2016-09-30

O que é a Meditação Sintrópica do Śuddha Yoga?

Diário da Consciência de Si
Iogue em Śuddha Yoga
A meditação tem relação com a cultura sintrópica e o processo do autoconhecimento, autocontrole, autonomia e individuação do Ser, que nos permite interagir com a sociedade e com o meio ambiente, segundo as leis universais do amor. O objetivo principal das práticas de meditação é nos nutrir do amoroso sentimento sintrópico (Bhāvana) que nos conduz do saṁsāra ao nirvāṇa, na exata medida em que aprofundamos o nosso entendimento de Ṛta, a lei universal que rege os processos entrópicos da realidade material e inorgânica e os processos sintrópicos da realidade espiritual e orgânica.

Quando nos identificamos com o fogo ardente do coração, a nossa vida toda se torna uma meditação. Este é o sentido do diálogo entre Krishna e Arjuna na Bhagavad Gītā. Meditar, em essência, significa aquietar o pensamento, testemunhar o ritmo da respiração e fazer o coração vibrar (śraddhā) na frequência de amor puro da energia sintrópica de onde surgiu o universo (Brahma-śakti) e que nos unifica à nossa transcendente origem, possibilitando-nos afirmar, com convicção: "Eu sou o fogo ardente do coração em ação; eu sou a presença da paz e do amor em ação". Nesse sentido, não é algo totalmente estranho à cultura ocidental. Pelo contrário, representa o ensinamento simbolizado no primeiro dos Dez Mandamentos da tradição judaico-cristã. Representa o ideal de sintonia com o Sopro Universal, a fonte de onipotente poder de onde procedem todas as formas de Vida, e que levou Jesus a dizer, "eu e o Pai somos Um". 

Meditação é um estado de amoroso silêncio interior. O Senhor Buda alcançou a iluminação praticando esse silêncio interior conhecido no zen budismo como Zazen (za=sentar; zen=meditação). Sentar-se em silêncio e diminuir todos os estímulos externos, até que tudo desapareça e fique apenas o sentimento sintrópico de amor, que nos conecta à todas as formas de vida. Enquanto Krishna formula a ciência da meditação sintrópica na Bhagavad Gītā e o Senhor Buda busca vivê-la na prática, adaptando-a e popularizando-a pelo oriente; Jesus, ao promover a ciência do amor, pavimenta, aos poucos, as vias para que a cultura sintrópica e as práticas contemplativas e de meditação cheguem, no devido tempo, também ao ocidente. O conceito de meditação aproxima-se do conceito de contemplação amorosa de uma "pessoa" divina, tal como formulado no ocidente. Contudo, também vai além, quando faz referência ao "princípio inteligente e sagrado" (Brahman) de "regulação sintrópica da ordem cósmica" (ṛta, dharma) e presente em nós mesmos.

A Meditação Sintrópica é algo que se desenvolve e se aprimora, não apenas com a prática desta ou daquela técnica, mas, principalmente, a partir do sentimento sintrópico que nasce da nossa própria reforma interior. Antes do nosso compromisso com a práxis sintrópica que nos faz despertar para a essência amorosa do Ser, não faz muito sentido se falar em meditação. Com o tempo e a prática, chega o momento em que o recolhimento dos sentidos dos objetos exteriores para o único foco, que é a essência amorosa do Ser, passa a revelar, em tudo, a presença do sagrado. A partir daí, todas as técnicas iniciais e os distintos tipos de meditação tornam-se uma mesma coisa. E é somente então que se pode dizer, de fato, que se desenvolveu a capacidade de realizar a Meditação Sintrópica, ou Śuddha Dhyāna.

Meditar é como dormir acordado, mas fazendo emergir o observador, a amorosa testemunha. Significa recolher-se para o interior de si mesmo em estado de vigília, até que, cessando os movimentos da consciência, a batida do coração vibre naquela frequência do sentimento amoroso do OM (AUM) -- a representação, por excelência, da meditação sintrópica, que contém, em si mesma, a centelha, ou a semente, dos três níveis, ou aspectos da realidade, onde se oculta a ciência da meditação (A-U-M) de que trata a Bhagavad Gītā:

A - representa a Nirguṇa Dhyāna, ou meditação no aspecto imanente e de natureza subjetiva da realidade sagrada, presente em tudo e em todos sob a forma do Espírito Universal, ou Ātman;

U - representa a Saguṇa Dhyāna, ou meditação no aspecto imanente e de natureza objetiva do sagrado, manifestado, em grandes seres e líderes religiosos como Krishna, Buda, Jesus e outros;

M - representa a Śuddha Dhyāna, ou meditação pura e sintrópica, que tem por objeto a natureza não manifestada de Brahman, a qual só nos referimos por negações (neti, neti), uma vez que sobre esta natureza nada se pode afirmar, a não ser que dela resulta a Brahma-śakti, a energia sintrópica, que representa a fonte de amor cósmico de onde surgiu o universo. Na iconografia clássica esta Energia Sintrópica ganhou inúmeras representações antropomórficas, reunidas sob o nome de Śrī Yoga Devī, a Mãe Divina.

