
Antes de alcançar as universidades, a espiritualidade já era tema recorrente entre os defensores da tolerância religiosa, da paz e da justiça [LE, Introdução, item I]1. E é neste campo que, no Brasil, destaca-se a figura pioneira de Chico Xavier. Por não se ocupar dos aspectos institucionais da religião, a sua mensagem não agride outras instituições e os seus dogmas. Do seu exemplo de vida, apreendemos que os valores morais são plenamente cultivados quando o ser humano, em decorrência das práticas espirituais, está aberto para as distintas "vozes" do super-humano. Através do olhar de Chico Xavier somos convidados a refletir sobre todas as utopias e processos destinados a nos trazer a paz e a justiça. Sem ser profético, sem querer anunciar a verdade a qualquer custo, ele se apresenta quase como um ascético. E, mesmo sem se ocupar da política, a sua ação tem consequências transformadoras na sociedade, com a sua vida servindo de modelo para a obtenção da justiça social. Ao renunciar à violência em palavra, pensamentos e atos contra os reinos humano e não-humano, Chico Xavier integra os seus valores morais dentro de um sistema ético, que somente agora, neste desabrochar de século, começa a se delinear, conforme ilustra o vídeo abaixo.
Já houve um tempo, entretanto, em que "espiritualidade" era sinônimo de heresia e se considerava como herética a pessoa que sustentasse crenças religiosas em conflito com os dogmas da Igreja Católica. Tomás de Aquino definia a heresia como a espécie de infidelidade do homem que, tendo professado a fé em Cristo, "corrompia" os seus dogmas. Não se tratava, portanto, de se recusar acreditar em Cristo. Considera-se a estes como "infiéis". Era o caso dos pagãos e judeus. Era considerado herege aquele que, como Chico Xavier, seguia o cristianismo segundo a sua consciência, e não conforme a autoridade da Igreja. Eram considerados hereges, em suma, todos aqueles que defendiam, racionalmente, as suas razões para duvidar, bem como aqueles que liam, estudavam, ou conheciam os conteúdos de livros não autorizados pela Igreja.
No passado só era considerado um verdadeiro cristão aquele que demonstrasse fé absoluta na soma total das verdades propostas pela Igreja, as quais comporiam as únicas escrituras sagradas [ESE, Cap. XIX, itens 6-7]. Por outro lado, era considerado herege todo aquele que se reservasse ao direito de submeter as proposições da Igreja ao exame da sua própria consciência. Considerava-se que o herege era ignorante do credo "verdadeiro" e que julgava "erroneamente". As causas da "heresia" estariam na convicção, na intuição e na ilusão de que se possuía um fervor religioso suficiente para superar os dogmas de fé propostos pelas autoridades eclesiásticas. A heresia era sinônimo da arrogância intelectual de se julgar em posição de desafiar a autoridade da Igreja. Era consequência da perniciosa inclinação do intelecto para aderir a doutrinas declaradas como falsas. As razões heréticas para se ousar questionar o "Princípio de Autoridade" da Igreja incluiriam também a sede de poder político ou eclesiástico e os interesses de ordem material ou pessoal. Representava, no dizer de então, a "obstinada" adesão a um ponto de vista particular, que desafiava a autoridade da Igreja.
A heresia era considerada um pecado grave porque ameaçava destruir a fé na Igreja Romana. O que hoje entendemos como "espiritualidade", por caracterizar a adesão a um ponto de vista contraditório com um ponto da fé definida pela Igreja, caracterizava a heresia de primeiro grau. E mesmo uma proposição doutrinária que não entrasse diretamente em contradição com um dogma, ainda assim poderia gerar suspeita de favorecer a heresia (sententia de haeresi suspecta, haeresim sapiens). Não há dúvidas, portanto, de que Chico Xavier, apenas por sustentar a teoria da reencarnação, seria condenado por heresia, como muitos, no passado, na verdade, o foram. A vida exemplar de Chico Xavier, no entanto, fez com que fosse reconhecido como uma pessoa de bem, uma pessoa de elevada espiritualidade.
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Bula do Papa Leão X contra os erros de Martinho Lutero (1520) e que levou à sua excomunhão no ano seguinte. |
Segundo a análise eclesiástica, unir-se-iam em Lutero os três elementos essenciais para o desenvolvimento da heresia. Rude e com muitas fraquezas, era homem do seu tempo e contava com a proteção de Frederico da Saxonia. Por isto, movido pela ambição, atacava a hierarquia eclesiástica, o que resultou em mais de cem anos de guerras, até o estabelecimento, por volta de 1648, do princípio cujus regio illius et religio (o senhor da terra deverá também ser o senhor da religião), que limitava o poder da Igreja Romana para impor seus dogmas. O argumento da Igreja para legitimar a guerra aos hereges pode-se resumir, mais ou menos, como se segue:
- A Igreja Romana entendia que a primeira lei da vida era a de auto-preservação e que negligenciar esta lei levava à ruína e destruição;
- Considerava que permitir a negação de seu credo levava à destruição da Igreja. Por isto exigia a prova de fé, antes que a demonstração de qualquer outra qualidade ou virtude;
- Por entender que a liberdade de pensamento estava em contradição com a fé que se professava na Igreja, exigia que se renunciasse a esta liberdade de pensamento. Exigia a substituição do hábito de dar ouvidos à voz da consciência intuitiva, pela aceitação do magisterium, ou daquele ensinamento que levava a dissolver os resquícios remanescentes das teorias espúrias e suas seitas;
- Por reconhecer que a heresia era uma erva daninha de veneno mortal, gerada dentro do seu tecido, a Igreja entendia que ela precisava ser combatida e destruída; e
- Entendia também que a função de ensinar e evangelizar pertencia exclusivamente à hierarquia da Igreja, através de sua ecclesia docens (o episcopado, a hierarquia).
Entendia a Igreja, em suma, que, uma vez membro da Igreja, através do batismo, não se podia mais professar, fora do campo dos dogmas, a liberdade de pensamento. E esta se regulava segundo os escritos de Santo Agostinho. Quem recebera o batismo encontrava-se sob jurisdição da Igreja e poderia, por ela, ser declarado herege e combatido – pelo menos até 1648, quando o acordo que estabeleceu o princípio cujus regio illius et religio (o senhor da terra deverá também ser o senhor da religião), passou a proteger àqueles que se afastavam da influência da Igreja Romana.
N O T A S
Rio de Janeiro, 10 de janeiro de 2019.
(Atualizado em 13.02.23)
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