2018-08-03

Bhāvana Namaḥ: cultivando egrégoras

O logotipo é uma referência explícita ao
ideal de cultivar egrégoras (maṇḍalas).
I. Os desafios da viagem de retorno

Após o meu retorno ao Brasil, logo me dei conta de que deveria colocar em prática os resultados teóricos obtidos durante a pesquisa de tese desenvolvida na McMaster University (2001-7). Decidi, então, estruturar o site “A Corrente da Borboleta” (2007), para servir de base ao desenvolvimento de grupos de estudos sobre a arte e a ciência da meditação segundo a Bhagavad Gītā. Iniciei um primeiro grupo no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ (2008), no Largo São Francisco, depois outro no programa PACEM da UFRJ (2009 - 2010), na Praia Vermelha e, finalmente, um terceiro grupo em nosso próprio apartamento (2010 até o presente). Foi assim que terminamos por hospedar aqui em casa em 2012, de três a cinco de fevereiro, o evento com Francisco Barreto e outros membros da Grande Síntese para discutir o processo de gestação de uma futura Universidade do Coração. O site “A Corrente da Borboleta” foi, então, doado para a instituição e reestruturado para atender aos interesses da nascente Universidade do Coração (veja aqui).

Março/2010. Coquetel de encerramento do encontro com Francisco Barreto no Salão Nobre da UFRJ na Praia Vermelha
Março/2010. Coquetel de encerramento do encontro com
Francisco Barreto no Salão Nobre da UFRJ na Praia Vermelha
Dois anos antes, a nosso convite, Francisco Barreto havia estado conosco para a realização de uma vivência no Salão Nobre da UFRJ, na praia Vermelha, nos dias 26 e 27 de março de 2010. Como consequência daquele encontro, no dia 28 de março de 2010, logo após a vivência, constituímos um núcleo de estudos associado à Grande Síntese, que passou a funcionar como um círculo (maṇḍala) de reflexões e práticas em torno da essência (śuddha) do sagrado (dharma). As reuniões aconteciam nas manhãs de domingo e eram divididas em duas partes: uma dedicada à prática de meditação e a outra ao estudo da Bhagavad Gītā. Nesse período tivemos a oportunidade de assistir a serie completa do Mahābhārata (1988) e também o Mahābhārata (2013), logo que o mesmo foi lançado. No final dos encontros ainda discutíamos a nossa participação em alguns projetos sociais, como, por exemplo, o projeto do Instituto Vila Rosário, coordenado pelo Prof. Cláudio Costa Neto, dedicado a erradicar a tuberculose na região de Duque de Caxias. Por fim, após cinco anos de trabalhos conjuntos, os interesses se ampliaram e em 25.04.2015, sugeri a Francisco, como já era desejo de alguns, a criação de um novo espaço para acolher o núcleo Maha Vana, o que, de fato, se deu, originando, pouco depois, o atual Ashram Brahmala, de Niterói.

Junho/2018. Grupo de Estudos
Junho/2018. Grupo de Estudos 
Ao longo de todos estes anos após o nosso retorno ao Brasil vivemos diversas ocasiões muito especiais, tendo, inclusive, a oportunidade de receber a visita de amigos e pesquisadores internacionais ilustres, como Purushottama Bilimoria,  Abhijit KarkunShirley TellesBraj Bhushan e Morny Joy, além de ex-alunos do tempo da McMaster University, hoje profissionais muito bem sucedidos, como o empresário Sascha Darius e a médica Stephanie VandenBerg. Atualmente os nossos encontros reúnem de oito a dez participantes, o que possibilita que a interação e a troca no grupo sejam ricas, alimentando e fortalecendo, deste modo, esta nossa egrégora, voltada para os mesmos ideais que um dia nos levaram a nos aventurar pelo Brasil e pelo mundo, em busca dos instrumentos e do conhecimento necessário para podermos atuar cada vez de forma mais efetiva, dentro do grande plano de concretização dos ideais que se espera de uma universidade do coração: a unificação dos campos da ciência e da espiritualidade.

Somos gratos a todos os membros do nosso núcleo, pois sem eles não teriam sido possíveis os passos que já demos, unidos pela certeza de que, juntos, formamos um círculo (maṇḍala) de reflexões e práticas em torno da essência (śuddha) do sagrado (dharma) onde cada um de nós é mais.