A essência, o centro e o coração de toda a cultura védica e upaniṣádica está representada no ancestral Yoga de que trata a Bhagavad Gītā. A Meditação Sintópica, revelada de forma integral na Bhagavad Gītā, fora anteriormente objeto de discussão preliminar em várias Upaniṣades, que serviram de inspiração, tanto para a definição de meditação oferecida por Patanjali em seus Yoga Sūtra, como por aquelas oferecidas pelas distintas modalidades de budismo. A essência da ciência da meditação está sintetizada nos versos 23 a 28 do capítulo 17 da Gītā. No verso 23, por exemplo, a expressão triádica "OM TAT SAT", tanto significa "OM, isto é a verdade!", como também representa os três meios de acesso para Brahman e que corresponde aos três níveis da prática de meditação: Śuddha Dhyāna (OM), Saguṇa Dhyāna (TAT) e Nirguṇa Dhyāna (SAT). O verso 24 esclarece a natureza daqueles que são aptos e praticam a Śuddha Dhyāna (aqueles que expõem a ciência de Brahman); o verso 25 trata daqueles que compreendem e acessam apenas a Saguṇa Dhyāna (os praticantes dos distintos rituais religiosos); e o verso 26 descreve aqueles que realizam a Nirguṇa Dhyāna (os que realizam ações auspiciosas para alcançar a essência da bondade e da realidade). Os versos 27 e 28 definem as condições necessárias para a prática de meditação (firmeza na internalização dos rituais, na postura austera e no cultivo da compaixão, bem como no desempenho de todas as atividades relacionadas com a meta suprema) e também apresentam como condição sine qua non o desenvolvimento de śraddhā -- o compassivo sentimento sintrópico, que define a Cultura Sintrópica e a sua práxis e se traduz como o princípio da confiança e da prudência, a bússola interior e a amorosa energia que ilumina a razão em seu processo de convergência para a Verdade e o Absoluto (Brahma-sāmīpya). Sem śraddhā, ou seja, sem a presença deste sentimento sintrópico fundamental, nenhuma prática de meditação é digna deste nome.

Conforme a listagem canônica que aparece na seção do Rāmāyaṇa conhecida como Muktikā (Liberação), haveriam, originalmente, 108 Upaniṣades. Destas, 20 se agrupam como “Yoga Upaniṣades”. Dentre elas, destaca-se a Dhyānabindu Upaniṣad. “Bindu” quer dizer “ponto” e se refere ao ponto (anusvāra) sobre o símbolo do AUM. Representa a Brahma Śakti (M), ou seja, a energia sintrópica, promotora da unificação do aspecto material e concreto da pessoa humana (U) com o seu aspecto espiritual e sagrado (A), a um só tempo imanente e transcendente. “Bindu” também significa "origem, raiz, semente", indicando que a Dhyānabindu Upaniṣad trata das origens da meditação.

Dhyānabindu Upaniṣad trata do termo “haṃsa” (cisne) como representação onomatopeica do processo de respiração. Os manuscritos desta Upaniṣad aparecem em duas versões: uma de 23 versos, parte do Atharvaveda; e outra, expandida, de 106 versos, que é parte do Sāmaveda e inclui técnicas de Yoga que não se encontram nos Yoga Sūtra de Patanjali. Segundo afirma a versão estendida de 106 versos, “pela sílaba ‘ha’ ele recebe o exterior e pela sílaba ‘sa’ ele se interioriza”.  “Haṃ-sa, haṃ-sa”, representa o ininterrupto mantra da vida e simboliza a prática de meditação em Brahman. A versão original, de 23 versos, traz também algumas imagens que sugerem a fenomenologia do Espírito de Brahman (Ātman):

Ātman (Alento Universal) existe em todos os seres
Como a fragrância existe nas flores
Como a manteiga no leite
Como o óleo nas sementes oleaginosas
Como o ouro no minério de ouro
Todos os seres estão interligados pelo Ātman
Assim como as pérolas estão pelo fio do colar
Deste modo, com a mente fixa em Brahman (o Absoluto, representado pelo AUM),
O Conhecedor de Brahman alcança a iluminação. (Dhyānabindu Upaniṣad, v. 7 e 8)

