2020-05-01

Uma Tese de Filosofia sobre Śraddhā na Bhagavad Gītā

17.04.07. Foto com os colegas, logo após a defesa de tese.

"Śraddhā in the Bhagavad Gītā":
uma tese de doutorado em filosofia

O longo processo de revalidação pelo Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) da tese "Śraddhā in the Bhagavad Gītā" (2007), desenvolvida no Instituto de Ciências Sociais da McMaster University, inicialmente sob a orientação da Dra. Phyllis Granoff (2001-4) e após a sua transferência para a Yale University, do Professor Emérito, Dr. Paul Younger (2004-7), envolveu o reconhecimento explícito (ver parecer) da existência de um pensamento verdadeiramente filosófico na Índia antiga. Isto pode, à primeira vista, parecer irrelevante, mas de qualquer forma, cabe salientar que se tratava da primeira tese doutorado, e até onde sei a única, sobre a Bhagavad Gītā, a ser reconhecida e aprovada no âmbito da filosofia ocidental. Isto posto, antes de passar à explicação das razões que me levaram a escolher um departamento de filosofia para revalidar o meu diploma no Brasil, necessito destacar que durante o período de mudança de orientador, contei com a ajuda inestimável do membro do meu comitê de tese, Dr. Graeme MacQueen, sem o qual a realização deste trabalho não teria sido possível. Além destes três orientadores, agradeço também ao Dr. Peter Widdicombe, membro da banca e do meu comitê de tese, ao Dr. Peter Travis Kroecker, chefe de departamento, e ao examinador externo, Dr. James Pankratz, pela leitura cuidadosa do texto. Em 2009 este texto foi reconhecido como uma tese de doutorado em filosofia, conforme o parecer da Comissão Especial de Revalidação de Certificados e Diplomas de Pós-Graduação do Departamento de Filosofia da UFRJ, constituída pelos professores Dr. Fernando José de Santoro Moreira, Dr. Franklin Trein e Dr. Gilvan Luiz Fogel. Após quase dois anos de luta justificando o meu pedido (veja aqui), considero uma vitória e um marco inédito para a área de estudos orientais ter a tese reconhecida como um tratado filosófico.

17.04.07. Greg Rushton, meu colega de sala, e os professores,
Dr. Paul Younger, Dr. Graeme Macqueen e Dra. Anne Pearson.
De modo geral, a filosofia se estabelece no ocidente a partir do resgate dos clássicos gregos e da sua reinterpretação conforme a máxima medieval de Santo Anselmo, “fides quaerens intelectum” (a fé dogmática como pressuposto da razão), que postula a precedência da fé sobre a razão. Com as filosofias modernas e contemporâneas este postulado deu lugar ao primado da consciência, a partir da consagrada fórmula “cogito ergo sum” (penso, logo existo) de Descartes, que estabelece o caminho para a verdade e a certeza por meio do método de duvidar, conforme ele explica em seu Discurso do Método.

Não é sem razão que apenas uns poucos filósofos ousaram admitir a natureza filosófica da Bhagavad Gītā. O texto chegou ao ocidente muito tardiamente, traduzido ao inglês em 1785 e ao alemão em 1808. Foi recebido com muita reserva e suspeita por vários filósofos representantes do eurocentrismo então vigente. Hegel, por exemplo, rejeita o valor filosófico da Bhagavad Gītā e a desqualifica completamente (ver o seu texto On the Episode of the Mahābhārata known by the name Bhagavad-Gītā by Wilhelm von Humboldt – Berlin 1826, traduzido ao inglês por Herbert Herring e publicado em Nova Deli pelo Indian Council of Philosophical Research em 1995). Schlegel, de outro lado, busca o seu reconhecimento e por isto traduz o texto para o latim. Ele acreditava que a causa da rejeição ao texto estivesse ligada à tradução inglesa de 1785, que considerava tendenciosa, contemplando os interesses dos missionários cristãos que financiaram a tradução com o visível intuito de conseguir uma formulação que permitisse aos críticos refutarem completamente a Bhagavad Gītā, uma ameaça para eles. A perspectiva romântica, não-teísta e desinteressada ideologicamente de Schlegel agrada a alguns intelectuais, inclusive W. Von Humboldt (veja aqui o estudo de Gen Nakamura, 2016). Entretanto, esta tradução desperta também a ira de G. W. F. Hegel que, em 1826, publica o seu comentário sobre a Bhagavad Gītā, hoje considerado superado e sem nenhum valor filosófico. Estabelece-se deste modo, desde o início dos estudos sobre a Bhagavad Gītā no ocidente, esta divisão radical entre os representantes do eurocentrismo e seus ferrenhos adversários românticos.

