2017-01-08

Sorriso Interior: a Bhagavad Gītā e os germens da transcendência

As percepções polarizadas do nível racional e egoísta,
e a intuição transcendental do plano absoluto da realidade.
Comecei a refletir sobre a transcendência (nirvāṇa ) da realidade dual (saṃsāra) a partir da minha primeira publicação, Síndrome do Pânico: Aprendendo com a pedagogia da dor (Ed. Litteris: 1998). Esta pequena novela deveria se chamar Sorriso Interior em homenagem ao poeta simbolista Cruz e Souza, mas, por pressão da editora, saiu com esse título, que contemplava um dos temas da moda. Embora o texto não tenha valor literário, ainda o prezo por ele mapear um pouco da minha jornada espiritual. O livro reflete sobre algumas instâncias concretas da síndrome do pânico para exemplificar aquilo que concluíra ser a Lei Universal e o fundamento da transcendência: o contrário de amor é, simplesmente, ausência de amor, e o principal sintoma desta ausência é o medo. O medo revela sempre esta ausência; ausência de uma forma de amor. O caminho para a transcendência estaria contido nesta forma superior de amor que não tem contrário e que se funda no altruísmo biológico, natural a todos nós (veja aqui). O amor em seu estágio mais elevado e altruísta não se traduz pelo amor passional e romântico, que tem no ódio o seu oposto.

O texto revela como chegara a contemplar o amor altruísta nos aproximando da transcendência, ou seja, permitindo-nos experimentar do sentimento laico de sagrado, que faz da vida toda o campo do sagrado. Tivera vislumbres da transcendência, para além da experiência ordinária do mundo, fundada na percepção dos pares de opostos da realidade dual. E sentira que estas experiências continham o segredo do meu próprio processo de cura. Contudo, nada disto concordava com a visão de mundo estritamente materialista da ciência médica. Para a psiquiatria, eu sofria de uma doença crônica, a síndrome do pânico, e ela se relacionava, unicamente, com uma proteína defeituosa que influenciava como as sinapses ocorriam. Não caberiam, portanto, quaisquer interpretações subjetivas sobre os nossos humores. Existiam os sintomas, o diagnóstico e a prescrição medicamentosa que se deveria tomar por toda a vida para manter a síndrome sob controle. O processo de reflexão durante a redação do livro, deste modo, tornou-se uma forma de medicina complementar que me apontava como me libertar dos fármacos. Se o medo fosse, de fato, uma expressão da ausência de amor, eu poderia minimizar e até bloquear o desencadeamento de novas crises de pânico, simplesmente me aprofundando na prática espiritual de exercitar o sentimento de amor altruísta, conforme previa a minha própria disciplina espiritual, fundada no Bhāvana. A práxis fundada no amor e na compaixão poderia funcionar como um antídoto para o medo e as crises de pânico. E isto foi, de fato, gradualmente se provando verdadeiro. 

Este Diário é a bússola anti-psicanalítica de que me valho para alcançar o porto seguro do Ser.
O livro Síndrome do Pânico procurou decifrar estas correspondências entre os mundos interior e exterior. O texto respeita a assertiva pitagórica de que o mais valioso é conseguir prever por si próprio o melhor caminho a se tomar. Apenas quando isto não fosse possível deveríamos nos fiar no exemplo dos demais. Desta forma, evitaríamos a forma mais dolorosa de aprendizado, que é aquela que se dá pelo sofrimento, em consequência de nossas más escolhas. 

No dizer de Voltaire, “a descoberta do caminho mais verdadeiro, bem como a prática daquilo que é bom, constituem os dois mais importantes objetivos da filosofia” e, consequentemente, da própria vida humana. Kant, bem mais tarde, retomaria esta questão, reapresentando-a sob a forma do seu imperativo categórico. De acordo com a máxima kantiana, estaríamos autorizados a praticar uma dada ação somente se fosse legítimo que todos pudessem praticá-la quando em condições semelhantes. Kant propôs como critério de decisão, a verificação, através da consciência individual, do grau de universalidade da ação a se executar. 

