos que nos prendem à realidade material. Agimos então de maneira desinteressada, em harmonia com a lei do equilíbrio cósmico (Ṛta), e não mais movidos pelo desejo de ganhos pessoais. 

33. A Bhagavad Gītā ganhou centralidade no pensamento indiano com as contribuições de Shankara no século VIII. A partir daí, uma longa tradição de comentadores surgiu. Com a chegada do texto ao Ocidente em 1785, através da tradução para o inglês de Charles Wilkins, a Bhagavad Gītā se tornou um sucesso entre os intelectuais europeus. Hoje, existem mais de 3.000 traduções em mais de 50 idiomas, com mais de 1.000 em inglês. O texto foi recebido no Ocidente com surpresa e admiração por filósofos e artistas notáveis, como Emerson, T. S. Eliot, Wilhelm von Humboldt, Henry David Thoreau, Aldous Huxley, Herman Hesse, Albert Einstein, entre outros.

34. A popularidade da Bhagavad Gītā no Ocidente é, em grande parte, atribuída ao movimento neo-Vedānta, que se desenvolveu no início do século XX, influenciado por místicos como Yogananda, Vivekananda, Gandhi e Aurobindo. O neo-Vedānta sugere que a Bhagavad Gītā deve ser compreendida não como um texto sectário ou doutrinário, mas como um tratado filosófico.
 
35. O texto religioso pode, ocasionalmente, induzir ao raciocínio circular. Por exemplo, no contexto religioso, frequentemente ouvimos que os Vedas e a Bíblia são manifestações paradigmáticas da verdade. No entanto, ao questionarmos a prova dessa verdade, a resposta geralmente é: “isso é verdade porque está escrito na Bíblia, nos Vedas etc”. Ou seja, afirmação de que a Bíblia afirma a verdade seria verdadeira porque é isso está escrito na Bíblia!

36. Um equívoco significativo no Vedānta é traduzir śraddhā na Bhagavad Gītā como fé, implicando uma aceitação passiva e acrítica do texto religioso como um ato de crença.  A Bhagavad Gītā, contudo, é mais que um texto meramente religioso. Tal como compreendido no ocidente, a Bhagavad Gītā constitui-se como um tratado de uma filosofia perene, fundada na práxis, bem como na arte e na ciência da meditação. É da meditação que nasce o caminho para a verdade. E é isto que nos revela a centralidade de śraddhā para a construção da ponte entre ciência e espiritualidade.

37. A Bhagavad Gītā tem como núcleo o conceito de śraddhā – o sentimento sintrópico que define a Cultura Sintrópica e sua práxis, representando a confiança e a prudência. Śraddhā é a bússola interior e a energia amorosa que guia a razão na sua jornada em direção à Verdade e ao Absoluto (Brahma-sāmīpya). Representa o Princípio da Confiança e da Prudência, que se manifesta no cogito cartesiano como a razão iluminada pelo coração tranquilo. Este princípio orienta a conduta do herói em sua jornada e representa o processo racional e dialético para alcançar o “estado de testemunha”, obtido através do encontro com as verdades últimas e o sagrado revelado nas Escrituras, superando a vontade e a fé exterior.

38. De um modo geral, o neo-Vedānta corrobora a tese, implícita na discussão sobre a centralidade de śraddhā, de que a Bhagavad Gītā representa, antes um tratado metafísico fundamental da filosofia perene que uma simples espécie de evangelho indiano. A Bhagavad Gītā não privilegia o espírito em detrimento da matéria. Em vez disso, compreende a matéria como uma expressão de Ṛta, que é explicitada pela relação de identidade e diferença dos três componentes do Praṇava OM: A-U-M. 

39. O Praṇava AUM pode ser interpretado como uma representação do sagrado que, simultaneamente, afirma e nega o Ser, refletindo a relação de contradição conhecida como niṣedha sambandha (niṣedha; contradição, negação; e sambandha, relação). Esta trindade se exprime por termos como: (1) Ser, (2) não-Ser e (3) relação de vir-a-Ser; (1) Espírito, (2) Matéria e (3) Vida; (1) Tese, (2) Antítese, e (3) Síntese; e outros ternos semelhantes. 

40. Isso implica que todas as oposições existem apenas de forma relativa. A Terra pode ser considerada grande em comparação com a Lua, e pequena em comparação com o Sol. Da mesma forma, o Praṇava AUM, símbolo sagrado, representa a negação da diferença entre o universo fenomenológico (Saṃsāra) e o absoluto (Nirvāṇa). 

41. “Praṇava” é um termo sânscrito que significa “controlador e dispensador do alento vital (prāṇa)”. Outra etimologia (Yoga Sūtra I.29) sugere que o termo deriva de “pra” (antes, adiante) e “nava” (som, grito primal) e designa o som primordial que ressoa no coração e nos canais nervosos do corpo. O Praṇava representa a respiração da criação cósmica e a voz do prāṇa.