A filosofia do coração e os desafios enfrentados e superados na tese

20.04.07. Jantar de despedida com Adam & Ilona Hitchcock,
Simon de Abreu e Melanie Skene.
Muito embora eu estivesse convicto de que possuía uma tese de filosofia, na qual trabalhara por anos até estar certo de que chegara a uma prova irrefutável sobre o valor filosófico da Bhagavad Gītā, estava ciente também de que o texto que escolhera não era, até então, reconhecido com um texto de filosofia. Daí eu ter sido praticamente obrigado a procurar um Instituto de Ciências Sociais para poder desenvolver uma tese sobre a Bhagavad Gītā. Tinha ciência, portanto, dos obstáculos que teria que enfrentar até conseguir que a Bhagavad Gītā fosse reconhecida como um texto de filosofia, o que, forçosamente, implicaria na aceitação da afirmação, até então estranha ao ambiente filosófico das universidades brasileiras, de que o pensamento indiano também se constituía como filosofia rigorosa e assim merecia ser investigado. Tinha consciência de que poderia contribuir nesse processo de inserção do pensamento indiano no campo da filosofia, uma vez que defendia a Bhagavad Gītā como o maior poema filosófico jamais escrito. E esta foi a razão que me levou seguir todos os protocolos de rigor da ciência e da filosofia na fase de elaboração da tese. Somente deste modo poderia vir a estabelecer um diálogo com a filosofia ocidental e a própria ciência como um todo.

A perspectiva romântica de que a Bhagavad Gītā era interessante do ponto de vista da sua filosofia do coração nunca chegou a desaparecer, conforme se vê, por exemplo, nas seguintes frases:

1. A Bhagavad Gītā é o mais belo e, provavelmente, o único poema verdadeiramente filosófico existente em qualquer língua conhecida... é talvez a suprema e mais profunda obra desse mundo. (Wilhelm von Humboldt)

2. Pela manhã eu banho o meu intelecto na estupenda filosofia da Bhagavad Gītā, a qual faz o mundo moderno e a sua literatura parecerem insignificantes. (Henry David Thoreau)

3. [A Bhagavad Gītā] é uma das mais claras e compreensivas exposições já realizadas da filosofia perene. Essa fonte de inesgotável valor, portanto, pertence, não apenas à Índia, mas a toda a humanidade. (Aldous Huxley)

4. [A Bhagavad Gītā] É sublime como a noite e de tirar o fôlego como o oceano. Contém todos os sentimentos religiosos, todos os grandes sistemas de ética que influenciaram as pessoas nobres e de mente poética. (Ralph Waldo Emerson)

5. Verdadeiramente, o esplendor da Bhagavad Gītā está na beleza da sua revelação dessa sabedoria de vida capaz de fazer a filosofia florescer no âmbito da religião. (Herman Hesse)

6. A condição para se compreender plenamente uma obra tão sublime como a Bhagavad Gītā é o estabelecimento de uma sintonia fina do nosso espírito com o texto. (Rudolph Steiner)

7. Quando eu leio a Bhagavad Gītā e reflito sobre como Deus criou este universo tudo o mais parece supérfluo. (Albert Einstein)

São pouco mais de duzentos anos de pesquisas e debates em torno da Bhagavad Gītā e é natural, de certo modo, que esta obra seminal ainda não faça parte da grade curricular da grande maioria das universidades ocidentais, sendo considerada apenas uma obra “exótica”, associada aos praticantes de yoga. A estrutura lógica que emoldura a tese coloca em xeque esse ponto de vista, bem como alguns dos frágeis argumentos apresentados, tanto no texto de Hegel, como em outros similares. Por isto mesmo, e uma vez que cursara os créditos exigidos também para um doutorado em filosofia, o pedido de revalidação pelo departamento de filosofia foi um convite e um desafio para que se iniciasse nas universidades brasileiras esse diálogo em torno da natureza filosófica da Bhagavad Gītā e do seu seminal Śuddha Yoga.

De um lado, os historicistas, representantes do pensamento eurocêntrico, fizeram uma leitura dualista da epistemologia da Bhagavad Gītā, apresentando o texto de forma caricata, com Krishna representando uma manifestação primitiva e rudimentar de uma espécie de “teísmo” ingênuo e grotesco, quando comparado ao monoteísmo da sociedade ocidental.  De outro lado, os românticos, decepcionados com a teologia monoteísta, se valiam da possibilidade de leitura da Bhagavad Gītā conforme a epistemologia monista, também sugerida no texto e que lhes permite romper com a visão de mundo dualista do monoteísmo ocidental. Estes rechaçam as críticas dos historicistas de que o texto da Bhagavad Gītā não apresentaria consistência semântica. Na tese reafirmo a perspectiva romântica em relação ao caráter filosófico da Bhagavad Gītā, e provo que a Bhagavad Gītā possui consistência semântica. O fato de que o conceito de śraddhā, conforme discutido na tese, explica e resolve as tais contradições apontadas pelos historicistas, coloca em evidência a fragilidade das suas críticas quanto à natureza e valor filosófico do texto.