Visita a Neópolis -- Grande Síntese (1989)
II. As iniciações e as provações

Com a morte de Sri Vajera (12.09.84), Cássia e eu estreitamos ainda mais a nossa parceria com Francisco Barreto, encarregado de materializar o Śuddha Sabhā Ātma, do qual é o Instrutor, e que tem duas principais funções: promover o desenvolvimento dos Ashrams alinhados com a essência (śuddha) do sagrado (dharma) e estabelecer as bases da futura Universidade do Coração. Deste modo, em janeiro de 1987, nós nos mudamos para Sergipe, integrando-nos ao projeto de gradual materialização do Śuddha Sabhā Ātma, acompanhando, inclusive, a mudança de sua sede provisória no antigo Ashram Ātma de Aracaju para a definitiva, no seio da Fazenda Mãe Natureza, à beira do rio São Francisco, no distrito de Santana do Parnaíba, em Neópolis, divisa já com Alagoas.

Os quatros anos que passamos em Sergipe constituem um período áureo de nossas vidas; período de muitas lutas, internas e externas, mas de muitas iniciações e crescimento interior também. Éramos todos tão gratos por estarmos vivendo aquela experiência absolutamente singular que, mesmo sem jeito para a poesia, tomados de emoção, vez por outra, muitos de nós esboçamos alguns versos para exprimir o nosso sentimento de alegria espiritual. Não fui exceção. Procurando em meus arquivos encontrei, sem querer, em meio a outros documentos, uns rabiscos (veja aqui), que hoje parecem tão ingênuos, imaturos, mas, mesmo assim, não nego que me fazem lembrar o fervor e o ardor1 que sentia decorrente daquelas pequenas iniciações que experimentamos no Ashram Ātma, dirigido por Francisco Barreto. São desse período os meus registros das reuniões de constituição da Instituição Grande Síntese, bem como a elaboração do primeiro esboço do Glossário Śuddha, concluído em 25.12.1990, poucos dias antes de nossa mudança para o Rio de Janeiro.

Uma vez no Rio, retornei aos bancos universitários. Fiz várias pequenas tentativas, mais ou menos frustradas, antes de encontrar a via por onde deveria realizar a minha solitária jornada. Lembro, por exemplo, de ter organizado um curso, intitulado “O Despertar da consciência à luz da Srimad Bhagavad Gita”, preparado durante os meses de março e abril de 1991 e oferecido no antigo Centro Cultural Ipanema, na rua Visconde de Pirajá, 82, salas 112 a 114, no subsolo, nos meses de junho e julho do mesmo ano, às quartas-feiras, das 18h30 às 20h. Ainda guardo o rascunho do "flyer" e a apostila curso. E foi somente agora, revendo esse material, que me dei conta que o local do curso fica a menos de duzentos metros do apartamento onde passei a residir, dando sequência ao projeto que, àquela época, mostrara-se impraticável.

Necessitei de anos para processar tudo o que vivemos em Sergipe. Faço um primeiro registro desta trajetória no livro Síndrome do Pânico (1998), lançado na 15a Bienal do Livro, realizada em São Paulo naquele ano (veja aqui a nota de O Globo e  também do Golfinho – Boletim Informativo do Iate Clube Jardim Guanabara). Embora hoje eu rejeite, em parte, esta primeira publicação, onde fiz uso do ato de escrever para superar a Síndrome do Pânico, reconheço também que ela já sinaliza o início da etapa da jornada espiritual que me conduziria à redação da primeira tese de doutorado em filosofia sobre a Bhagavad Gītā.

A Arte e a Ciência da Meditação segundo a Bhagavad Gītā
Em 1972 assisti Siddhartha (Hermann Hesse).
Pouco depois (1974) encontraria Sri Vajera.
III. O sentido de egrégora (maṇḍala) e o início da jornada

Minha primeira experiência enquanto facilitador do processo de desenvolvimento de uma egrégora2 espiritual aconteceu no período entre janeiro e abril de 1981, quando era ainda aluno do quinto ano de engenharia química do Instituto Mauá de Tecnologia e convidei Cássia, alguns amigos, o músico Cido Trindade e o diretor de fotografia e roteirista Fábio Rubinato, meu primo Luiz Domingues, também músico, e o meu irmão Marco Turci, que já era estudioso de fitoterapia, para formar um grupo de estudos e meditação. No ano seguinte, em 06.06.82, Cássia seria consagrada por Sri Vajera. Era a época dos grandes sonhos e utopias, época das comunidades autossustentáveis, dos produtos “naturais”, com adubação orgânica, etc. As utopias dessa época procuravam expressar aquilo que se entendia como os Upāyas, os meios e estratégias descritos na literatura védica e budista para a materialização das ideações transcendentais que visavam, por exemplo, o ideal da Politeia, a cidade divina e justa, tema, tanto do Mahābhārata, quanto do livro A República, de Platão. Falo um pouco desta trajetória na entrevista do vídeo abaixo, concedida ao amigo Edgard Leite, do Instituto Realitas.