42. A interdependência entre os três constituintes da Trindade A-U-M reflete a ideia de que cada um deles representa a negação da diferença entre os outros dois, semelhante à dialética hegeliana. Na dialética hegeliana, há uma dinâmica de tese, antítese e síntese, onde a tese e a antítese são opostas e, sua síntese resolve a contradição entre elas. A Trindade A-U-M, representando diferentes aspectos do Praṇava (o som primordial), também envolve uma relação dialética:

A (Akarā) representa o estado de criação ou nascimento.
U (Ukarā) simboliza a preservação ou o estado de manutenção.
M (Makarā) está associado à dissolução ou destruição.

43. Cada som tem um significado simbólico e representa um aspecto diferente da realidade e da consciência. Akarā representa o estado de vigília, o mundo material e Brahma, o criador. Está associado ao som gutural que se origina na base da garganta, "A". Ukarā representa o estado de sonho, o mundo sutil , simbolizado por Vishnu, o preservador. Está associado ao som palatal que se origina no meio da boca, "U". E Makarā representa o estado de sono profundo, o mundo causal, associado ao aspecto da divindade conhecida como Shiva, o destruidor (ou transformador). Está associado ao som labial que se origina nos lábios, "M". A pronúncia completa do AUM inclui um quarto som, o silêncio que se segue ao "M", representando o estado de consciência pura, além dos três estados de vigília, sonho e sono profundo. Esse estado é conhecido como Turīya, a consciência transcendental.

44. Cada um desses aspectos não existe isoladamente, mas está inter-relacionado com os outros dois. A criação (A) leva à preservação (U), e a preservação leva à dissolução (M), que por sua vez, prepara o campo para uma nova criação. Assim, há uma interação contínua e uma negação da diferença entre esses estados, refletindo a ideia de que eles são interdependentes e, juntos, formam uma unidade coesa.

45. Um exemplo clássico da dialética hegeliana é a relação entre semente e planta: a (1) semente é a negação da (2) planta, mas ambos (3) se relacionam e se identificam, pois a planta surge da semente tanto quanto a semente surge da planta. Hegel desenvolveu um sistema teórico notável, embora não relevante para a filosofia sintrópica, pois o seu sistema ignora o aspecto vital da vida e da existência. Esta limitação levou ao surgimento da filosofia existencialista, precursora da filosofia sintrópica contemporânea.

46. A discussão sobre os fundamentos e a práxis da filosofia sintrópica alcança o seu clímax na Bhagavad Gītā. O sentimento sintrópico, representado como śraddhā, floresce a partir de um encontro com o sagrado, transformando nossa visão de mundo e nossa forma de agir. 

O sentimento sintrópico e a sua relevância para a ciência

47. Não é o conhecimento intelectual do amor que nos conduz à consciência sintrópica, mas o sentimento universal desse amor (śraddhā), que nos unifica a todos. No centro da epistemologia da Bhagavad Gītā está a dimensão amorosa e universal do Ser, presente no coração espiritual como uma consciência intuitiva que ilumina a razão individual e egocêntrica. Assim como formigas e abelhas operam sob uma consciência coletiva, todos nós operamos sob a influência da consciência sintrópica coletiva e universal, o Ātman. O Ser (o “Eu”, o Ātman) e o ser humano (o “eu”, o Jīva) são os dois aspectos da Consciência.

48. Para entender como o sentimento sintrópico opera sua relação com outros conceitos científicos e sua influência sobre o comportamento e a tomada de decisões, devemos questionar: o que vem primeiro, o sentimento ou o pensamento?

49. Segundo a Bhagavad Gītā, a semente original de todas as existências e a causa do surgimento do universo é simbolizada pela fórmula “Ekoham, bahusyam prajayeyeti” (Eu sou Um, tornar-me-ei múltiplos seres), discutida na Chāndogya Upaniṣad. Esta semente é representada pela expressão sânscrita OṂ (AUṂ). 

50. O universo teria surgido como expressão do sentimento de amor, sugerindo que o sentimento precede o pensamento e tudo o que existe no universo. Em outras palavras, não somos movidos por ideias, mas por sentimentos.Conceitos podem ser apreendidos pelas máquinas. As pessoas pensam porque sentem, e não o contrário. 

51. A linguagem, a palavra, é secundária em relação ao sentimento. A sabedoria envolve sentir, perceber, experimentar. Você pode conhecer e recitar a Bhagavad Gītā em sânscrito décor, mas o que é essa recitação trigúnica, comparada ao sentimento de quem experimentou da fonte, do oceano de todas as águas? Esta experiência vai além do conhecimento expresso pela linguagem. Representa o Nirvikalpa (nir = sem; vikalpa = pensamento) samādhi, que se experimenta em meditação.

52. O samādhi vem como experiência, não por um processo de auto indagação. Pelo contrário, como descreve Patanjali, o samādhi resulta da cessação desse burburinho mental. Ser e pensar não são o mesmo, como queria Aristóteles. Ser é sentir. São os sentimentos que acionam os pensamentos e as ações. Desse modo, ser é experimentar, progressivamente, o amor. “Sentir” (verbos “aṇūbhū” e “bhū”) denota a experiência de ser, significa “experimentar ser”, ou “vir-a-ser”.  