A centralidade da filosofia do coração expressa por śraddhā

Uma primeira característica especial do termo sânscrito śraddhā, conforme amplamente discutido ao longo do livro-blog, é que o seu sentido se assemelha, em alguns contextos, ao do termo latino fides (fé), embora seja de uma qualidade e natureza um pouco distinta.  O conceito que o termo fides designa exige a presença de um objeto exterior: fé é sempre fé em algo exterior a si mesmo e representa algo em que se acredita, mesmo na ausência de motivos racionais para tal. De forma breve, os cristãos protestantes entendem a fé como a expressão do sentimento de confiança na palavra de Deus (a Bíblia); os cristãos católicos não aceitam a "redução da fé a um mero sentimento. Em ambos os casos, contudo, a fé se funda na relação com o seu objeto de fé. Śraddhā, de outro lado,  caracteriza-se por não se fundar, nem se limitar a essa relação com o objeto. Representa o sentimento da verdade do sujeito, que independe de qualquer crença, externa, pré-existente. Vale dizer, enquanto a expressão “tenho fé nas verdades da Igreja” exemplifica um dos usos do termo fides (fé), a proposição “experimento de um sentimento sintrópico e de um estado de entusiasmo e certeza científica (decorrente de uma convicção íntima)”, denota um dos usos em que se emprega o termo śraddhā. Por representar os mesmos Princípios da Confiança e da Prudência, expressos no cogito cartesiano, śraddhā prescinde da necessidade de legitimação por parte de qualquer autoridade externa. Esta particularidade do conceito, expressa pelo termo śraddhā, nos permite argumentar, por exemplo, que as críticas de filósofos como Wittgenstein  aos discursos de fé (fides), em nada ameaçam os discursos fundados em śraddhā – pelo contrário, por sobreviver a tais críticas, estas funcionam até como contraprovas, que os validam.

No ocidente, em função das críticas de Hegel (1770-1831) e das teorias de Comte (1798-1857) perdeu-se, por um tempo, a possibilidade de se resgatar a ponte romântica que pretendia uma aproximação mais natural com a sabedoria do oriente. Os filósofos românticos cairam em descrédito por algum tempo. Contudo, conforme eles haviam deixado claro, a Bhagavad Gītā não representava o pensamento de um grupo religioso em particular, como supunha Hegel, mas, pelo contrário, expressava um pensamento filosófico que procurava reconhecer e graduar a importância dos diferentes discursos e saberes. Conforme afirmavam, Bhagavad Gītā não era um texto normativo, mas um tratado especulativo envolvendo tanto elementos de filosofia quanto de espiritualidade. Este entendimento “romântico” da filosofia do coração aparece também nos trabalhos de Tilak (1971), Gandhi (1930) e Aurobindo (1950), considerados os principais representantes do pensamento da India do século XX. Com o tempo, o ocidente curvou-se à personalidade altruísta e desapegada de Gandhi – prova viva de que uma vida baseada na práxis da filosofia do coração discutida na Bhagavad Gītā é possível.