Ao formar o grupo de estudos e meditação, estava, na verdade, atendendo a um convite do saudoso Sri Vajera Yogi Dasa para constituir um “Ashram” – nome escolhido no Brasil para designar espaços religiosos, voltados para a prática de meditação e outros rituais; numa referência, embora distante, aos imensos complexos existentes na Índia e designados do mesmo modo. O próprio Sri Vajera, contudo, me revelaria em carta, datada de 12 de abril de 1981, que a minha vocação era ser um estudioso e guardião dos princípios da instituição. Eu era antes um guerreiro, um espiritualista, como haviam sido o próprio Senhor Krishna e Arjuna, que um instrutor religioso. Diferentemente dos instrutores religiosos, os espiritualistas expõem-se à situações limites, muitas vezes rompendo com as tradições em crise e que necessitam ser reformuladas. Enquanto os instrutores religiosos caracterizam-se por guardarem a religião e a tradição, os guerreiros guardam antes a filosofia do coração e as egrégoras de espiritualidade pura, pois os seus feitos têm a marca do universalismo dos livre pensadores. Ainda assim, cabe ao filósofo espiritualista o respeito hierárquico aos instrutores religiosos, aos quais tem o dever de preservar, proteger e, eventualmente, até mesmo de se subordinar, uma vez que está a cargo deles, e não dos filósofos, a nobre tarefa de preservar as tradições e transmiti-las às novas gerações. Um estudo exaustivo do tema da jornada do guerreiro pode ser encontrado no seminal tratado de Joseph Campbell, intitulado O Herói de Mil Faces (1949), que realiza uma síntese entre os conceitos de arquétipo (Jung), forças inconscientes (Freud) e ritos de passagem (Gennep) para descrever a estrutura comum das narrativas mitológicas (o monomito): (1) a partida do herói; (2) a iniciação; e (3) o retorno.

A Arte e a Ciência da Meditação segundo a Bhagavad Gītā
Sri Vajera Yogi Dasa
De início, o nosso núcleo de estudos não tinha um lugar exclusivo para as nossas atividades. Entre janeiro e abril de 1981 nós nos reunimos num cômodo da residência do Luiz Domingues. Pouco depois, mudamos para outro espaço, na residência do Fábio Rubinato, mas permanecemos ali também por um curto período de tempo, pois em 1982 tive que me mudar para São José dos Campos, para dar início à minha carreira profissional. A partir daí, passei a realizar, sozinho, os estudos e as práticas de meditação, em um cômodo de casa utilizado, unicamente, para este fim. Passado algum tempo, pouco antes do meu casamento, Cássia juntou-se a mim e formamos, então, esta egrégora que ainda hoje alimentamos em nossa residência de vários modos. Foi por esta época que deixei claro a Sri Vajera que não tinha a intenção de constituir um Ashram. Pretendia, sim, colaborar com o desenvolvimento de espaços sagrados, mas queria guardar o espírito de livre-pensador e, consequentemente, de independência de qualquer estrutura institucional. Interessavam-me, em suma, os pequenos grupos de estudo, que se constituem aqui e ali, livremente, dentro e fora da academia, com objetivos específicos e que permitiam uma reflexão crítica, visando a unificação entre os campos da ciência e da espiritualidade pura.

N O T A S

(1) Egrégora: o todo, maior que a soma das partes, formado a partir do somatório de energias físicas, emocionais e mentais das pessoas que se reúnem, com uma mesma finalidade, em grupo, assembleia, congregação, etc.

(2) Há uma passagem do Evangelho de Lucas (24:32) que faz referência explícita ao ardor místico do coração: "Diziam então um para o outro: Não se nos abrasava o coração, quando ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?"

SUMÁRIO GERAL: A Arte e a Ciência da Meditação segundo a Bhagavad Gītā
Próximo texto: Bhāvana Namaḥ: A Meditação e a Universidade do Coração

Rio de Janeiro, 03 de agosto de 2018.
(Atualizado em 23.12.20)

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