53. Disciplinas como a ecologia já reconhecem que sentimentos superiores (como unidade, conexão e equilíbrio) conferem sentido à razão, elevando-a da lógica inorgânica dos fenômenos abstratos e inanimados para a lógica orgânica e dialética que rege tudo o que é vivo. 

54. Descartes descreveu em sua obra como chegou à sua primeira certeza sensível: "penso, logo existo". Esta conclusão fez com que ele sentisse a verdade de maneira profunda, impedindo-o de aceitar como verdades os falsos dogmas de fé. No entanto, embora a crítica cartesiana expresse a quebra do paradigma medieval baseado na fé como pressuposto para o conhecimento, o cogito, por si só, não nos leva a certezas sobre o mundo concreto.

55. Esta convicção e certeza decorre de śraddhā. Śraddhā representa a interseção entre fé e cogito, aproximando-nos da verdade e da essência do real. Śraddhā não se dissocia da ciência ou da espiritualidade, pois não é um dogma de fé e não contraria o funcionamento pleno da razão. Deste modo, a dúvida metódica e o livre pensar, presentes no método científico ocidental, já estavam de alguma forma presentes na filosofia sintrópica da Bhagavad Gītā. 

56. A ciência moderna surge, com Bacon e Descartes, como uma negação da ciência religiosa baseada na fé.. A "fé" (fides) representa algo em que se deve acreditar sem necessidade de motivos racionais. A arte de duvidar instala-se a partir de Descartes (1596-1650), que se vale da dúvida enquanto método para alcançar a sua primeira certeza (cogito ergo sum – penso, logo existo), superando o paradigma medieval expresso como “fides quaerens intellectum”. Bacon (1561-1626), de outro lado, fórmula em seu Novum Organum (1620) as etapas envolvidas na investigação científica: observação empírica, formulação de uma hipótese, experimentação e uma conclusão sobre a validade ou não da hipótese.

57. Para ilustrar como os sentimentos intuitivos, manifestados como śraddhā, influenciam a solução de problemas, consideremos as contribuições de dois matemáticos: Carl F. Gauss e Henri Poincaré. Gauss comentou após uma grande descoberta matemática: "Agora que senti intuitivamente a solução, só preciso encontrar o processo lógico que me conduza até ela." Sua certeza interior ilustra como o inconsciente apresenta à mente consciente uma solução possível, que ainda precisa ser validada. Após surgir na mente, o sentimento intuitivo deve ser validado pela racionalidade consciente através de relações lógicas que nos levam da hipótese intuitiva à prova racional.

58. Henri Poincaré (1854-1912), ao enfrentar um novo problema matemático, percebeu que, além da abordagem racional, outro processo opera, levando à seleção da resposta correta. Poincaré chamou esse processo de intuição. Ele conclui que o processo de descoberta envolve uma fase inconsciente onde os processos intuitivos surgem, conduzindo à conclusão. As soluções oferecidas pela intuição seriam reconhecidas por uma emoção do coração, um sentimento de verdade que atrai a atenção da mente, possibilitando que a solução alcance o nível consciente da mente. Objetivamente, as intuições são percebidas no sistema nervoso autônomo do coração como um estado de bem-estar, indicando que os sentimentos estão alinhados com os resultados esperados.

Discussão Final

59. Em resumo, podemos afirmar que a emergente ciência sustentável da pós-modernidade pode ser explicada a partir do entendimento sintrópico da realidade (Ṛta), mediado pelo sentimento profundo de śraddhā, que representa o princípio da confiança, da prudência e da verdade.

60. Śraddhā é a principal categoria para compreender a unificação entre ciência e espiritualidade. Como ilustração final da importância do conceito de śraddhā na construção da nova ciência, é relevante mencionar que o filósofo Arne Naess, criador da ecologia profunda, reconheceu ter utilizado o sentido de verdade presente na Bhagavad Gītā para fundamentar sua abordagem ecológica em seu livro Ecology, Community and Lifestyle (1989).

61. Por meio de śraddhā, aprendemos a identificar o que caracteriza a verdadeira ciência. Assim, o sentimento sintrópico de śraddhā sugere a reconciliação entre razão e fé, servindo como luz, guia e inspiração para que a razão mantenha sua direção e conexão com a realidade e com o sentido do sagrado. Como disse Blaise Pascal, "O coração tem razões que a própria razão desconhece... Nós compreendemos a verdade, não simplesmente pela razão, mas pelo coração."

SUMÁRIO GERAL: A Arte e a Ciência da Meditação segundo a Bhagavad Gītā
Próximo texto: Sintese da Práxis e da Meditação Sintrópicas em Dezoito Passos

Rio de Janeiro, 24.07.24
(Atualizado em 26.07.24)

Nenhum comentário:

Postar um comentário