A ética dos grandes filósofos ocidentais, aproxima-se daquela discutida na Bhagavad Gītā, designada de "svadharma". As ações que nos aproximam da transcendência são aquelas que sempre têm por objetivo a elevação do próximo e de nós mesmos. Svadharma representa o modo próprio de cada um (sva) de atuar e se adequar ao mundo conforme as suas leis universais (dharma). No contexto da Bhagavad Gītā, svadharma é algo que se atualiza no tempo e que reflete o estilo de vida mais adequado para o nosso desenvolvimento espiritual. Faz referência aos usos e costumes que promovem o desenvolvimento de determinado grupo, em função do anseio natural dos indivíduos por proteção. Na Bhagavad Gītā, a correspondência entre os mundos interior e exterior implica, primeiro, em atender aos deveres que o indivíduo tem com a sociedade e, segundo, como corolário necessário, em atender aos deveres que cada um tem para consigo próprio. Envolve, portanto, a busca da transcendência por meio da meditação e da sintonia com as leis que regem o desenvolvimento harmônico do mundo. O dharma, nesse sentido, é algo que não pode ser imposto, mas apenas exposto e proposto, pois cada um vê e aceita apenas aquilo que a própria consciência individual consegue apreender e compreender.  

Bhagavad Gītā apresenta uma teoria psicológica que pode ser aproximada àquela dos três “eus” do esquema freudiano. Aquilo que Freud chama de "Id" é próximo daquilo que a Bhagavad Gītā descreve como "Ahaṃkāra". O termo para "Ego" é "Jīva"; e para "Superego", Ātman. Em sânscrito, “kāra” denota agente, autor, executor, causante; e também força, potência. “Ahaṃ” denota o “eu”; representa o espírito (Ātman) enquanto submetido à matéria. Assim, "Ahaṃkāra" denota o elemento pelo qual o ser assume o estado de separação, a individualidade. Representa a natureza inferior e típica de nossa identidade material. "Ātman"  denota o sopro de vida em cada um de nós; e  "Jīva", a alma individual, em permanente evolução. O Jīva tem jurisdição sobre as características físicas e emocionais do ser humano. Pode se manter subjugado à influência avassaladora do plano dual da matéria, ou pode vencê-la, alcançando, assim, a transcendência. 

A influência exercida pela matéria sobre os Jīvas (as pessoas) pode ser avaliada a partir da discussão da Bhagavad Gītā das três características básicas (guṇas) da matéria denominadas, respectivamente, tamas, rajas e sattva. Tamas representa o princípio “estático”; rajas o princípio “explosivo”, “dinâmico”; e sattva o princípio “harmonioso e rítmico”. Na literatura sânscrita, toda a matéria é considerada como dotada destas três qualidades e em cada indivíduo, dependendo do estímulo interno do Espírito em dado momento, predomina uma delas. Em linhas gerais, a inclinação pela aquisição de conhecimentos e a preocupação com as questões sociais e culturais indicam a natureza sáttvica; as disputas e a busca de vantagens pessoais indicam a natureza rajásica; e o interesse na satisfação a qualquer preço dos próprios apetites corporais indicam a natureza tamásica. No livro Síndrome do Pânico levei em conta que, se tamas descreve todo um quadro de sintomas, em sattva temos a prescrição para o restabelecimento da saúde e da harmonia, conforme se depreende da passagem abaixo:   

Este Diário é a bússola anti-psicanalítica de que me valho para alcançar o porto seguro do Ser.Resumindo: a despreocupação, a perversão e a ignorância seriam engendradas por tamas, que representa a inércia, o poder de se deixar iludir e fascinar. De acordo com uma certa leitura médica do Gītā, o diagnóstico da enfermidade espiritual causada por tamas é feito através da pesquisa de alguns dentre dez possíveis sintomas:

1. Quanto à visão de mundo: tamas está predominando quando o indivíduo passa a ver o processo do mundo como sem causa alguma e sem significado;
2. Quanto à percepção moral e ética: tamas está predominando quando se desconsidera o imperativo categórico kantiano e se passa a considerar equivocadamente as leis sociais como inferiores às instintivas e naturais, características do mundo meramente animal; nesse estado, todas as aspirações e ideais superiores do espírito são vistos como coisas vãs e inferiores;
3. Quanto ao ser como um todo: o indivíduo tamásico está constantemente influenciado pelo sono, medo, angústia, desalento e pela natureza tirânica;
4. Quanto ao modo de agir: o indivíduo predominantemente tamásico age sem discernimento, sem levar em consideração o esforço necessário para ser bem sucedido, sem se preocupar com as consequências advindas de seus atos, causando toda série de desperdícios e prejuízos para o mundo;
5. Quanto à atitude religiosa: embora possa estar quase sempre presente em todos os rituais, nunca lá está com o coração;
6. Quanto à disciplina: é capaz até de se impor flagelos, mas sempre com o propósito de obter vantagens pessoais, ou ferir aos demais;
7. Quanto à interação e às trocas sociais: sem se importar com as consequências, age de forma insultante, sem levar em consideração o momento, o lugar e a cultura de cada um;
8. Quanto ao seu perfil psicológico: invejoso, falso, indolente, se entrega ao desalento, conserva prolongadas inimizades, é obstinado e costuma só valorizar os aspectos materialistas da vida;
9. Quanto ao seu estado de espírito: só busca aquilo que, no início ou no fim, apenas produz enganoso prazer como efeito do sono excessivo, da preguiça e da negligência; e
10. Quanto aos frutos que colhe: como resultado de suas ações, permanece embrutecido e em estado de total ignorância em relação ao seu próprio ser.

