2018-04-17

A Via do Coração: impessoalidade, religião e espiritualidade

Francisco Barreto, instantes antes do início da cerimônia de consagraçào do Ashram Brahmala (08.04.18)
Francisco Barreto, instantes antes do início
da cerimônia de consagraçào do
Ashram Brahmala
(08.04.18)
Depois da organização de um evento, quase ninguém se ocupa em refletir sobre as etapas e os desdobramentos conceituais do processo da sua realização. É esta reflexão, relativa ao evento que culminou com o encontro realizado no último domingo (15.04.18) com Francisco Barreto, intitulado a Via do Coração, que será objeto do presente artigo.

Qual dos idealizadores e/ou participantes da organização de um evento se recorda como se deu o seu envolvimento com as distintas etapas do seu processo de elaboração? No caso do evento encerrado no último domingo, tudo começou com a iniciativa de Francisco, de gestar em sua mente esta viagem ao Rio, com todos os seus percalços, dificuldades e acertos, em meados de março. De minha parte, tenho consciência que a minha participação iniciou-se com o convite que recebi de um dos integrantes do grupo de Niterói, no dia 19 de março, logo após a reunião com os colaboradores anônimos da Universidade do Coração, conduzida por Francisco, via Skype, para ir conhecer o espaço que abrigaria o novo Ashram afiliado da instituição. Eu tinha consciência que o estabelecimento do Ashram Brahmala representava uma das principais motivações para a visita de Francisco. Era necessário consagrar aquele espaço e preparar as pessoas que ficariam incumbidas de levar adiante a árdua tarefa de viver e difundir os nobres ideais da realização espiritual, difundidos pela Grande Síntese, órgão mantenedor da futura Universidade do Coração.

Planejando aquela que seria a última viagem de Francisco ao Rio de Janeiro
(Vídeo gravado em 24.03.2018)


Da gestação à materialização de mais uma etapa do plano diretor que rege
a implementação da futura Universidade do Coração

Evento A Via do Coração: Devoção, Impessoalidade, Religião e Espiritualidade
O primeiro passo no sentido de viabilizar a viagem, em atendimento ao chamado interior para realizar mais uma etapa dentro do plano de implementação da Universidade do Coração, foi a formação e harmonização de uma equipe para cuidar de toda a logística. Era necessário garantir os meios materiais que viabilizariam a “espiritualização da matéria”, ou seja, a descida, ao plano material do “Espírito” que deve animar e equilibrar todo ato justo, verdadeiro e necessário. O veículo e principal instrumento para esta missão era, obviamente, o próprio Francisco, que se prontificara a realizar a viagem de caminhão, em companhia de uma pessoa imbuída dos mesmos ideais de servir, impessoalmente, como um canal e instrumento da consciência de sagrado e da espiritualidade pura que permeia todo o universo. Trazer o caminhão da instituição carregado com os produtos artesanais produzidos pela Grande Síntese, tanto na fazenda Mãe Natureza, à beira do rio São Francisco, na divisa entre Sergipe e Alagoas, bem como no Edifício Milagres, situado no centro de Aracaju, atenderia a um duplo propósito: (1) custear a viagem, a partir da venda de artesanato em exposições no Rio; e (2) difundir os valores culturais e espirituais impregnados naquelas peças produzidas com devoção e amor.

O segundo passo, foi motivar todo o grupo do Rio de Janeiro a encontrar locais que pudessem acomodar o artesanato a ser exposto e comercializado. Isto exigiu de cada voluntário uma entrega abnegada aos objetivos estabelecidos, em nome do ideal e do compromisso que nos unifica enquanto membros de uma mesma instituição. Exigiu agilidade e trabalho em equipe para estabelecer os preços e os pontos de venda e para criar o material de divulgação. Exigiu atenção e cuidado para definir e conciliar os locais escolhidos com os horários e dias de funcionamento, levando em conta, principalmente, o perfil e o número de pessoas que circulariam por estes espaços.

O terceiro e, provavelmente, o mais importante passo, constituiu-se dos preparativos realizados para a formação do novo Ashram. Esta etapa incluiu (1) a arrumação inicial do local onde seria formado o novo Ashram; (2) o acolhimento e hospedagem dos convidados que vieram para a cerimônia de consagração; (3) a consagração em si daquele ambiente de estudos, meditação e trabalho, oficializada por Francisco; e, principalmente, (4) o subsequente treinamento intensivo que foi oferecido a todos os membros para que pudessem se capacitar para os futuros desafios que a condução de um trabalho espiritual nos impõe.

08.04.18. Ashram Brahmala
O quarto passo foi a viabilização do evento de encerramento, A Via do Coração, encontro com Francisco Barreto, que simbolizou a conclusão dos objetivos desta viagem. A realização deste evento em nosso núcleo de estudos, voltado à teoria e a prática da ciência da meditação, contribuiu para arrecadar doações, de diversos tipos, destinadas à instituição, possibilitando, deste modo, que o caminhão não voltasse para Aracaju com uma capacidade ociosa. Estes pequenos cuidados, aparentemente insignificantes, que incluem até mesmo a preparação dos lanches de viagem, também fazem parte da disciplina espiritual e, com eles, concluímos a nossa participação na parte material deste processo. Permanecemos, contudo, vigilantes em nossas ações e atentos espiritualmente à viagem de volta, com os nossos melhores pensamentos para que ela transcorra da melhor maneira. Esta presente reflexão, pode-se dizer, em suma, é parte deste esforço espiritual de compreensão, integração e unificação de todos os caminhos de volta da jornada do herói, sintetizados magistralmente por Joseph Campbell na estrutura do Monomito – aquela estrutura universal, presente na literatura mitológica e religiosa de todos os povos e culturas e que representa a aventura do herói pelas vias do coração, desde a sua partida, até o seu retorno para casa, ou seja, para mais perto de si próprio e, consequentemente, do Espírito que habita no coração de todos os seres.

