2018-05-27

CMT 014 - Oficina de Estudos: a Arte e a Ciência da Meditação

A Arte e a Ciência da Meditação segundo a Bhagavad Gītā
I. O NASCIMENTO DA DISCIPLINA

No final de 2017 participei do Primeiro Congresso dos Colaboradores Anônimos da Universidade do Coração, realizado entre 30.12.17 e 01.01.18, na Fazenda Mãe Natureza – SE.  Minha conferência teve como título, Mahābhārata: A história da manifestação do śuddha dharma (veja aqui). A apresentação me levou à elaboração da ementa de uma nova disciplina acadêmica, inicialmente chamada de A Arte e a Ciência da Meditação segundo a Bhagavad Gītā. Os primeiros passos para a materialização deste projeto haviam sido dados entre 2008 e 2011, durante os três anos do meu pós-doutorado na Faculdade de Administração e Ciências Contábeis da UFRJ (veja aqui), onde seria implementado o Laboratório de Estudos sobre a Índia e Ásia do Sul (LEIAS). De forma concreta a implementação do projeto teve início em 16 de agosto de 2017, por iniciativa do PsIQ/UFRJ, que apoiou a ideia da criação da nova disciplina (veja aqui). A partir de 2019 ela passou a ser oferecida como disciplina eletiva, semestralmente, pelo Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza (CCMN) da UFRJ com o título CMT 014 - Oficina de Estudos: a Arte e a Ciência da Meditação. O vídeo abaixo mostra o esquema da apresentação no congresso. Ele contém os principais fundamentos da nova disciplina.


É o meu entendimento que a ancestral arte e ciência da meditação está explicitada de forma paradigmática no diálogo entre Krishna e Arjuna na Bhagavad Gītā, o texto central do épico indiano Mahābhārata. O Mahābhārata desenvolve-se em torno de Ṛta, a lei cósmica descrita no Ṛgveda. Segundo o Ṛgveda, a expressão maior do sentimento intuitivo da verdade é Ṛta (ordem cósmica, sintropia, lei, verdade), a lei geral da necessidade, que regula a operação do cosmos e de todas as coisas, ilustrando os processos entrópicos e sintrópicos que nos levam do caos (saṃsāra) ao sagrado (nirvāṇa). Esse tema é desenvolvido no Mahābhārata a partir de quatro (ou cinco) propósitos humanos, ou eixos principais de reflexão, conhecidos como Puruṣārthas e explicitados no próprio corpo do texto (MBh 1.2.83):

1. o princípio universal de sustentação do universo: dharma;
2. a arte de governar a si mesmo e de relacionar-se em grupo: artha;
3. a natureza do desejo: kāma; e
4. a via da realização humana: mokṣa e brahma-prāpti.

Bhagavad Gītā, estabelece a arte e a ciência da meditação como a disciplina fundamental para se alcançar a plena compreensão dos Puruṣārthas, que se fundam em Ṛta, o axioma fundamental do conhecimento védico (Brahmavidyā). A realização interior começa com o cultivo em nossa mente do sentimento sintrópico (bhāvana), que nos conduz à contemplação (divyacakṣus) do Princípio Sintrópico (Ṛta) que rege o universo, conforme ilustrado no paradigmático capítulo XI da Bhagavad Gītā. Assim como as formigas e as abelhas operam sob a jurisdição de uma consciência coletiva, também operamos sob o campo de influência de uma consciência sintrópica maior e universal. Ao desenvolver a capacidade de trabalhar em sintonia com a lei de equilíbrio e bem-estar universal (Ṛta), que emana desta consciência superior (Ātman), o sujeito (Jīva, o ser animado) alcança o autocontrole necessário para harmonizar os processos entrópico (guṇa-para), característico do princípio material que rege o nosso corpo (ahamkāra, o ego), e sintrópico (ātma-para), característico do princípio espiritual que o anima (Ātman, o Ser). Este processo está descrito de forma rigorosa no meu texto "Śraddhā in the Bhagavad Gītā" (2007), que fornece os elementos para a representação da Bhagavad Gītā como uma meditação.

