2023-05-14

Entropia e Sintropia na Bhagavad Gītā e no Mahābhārata (I)

O que é a vida?
Não são as ondas, mas o mar...
Nascemos e morremos no oceano da vida.

INTRODUÇÃO:
O estabelecimento dos fundamentos da filosofia sintrópica e da sua práxis

Este artigo trata da epistemologia e teoria da verdade da Bhagavad Gītā e das suas consequências para o mundo moderno. Toma como ponto de partida algumas ponderações feitas na tese "Śraddhā in the Bhagavad Gītā" (2007), desenvolvida no Instituto de Ciências Sociais da McMaster University e reconhecida (2009) como uma tese de doutorado em filosofia (ver parecer) pela Comissão Especial de Revalidação de Certificados e Diplomas de Pós-Graduação do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), constituída pelos professores Dr. Fernando José de Santoro Moreira, Dr. Franklin Trein e Dr. Gilvan Luiz Fogel.

A discussão que se segue funda-se na comparação desenvolvida na tese entre a importância filosófica do termo sânscrito śraddhā em relação ao termo latino fides, compreendido a partir da expressão fides quaerens intellectum, de Santo Anselmo, que fundamenta a filosofia tomista. Esta comparação deixa implícito o reconhecimento da existência de um pensamento sintrópico na Índia antiga. Este artigo procura mostrar que a experiência da pós-modernidade, ao revelar a importância do humano e do seu espaço simbólico e resgatar de volta para a filosofia as discussões em torno das noções de sagrado, de religiosidade, dos mitos e do inconsciente, pode ser explicada a partir do entendimento sintrópico do conceito de śraddhā. O termo sintropia tornou-se mais conhecido entre nós a partir da expressão “agricultura sintrópica”. Contudo, o entendimento sintrópico da realidade como um todo é anterior, sendo descrito no livro O espírito, este desconhecido (Edições Melhoramentos, 1980), de Jean Emile Charon, lançado na França em 1977. O livro discorre sobre a neguentropia, termo sinônimo de sintropia, e da sua relação com o elétron, uma partícula quase imaterial, cujas propriedades nos remetem à ideia de espírito.

Na Bhagavad Gītā śraddhā representa o compassivo sentimento sintrópico, que define a Cultura Sintrópica e a sua práxis e se traduz como o princípio da confiança e da prudência, a bússola interior e a amorosa energia que ilumina a razão em seu processo de convergência para a Verdade e o Absoluto (Brahma-sāmīpya). Expressa a medida e o critério para a execução de todas as atividades: qualquer coisa feita com śraddhā tem uma parcela de verdade, sem śraddhā torna-se nula. Śraddhā está sempre de acordo com a verdade relativa de cada pessoa. Não requer que se acredite em qualquer coisa. Do mesmo modo, no Budismo Theravada śraddhā (Pali: saddhā) significa fé mais conhecimento, confiança e devoção. A Doutrina (Dhamma) dada pelo Buda funda-se no conceito de bhāvanā, utilizado no sentido de cultura, conforme empregado na agricultura. O senhor Buda o utiliza com o sentido de “cultivo da mente”.  Por isto, ao exercerem qualquer crença, os budistas procuram se certificar de que ela seja bem fundamentada e aceitável. A cultura da mente proposta no budismo é “ehi-passika” – “venha e veja”.

O presente texto procura mostrar que uma vez que a capacidade de reconhecer a verdade e as leis da natureza vem de śraddhā, ela pode ser utilizada para explicar os novos paradigmas que buscam fazer a ponte entre a ciência e a espiritualidade. Śraddhā pode ser compreendida como uma categoria filosófica capaz de harmonizar, sintropicamente, os papéis associados, ao longo da história, tanto à fides, como ao cogito cartesiano. Śraddhā não se deixa traduzir como “fé”, que vem do latim “fides”. O termo “fides” não transmite o significado filosófico de śraddhā. Ao contrário, “fides” expressa o pensamento fundamentado no paradigma “fides quaerens intellectum”, de Santo Anselmo, que definiu como a fé (fides) é condicionada pela crença. A filosofia se estabelece no ocidente a partir do resgate dos clássicos gregos e da sua reinterpretação conforme a máxima medieval de Santo Anselmo, que propõe como postulado esta expressão que contempla a precedência da fé dogmática sobre a razão. Vale dizer, segundo a expressão de Santo Anselmo, seria necessário primeiro crer e somente depois procurar compreender. Este mesmo entendimento já estava presente no pensamento de Santo Agostinho, mas a sua formulação teológica somente é alcançada quando São Tomás de Aquino consegue, em sua Suma Teológica, romanizar a filosofia aristotélica, oferecendo à Igreja uma interpretação filosófica que acredita conciliar esta Fé Primeira com aquela que se queria como uma Razão Segunda. Diz-se “fé primeira”, com o sentido de que primeiro seria preciso crer; porque somente após crer seria possível compreender, daí ser a “razão segunda”. Com o nascimento da filosofia moderna este entendimento é totalmente refutado, dando lugar ao primado da consciência, a partir da consagrada fórmula cartesiana “cogito ergo sum” (penso, logo existo), que estabelece o caminho para a verdade e a certeza por meio do método de duvidar, conforme Descartes explica em seu Discurso do Método. O conceito que o termo fides designa exige a presença de um objeto exterior: fé é sempre fé em algo exterior a si mesmo e representa algo em que se acredita, mesmo na ausência de motivos racionais para tal.