O silêncio experimentado com a iluminação seria a prova empírica do infinito em nosso interior (v. 4 a 6). A seguir (v. 11 a 17) o texto relaciona as etapas do Prāṇāyāma (pūraka, kumbhaka e rechaka) aos aspectos com forma da divindade (Brahma, Vishnu e Shiva) subsumida em Nārāyaṇa, sugerindo a evolução natural de uma espécie de meditação para outra.  Arraigados ao pseudo concreto mundo objetivo das formas, nos é mais adequado meditar na pessoa de seres com forma, tais como Shiva, Nārāyaṇa, Buda, Cristo, etc. Com a prática, contudo, passa-se a representar estes seres como expressões do princípio vital, representado, simbolicamente, pelo coração (Ātman). É a este processo de internalização da divindade que se denomina, tecnicamente, como Rishi-nyāsa (interiorização da divindade externa). O texto afirma que por meio desta meditação é possível alcançar, respectivamente, o mundo dos ancestrais (Pitṛyāna) e dos seres celestiais (Devayāna), representados na tradição védica pelas sendas da lua e do sol. E conclui (v. 19 a 23), valendo-se de metáforas que aparecem também na Śvetāśvatara Upaniṣad (1.14) e Amṛta Upaniṣad (13), que nas formas mais elevadas de meditação “o Pranava OM é o arco; a alma humana, a flecha; e Ātman, unicamente, o alvo”.

A Meditação Sintrópica da Bhagavad Gītā está em consonância com os Yoga Sūtra e com toda a tradição upaniṣadica. Esta deriva a prática de meditação do sentimento (Bhāvana) de que "Tudo é verdadeiramente Brahman" – Sarvam Khalvidam Brahma (Chāndogya Upaniṣad 3.14.1) e, portanto, que tudo se dá necessariamente (Sarvam avaśyakam), segundo a sagrada e perfeita lei da sintropia. Ela apresenta também elementos que nos lembram as meditações budistas, descritas em textos, por exemplo, como o Bodhicaryāvatāra de Śāntideva. O texto mostra como desenvolver um coração sábio, aberto e iluminado, e seguir no caminho de convergência sintrópica para a realização espiritual. Daí os conceitos de bodhicitta e bodhisattva do budismo. O termo "citta" é normalmente utilizado para significar os pensamentos e os sentimentos, uma vez que a literatura de então não os diferenciava. Pode-se dizer que "citta" representa todo um composto de cognição, emoção e sentimento. Logo, bodhi-citta indica o processo de purificação e iluminação (bodhi) da mente (citta), que conduz ao estado de bodhi-sattva, ou daquela pessoa generosa (sattva) que alcançou certo grau de iluminação (bodhi). 

Um fundamento comum das modalidades de meditação do Yoga e do budismo é a ênfase na escuta do sentimento interior. Outro fundamento é a ênfase em se dar precedência a śreyas (o mais correto) sobre preyas (o mais prazeroso). Destes dois fundamentos deriva-se o sentido profundo da meditação como uma prática sintrópica, que deve se estender pelo dia todo, sem que jamais nos esqueçamos que meditar envolve, principalmente, meditar na ação, durante todas as nossas atividades cotidianas. Daí a importância do entendimento de que o próprio processo de respiração pode se tornar, aos poucos, uma meditação: somos a testemunha, o observador imparcial, que não se afeta pelas aparências da realidade externa, “Haṃ-sa, Haṃ-sa”...

A Meditação Sintrópica, como um todo, tem início no silencioso recolhimento das madrugadas e se prolonga pelo dia como expressão de uma contínua meditação na ação, com atenção plena e foco no aspecto de sagrado de cada minúscula experiência que a vida nos reserva. Em suma, a Meditação Sintrópica nos revela, gradualmente, que o sentimento de amor puro e universal não tem contrário, pois ele transcende à nossa realidade dual, de pares de opostos. O contrário de amor é uma ausência, é falta de amor; não é o ódio. O contrário do ódio pode ser entendido como amor apenas em seu sentido passional.

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(*) São elas: Dhyānabindu, Haṃsa, Triśikhi, Maṇḍalabrāhmaṇa, Amṛtabindu, Amṛtanāda, Kṣurika, Brahmavidyā, Yogatattva, Yogaśikhā, Yogakuṇḍalinī, Varāha, Śāṇḍilya, Pāśupata, Mahāvākya, Yogachūḍāmaṇi, Darśana, Nādabindu, Jabala e Tejobindu.


Rio de Janeiro, 30 de setembro de 2016
(Atualizado em 01.09.23)

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