Destinada a introduzir o aspirante aos segredos e às chaves para a compreensão da Bhagavad Gitā, a nova disciplina, oferecida no Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza da UFRJ explora os grandes tópicos associados ao surgimento e ao desenvolvimento histórico da arte e da ciência da meditação ou contemplação. Diferencia-se, deste modo, das demais experiências realizadas até aqui em torno da ciência da meditação, em instituições como a UNIFESP,  UFF e o próprio Centro de Ciências Médicas da UFRJ, que apresentam uma ênfase, não na história e constituição da arte e da ciência da meditação, mas, basicamente, em sua eficácia enquanto uma prática integrativa, ou “técnica terapêutica", complementar aos demais procedimentos da área de saúde.

A aprovação da disciplina A Arte e a Ciência da Meditação segundo a Bhagavad Gītā em meados de 2018 contemplou como ementa a espinha dorsal deste compêndio em forma de livro-blog:
  1. As Primeiras Evidências dos Fenômenos Religioso e Espiritualista
  2. A Bhagavad Gītā no contexto do Mahābhārata
  3. A Bhagavad Gītā como a Grande Síntese das Escrituras Sagradas da Índia
  4. Śraddhā na Bhagavad Gītā
  5. A Meditação como a Escuta do Coração
  6. A Arte e a Ciência da Meditação Pura em seus Três Estágios
A parte do curso não considerada no livro-blog varia de semestre para semestre em função dos palestrantes (quatro ou cinco ao longo do período), convidados  para (1) apresentar e ilustrar os pontos de vista das suas respectivas tradições religiosas e escolas de pensamento e (2)  possibilitar aos alunos o aprofundamento dos conteúdos desenvolvidos durante as aulas e as oficinas. O curso como um todo, deste modo, oferece uma pequena reconstrução do pensamento indiano.

II. ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE AS OFICINAS DE MEDITAÇÃO

As oficinas práticas atendem a dois propósitos básicos: ilustrar os conteúdos desenvolvidos nas aulas e dar oportunidade para que pesquisadores convidados e outros especialistas em meditação com reconhecimento na área apresentem os seus pontos de vista e conduzam uma pequena prática para o grupo. Cada oficina deverá trazer o olhar de uma escola, ou tradição, diferente. São previstas 15 oficinas, com frequência semanal. Três encontros são reservados para debates, atividades livres e avaliações.