Conforme amplamente discutido na tese "Śraddhā in the Bhagavad Gītā" (2007), o conceito designado pelo termo sânscrito śraddhā guarda algumas semelhanças com o conceito designado pelo termo latino fides (fé). Contudo, não se deixa reduzir por este, pois tem uma natureza distinta. Śraddhā, em sua essencialidade, caracteriza-se por não se fundar em uma relação com o objeto. Vale dizer, enquanto a expressão “tenho fé nas verdades da Igreja” exemplifica um dos usos do termo fides (fé), a proposição “experimento de um sentimento de confiança, convicção e certeza interior”, que denota um dos usos em que se emprega o termo śraddhā, prescinde da necessidade de um objeto externo para fazer sentido. Esta particularidade do conceito, expressa pelo termo śraddhā, nos permite argumentar que a crítica que a ciência faz em relação aos discursos de fé (fides) não se aplica em relação àqueles que se fundam em śraddhā. Pode-se argumentar, inclusive, conforme demonstrado em vários dos meus artigos, que o termo śraddhā corrige e atualiza a expressão de Santo Anselmo. Basta que substituamos o termo “fides” na expressão “fides quaerens intellectum”, provada falsa pelo cogito cartesiano e pela ciência. Deste modo, a expressão híbrida “śraddhā quaerens intellectum” torna-se verdadeira, constituindo-se como o paradigma da ciência deste início de milênio. Śraddhā nasce no oriente como o sentimento certeza e fé em si mesmo do mesmo modo que o cogito cartesiano se apresenta no ocidente como a certeza indubitável. É a partir desse momento, propiciado por este novo paradigma, que podemos compreender a ciência e a espiritualidade como um campo unificado.

O que ainda hoje impede o reconhecimento de śraddhā, como um conceito fundamental para o estabelecimento do critério de verdade da ciência, parece estar relacionado com dois princípios que a academia ainda defende quase como dogmas antissintrópicos: (1) a crença numa radical separação entre o domínio religioso e o filosófico e (2) a associação do monoteísmo judaico-cristão com a ideia de uma experiência religiosa superior e civilizada. Esses dois princípios operam em conjunto para impedir que a filosofia e a ciência sejam avaliadas sob a perspectiva sintrópica. É um fato bem conhecido que a separação radical realizada no ocidente entre a teologia e a filosofia visou salvaguardar a compreensão cristã da religião como um dogma de fé. O paradigma científico fundado no cogito representava uma séria ameaça ao cristianismo, que só poderia ser combatida por meio de uma reiteração da fé no Deus bíblico. Daí a cisão da metafísica em “filosofia” e “religião", ocorrida no início da Idade Moderna.

Contemporaneamente, esta discussão foi reaberta por W. C. Smith em seu livro Towards a world theology: faith and the comparative history of religion (London: Macmillan, 1981). Ao perceber que o termo sânscrito śraddhā expressava a força do espírito e que representava, portanto, o universal por detrás dos distintos fenômenos religiosos, Smith sugere a adoção do termo “espiritualidade” como substituto do termo “religião”, para assim derrubar as barreiras entre as distintas doutrinas religiosas. Chega a propor, inclusive, que se abandone o uso de termos como “religião”, “hinduísmo”, “cristianismo” etc. Em Faith and Belief (1979) oferece uma discussão completa sobre a visão de śraddhā como a convicção intima (āstikya-buddhi) e o estado mental de caráter não dogmático e universalista que nos coloca em contato com os distintos modelos que nos aproximam da universalidade das verdades científicas.



Rio de Janeiro, 14.05.23.
(Atualizado em 01.09.23)

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