A tese (veja aqui) discute, em especial, a questão do Ser (ou “de ser”), conforme denotada pelo termo sânscrito “Ātman” praticamente ao longo de todo o texto (1-28, 40, 69-74, 81, 91, 93, 97-204, 215-34, e 240-94) e relaciona esses resultados com aqueles da Alegoria da Caverna de Platão (145-6, 231, 233 e 270-1). Além disto, compara a importância filosófica do termo sânscrito śraddhā (discutido ao longo do texto) em relação ao termo latino fides, compreendido a partir da expressão fides quaerens intellectum de Santo Anselmo, que fundamenta a filosofia tomista fundada na fé (2-3, 7, 10, 12, 15, 17, 24-6, 28, 34, 38, 40, 44, 48, 53, 57, 59, 61, 70-3, 77-86, 99, 102, 104-5, 110,113-5, 118-9, 125-134, 139, 143, 145, 148, 154, 158, 172, 177, 205-8, 216, 218, 224-5, 233-4, 238, 255, 265, 271-5, 282-7 e 291) e remete a discussão à noção de fideísmo Wittgensteiniano (70, 71 e 225).  Ela mostra também que a ideia de síntese dialética desenvolvida por Hegel já estava presente na Bhagavad Gītā, bem como nas primeiras discussões dos comentaristas indianos da Bhagavad Gītā (112, 125, 127, 194, 197, 205, 208-10, 219, 222-3, 230, 244, 263, 276 e 284). Considera ainda a relação entre metafísica e filosofia (30, 52-3, 60, 91, 121, 135, 144, 175, 186, 1945, 198-200, 204, 210-1, 217, 261 e 280), faz a exegese do texto e tece algumas questões de filologia, questionando os filósofos anteriores que se debruçaram sobre estas mesmas questões. Também faz uso da filosofia da ação de Mikhail Bakhtin e da sua definição de “polifonia”, que ele aplicara à obra de Dostoievski, para exprimir como a Bhagavad Gītā pertence ao contexto maior do Mahābhārata, no sentido filosófico defendido ao longo do texto. Os resultados da tese são apresentados sob a forma de argumentos lógicos, conforme cada um dos cinco passos do antigo e tradicional silogismo indiano, similar, na forma, ao silogismo aristotélico, embora anterior a ele. Por fim, o texto sugere que a experiência da pós-modernidade, revelando a importância do humano e do seu espaço simbólico, resgatando de volta para a filosofia as discussões em torno das noções de sagrado, de religiosidade, dos mitos e do inconsciente, explicam-se melhor a partir do entendimento do conceito de śraddhā conforme utilizado na Bhagavad Gītā. O texto atribui, enfim, ao entendimento de śraddhā como uma categoria filosófica, antes que teológica, a compreensão e harmonização dos papéis associados, ao longo da história, tanto à fides de Santo Anselmo, como ao cogito cartesiano.

Observações Finais

A razão para a Bhagavad Gītā ter sido, inicialmente, tão fortemente rejeitada relaciona-se, muito provavelmente, com as razões que a ciência contemporânea ainda encontra para “solucionar” os mistérios envolvidos naquilo que percebemos como constituindo uma experiência “espiritual”. Atualmente não é difícil encontrar cientistas idôneos envolvidos em pesquisas com as áreas do cérebro ativadas durante a meditação. Contudo, para muitos, o que se busca provar é como as epifanias espirituais seriam “criadas”, ou inventadas, pelo cérebro. De alguma forma, esse “dogmatismo científico” traz já embutido a crença de que ao se explicar o funcionamento do cérebro estar-se-á, finalmente, encontrando a prova da não existência do espírito. Não se pode, contudo, querer reduzir a experiência metafísica (definida na Bhagavad Gītā pelo despertar, ou pela obtenção, de śraddhā) a uma espécie de fantasia do cérebro. Como a mente reflete um senso de espiritualidade é algo que se encontra além do alcance da ciência natural; é algo que pertence mais propriamente ao reino da metafísica – uma categoria presentemente desprestigiada, mas que deverá recuperar a posição que tradicionalmente ocupava de centro e origem de todo o pensamento que se quer, verdadeiramente, filosófico.

O que ainda hoje impede que a Bhagavad Gītā seja aceita no mundo ocidental e tratada como um texto de valor filosófico estaria relacionado com dois princípios que a academia ainda defende quase como dogmas: (1) a crença numa radical separação entre o domínio religioso e o filosófico e (2) a associação do monoteísmo como a ideia de uma experiência religiosa superior e civilizada. Esses dois princípios operam em conjunto para impedir que a Bhagavad Gītā seja avaliada em termos da sua filosofia. Contudo, pode-se dizer que a Bhagavad Gītā é um texto filosófico, ao menos naquele sentido pretendido para a filosofia que prevaleceu no ocidente até o momento da cisão traumática e artificial ocorrida no final da Idade Média entre metafísica (que passa a ser entendida meramente como dogma) e a filosofia (agora com ares de ciência positiva). Com a cisão da metafísica em “filosofia” e “religião", perdeu-se o sentido holístico original da metafísica, não como dogma, conforme a sua compreensão medieval, mas como fonte de todo o livre pensar e de toda a especulação verdadeiramente filosófica.  Por estas razões, em suma, fiz questão de revalidar o texto como uma tese, antes de tudo, de filosofia (cf. publicado no Boletim da UFRJ).


Rio de Janeiro, 01.05.20.
(Atualizado em 26.04.23)

2 comentários:

  1. Boa tarde, Rubens.
    Tenho visto alguns dos seus vídeos. Fiquei feliz com o seu trabalho, sobretudo o de colocar o Bhagavad Gita no lugar que merece como FILOSOFIA com letras maiúsculas.
    Gratidão 🙏

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    1. Bom dia, Renato! Quanto tempo! Nosso último encontro foi ao acaso, na praia, quando estava na orla da Atalaia com Francisco. Lembra? Vocês conversaram muito naquela noite. Fico feliz que um estudioso serio como você também pense assim em relação ao texto da Bhagavad Gita. Saudações, Namastê!

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