1. Definição de um espaço adequado para as oficinas. É fundamental que seja criado um espaço próprio para estas atividades, onde seja possível zelar pela Egrégora (o todo, maior que a soma das partes, formado a partir do somatório de energias físicas, emocionais e mentais das pessoas que se reúnem, com uma mesma finalidade, em grupo, assembleia, congregação, etc.) que será formada, basicamente, a partir de dois cuidados fundamentais que os facilitadores deverão ter:
  • Preparação do ambiente (harmonia, arrumação, decoração, sons e aromas); e
  • Estado de espírito a ser cultivado no grupo (“Venha de onde vier; inspire paz, expire amor”).
2. Alguns pontos relativos ao estado de espírito que devemos cultivar nas oficinas
  • Nenhuma prática de meditação é digna deste nome se ela não promover o sentimento de amor e de pertencimento à fonte universal de vida do universo.
  • O Senhor Buda alcançou a iluminação praticando o silêncio interior conhecido no zen budismo como Zazen (za=sentar; zen=meditação).  
  • Meditar é como dormir acordado, mas fazendo emergir o observador, a amorosa testemunha. Significa recolher-se para o interior de si mesmo, até que, cessando os movimentos da consciência, a batida do seu coração vibre naquela frequência amorosa do OM (AUM).
  • A meditação digna deste nome, portanto, é aquela que se inicia pura e silenciosa no recolhimento das madrugadas e se prolonga pelo dia como expressão de uma contínua meditação na ação, com atenção plena e foco no sagrado de cada minúscula experiência que a vida nos reserva.
  • A mente prende-se a uma e outra coisa. Devemos fazer com que ela se prenda UNICAMENTE ao sagrado que experimentamos pelo coração.
  • A Atenção Plena pode ser definida como a capacidade de reconhecer a presença do sagrado em tudo o que a vida nos oferece em cada novo instante, possibilitando-nos aceitar com gratidão, bem como enfrentar com confiança e destemor, todos os desafios que a vida nos apresenta a cada novo dia.
3. Alguns pontos relativos aos comportamentos que devemos cultivar no dia-a-dia
  • Treinar para acordar sem despertador (dormir mais cedo até regular). Que horas escolhi para o verdadeiro despertar? 
  • Voltar aos poucos para o estado de vigília. Temos que acordar exercitando o nosso aprendizado sobre o efeito reparador do sono, sobre o simbolismo dos sonhos e sobre todo o estado de realidade onírica do qual, aos poucos, vamos nos retirando.
  • Ao tomarmos consciência do primeiro pensamento que surge com o novo despertar, antes de abrir os olhos, deveremos contemplar por alguns instantes o processo suave de transição do modo onírico para o estado de vigília que está ocorrendo.
  • Após termos contemplado a cadeia de ideias e de reflexões, que nascem deste primeiro pensamento, devemos realizar uma pequena invocação pelo bem estar universal, seguida de uma breve meditação e uma curta reflexão sobre o dia ser vivido.
  • Somente então devemos abrir os olhos e renascer plenamente para o novo dia, em completo estado de vigília.
  • Podemos proceder à nossa higiene pessoal e harmonização do ambiente onde realizaremos a nossa prática de meditação silenciosa.
  • Com o ambiente harmonizado, limpo, silencioso, isolado e arejado, podemos, então, dar início às nossas práticas espirituais, de preferência, sempre no mesmo horário.
  • Podemos iniciar o novo dia, então, com uma refeição matinal que reflita o nosso esforço de nos adequar a uma dieta saudável.
  • Durante o dia, devemos realizar todas as atividades fazendo da nossa respiração um exercício de comunhão com o alento vital, a energia cósmica que nos conecta com todos os seres, inspirando paz e irradiando amor. 
  • Antes de se dirigir a qualquer pessoa, saudá-la em silêncio, dizendo mentalmente, por exemplo: Namastê, o Deus que habita em mim saúda o Deus que habita em você.
  • Ao se deitar, antes de adormecer, passar em revista como foi o seu dia e como espera que seja o seu amanhã. Em seguida, mergulhar no oceano infinito da consciência cósmica, simbolizado pelo sono, e deixar-se morrer para este dia, até o novo amanhecer.
III. ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE AS AULAS TEÓRICAS

A discussão dos temas de cada encontro será regida pelo diálogo a ser estabelecido com o grupo em função dos seus interesses e das suas necessidades. Por isto a abordagem de cada tópico será conduzida de forma assistemática, sem uma sequência ou ordem rígida, segundo a mesma metodologia adotada por Krishna na Bhagavad Gitā.

Cabe lembrar que antes do nosso compromisso com a nossa própria reforma interior, não faz muito sentido falar em meditação. O que se espera dos alunos, portanto, é que eles vejam a sala de aula e a sua própria casa como espaços de mudança interior. Meditar é algo que se desenvolve e se aprimora, não apenas com a prática desta ou daquela técnica, mas, principalmente, a partir de nossa  reforma íntima. Meditar, em essência, significa aquietar o pensamento, testemunhar o ritmo da respiração e fazer o coração vibrar (śraddhā) na frequência de amor puro da energia cósmica (Brahma-śakti) de onde surgiu o universo e que nos unifica à nossa transcendente origem. O momento e a forma conforme despertamos para cada novo dia simbolizam este processo e, consequentemente, revelam o quanto avançamos, verdadeiramente, na arte da meditação. Meditar é como dormir acordado, mas fazendo emergir o observador, a amorosa testemunha. É aprender a contemplar, calmamente e de forma natural e espontânea, o desabrochar da consciência, tal como ele ocorre em cada novo amanhecer. Meditar é aprender a desligar os milhares de despertadores do dia-a-dia, que nos retiram, abruptamente, dos estados contemplativos. É somente quando todos estes barulhentos despertadores são silenciados que se pode dizer, de fato, que se desenvolveu a capacidade de entrar em estado de meditação.

As referências bibliográficas e videográficas do curso estão resumidas em Meditação e Espiritualidade: Referências para Estudo e Pesquisa

Rio de Janeiro, 27 de maio de 2018.
(Atualizado em 24.02.24)

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