Impessoalidade: a marca característica da via do coração e da espiritualidade pura

Alguém poderia me perguntar, mais especificamente, de que tratou este encontro realizado aqui em casa. Em resposta, teria que dizer que a cada um foi dado conforme a sua capacidade de compreender, assimilar e viver o conceito fundamental, que representa a marca característica da nossa instituição e que designamos como “impessoalidade”.

O que é e como se caracteriza, na prática, a impessoalidade? 

Não posso responder pelos outros, nem me preocupo com o modo conforme Francisco a conceituou e exemplificou em sua fala, que foi muito interessante, mas, a meu ver, secundária, menor, em relação ao que ele, de fato, já vive, ou procura viver, em termos de vida impessoal. Para mim jamais foi difícil perceber como a autêntica impessoalidade irradia-se de todo o seu ser. Ela já estava presente em, praticamente, todas as ações de Francisco quando o conheci, nos idos de 1978. Por isto mesmo, prefiro não retirar das palavras que ele proferiu neste nosso encontro o que entendo por impessoalidade, e sim da consonância que percebo existir entre o seu exemplo de vida e aquilo que eu próprio conclui, não a partir dele, mas dos meus estudos das Escrituras Sagradas.  Em muitos lugares das Escrituras a impessoalidade aparece sugerida, mas, arrisco dizer, em nenhum desses lugares com a beleza, elegância e acuidade que a revelam e definem nos versos que compõem a Bhagavad Gītā

Segundo a leitura que muitos fazem da Bhagavad Gītā, dentre os quais me incluo, “religião” envolve uma forma ou outra de devoção a uma pessoa divina – Jesus, Krishna, Buda, Shankara, etc. A impessoalidade que caracterizaria o discurso da Bhagavad Gītā, portanto, estaria acima deste entendimento possível pela religião, caracterizada pela devoção, ou preferência, por alguma “pessoa”. Há um interessante artigo de Sri Janardana, que tive a oportunidade de traduzir para o site da Universidade do Coração, denominado "Princípios e Personalidades", que trata do tema da impessoalidade. No texto, Sri Janardana defende que a impessoalidade está na raiz mais pura da experiência de natureza religiosa, que sempre privilegia os princípios vividos e não a devoção às pessoas que os exprimem, como se vê nas distintas denominações religiosas fundadas na Bhagavad Gītā e que, na Índia, se reúnem sob o nome de Vedanta. Infere-se da análise de Sri Janardana que a devoção dos religiosos em relação aos fundadores de suas religiões e aos santos de sua predileção não é diferente da devoção e predileção de uma mãe por um filho, quando comparada a outra criança qualquer. Ambas expressariam formas exacerbadas de “pessoalidade”.  Quem interpreta a Bhagavad Gītā como o fazem os adeptos do Bhakti-vedanta (Hare-Krishnas), por exemplo, sente uma devoção especial pela “pessoa” de Krishna, antes que aos princípios universais e impessoais que este representa. Não é por outra razão que os devotos de Krishna constituem um movimento religioso. E é natural, portanto, que eles não compreendam, nem aceitem, as consequências da busca da impessoalidade, representada no puro e transcendente princípio de inteligência cósmica, designado como Brahman.

Evento A Via do Coração: Devoção, Impessoalidade, Religião e Espiritualidade
Sri Janardana (1892-1966)
Deste modo, precisamente por cultivar antes a impessoalidade e valorizar os princípios, e não a devoção pelas pessoas que os exprimiram, jamais poderia me considerar um “devoto” apaixonado de Krishna, Jesus, Maria, e muito menos um seguidor das religiões e das distintas denominações a que deram origem. Assim como Sri Janardana propõe em seu artigo, procuro direcionar a minha devoção aos princípios da ciência sagrada universal, que os grandes sábios das distintas tradições professaram e praticaram. E a impessoalidade representa a marca característica deste direcionamento para a espiritualidade pura (śuddha dharma), presente em nossos corações e oculto em todos os aspectos da vida. É esta mesma impessoalidade que nos possibilita interagir, valorizar e colaborar com os diferentes grupos que se organizam em movimentos religiosos, Ashrams, Sangas, Igrejas e assim por diante. Ao personificarem em seus fundadores os princípios universais que estes vieram professar, as instituições religiosas preservam, em parte, de alguma maneira, aquilo que, de outro modo, poderia se perder. Talvez o esforço, empreendido na prática por Francisco nesta etapa de sua jornada, de viver e transmitir, pelo exemplo, o sentido maior do princípio universal da impessoalidade pudesse expressar o que significou esta viagem, que se constituiu, na verdade, em mais uma etapa dentro do longo processo de materialização da Universidade do Coração. Faz parte do esforço de Francisco deixar este legado e levar as pessoas a compreenderem que todas as religiões emanam do coração. Daí, em suma, o ideal religioso de se acessar, por distintos modos, a universal via do coração, cujos segredos se revelam àqueles que se dedicam à vida impessoal, independentemente de se fazer parte desta ou daquela instituição, conforme sugerem o título e o tema do encontro realizado em nosso espaço e que definem o objeto, por excelência, da futura Universidade do Coração.

SUMÁRIO GERAL: A Arte e a Ciência da Meditação segundo a Bhagavad Gītā

Rio de Janeiro, 17.04.18.
(Atualizado em 07.01.23)

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