Rajas, o guṇa da mobilidade, incita toda sorte de paixões. Intermediária entre tamas e sattva, parece ser dominante na maioria das pessoas. Aqui também o diagnóstico pode ser feito através de dez possíveis sintomas. São eles:
1. Quanto à visão de mundo: o indivíduo rajásico vê em todos os seres apenas a variante “multiplicidade”, sendo tudo sempre desigual;
2. Quanto à percepção moral e ética: não alcança compreender o imperativo categórico kantiano e tampouco compreende o que deve e o que não deve ser feito;
3. Quanto ao ser como um todo: intensamente desejoso de gozar de todos os
frutos, só o que anseia é satisfazer a si próprio;
4. Quanto ao modo de agir: executa as ações com apego aos seus resultados, egoisticamente e por vezes, com violência;
5. Quanto à atitude religiosa: participa dos rituais com o objetivo de obter vantagens pessoais e a glorificação de si mesmo;
6. Quanto à disciplina: torna-se austero por ostentação, com a finalidade de obter reconhecimento, respeito e estima, embora às vezes perceba que todos esses resultados são efêmeros e fugazes;
7. Quanto à interação e às trocas sociais: nunca se furta à ação, age mesmo que de má vontade, mas sempre com a finalidade de obter retribuição;
8. Quanto ao perfil psicológico: é apaixonado pela vida, insaciável, às vezes invejoso e cruel, e é escravo deste mundo e seus prazeres;
9. Quanto ao seu estado de espírito: através dos contatos sensoriais experimenta a princípio a felicidade doce como o néctar; passado o fogo das paixões vê sua efêmera felicidade transformar-se em amargo veneno;
10. Quanto aos frutos que colhe: ao final, o resultado das ações do homem predominantemente rajásico é a dor.

O que se prescreve para os espíritos sob influência predominantemente tamásica ou rajásica é a terapêutica sáttvica. O conhecimento que dá poder e tonifica a faculdade cognitiva provém de sattva, que é rítmica e harmoniosa como a natureza cósmica inferida pelos pitagóricos. Assim, o medicamento prescrito para nos dar forças é a prática do yoga, que tem seus resultados também diagnosticados em dez etapas:
1. Visão de mundo: há que se fazer um esforço para passar a compreender e reconhecer a constante unidade subjacente a toda essa caótica multiplicidade;
2. Moral e ética: há que se compreender e reconhecer a necessidade da execução das ações legítimas e justas, ao mesmo tempo que se abster das ilegítimas; há que se discernir entre a escravidão provocada pelo temor e a liberdade produzida pela ausência de temor com relação à execução ou não da ação;
3. O ser: as funções da faculdade dos sentimentos, do intelecto e dos sentidos hão de estar em permanente união, nunca se permitindo a incoerência entre o discurso e a prática;
4. A ação: executar apenas as ações necessárias, sem apego, sem atração nem aversão e sem desejo pelos seus frutos; apenas executar porque se há que executar;
5. O contato com a essência universal: trabalhar pelo social, orar, meditar, mas sem nada pedir de pessoal para si;
6. A disciplina pessoal: buscar levar uma vida austera como um fim em si mesmo e não como meio para conseguir favores e outras benesses;
7. As relações com o mundo: sempre agir sem nunca esperar retribuição, considerando apenas a necessidade e as condições circunstanciais quanto ao tempo, ao local e à cultura;
8. Perfil: Alcançar o equilíbrio psíquico significa ter conseguido se libertar dos vícios, apegos, do egoísmo; significa obter entusiasmo e conseguir ficar imperturbável ante os êxitos ou fracassos oriundos das ações praticadas neste mundo;
9. Estado de espírito: o remédio é amargo, a prática parece veneno em seu início, exige esforço, mas aos poucos vai se tornando doce como a ambrósia, gerando cada vez mais estados de felicidade. Isto é conseguido quando as forças dionisíacas se harmonizam com as apolíneas; e
10. Os resultados: a iluminação e a paz, ainda na guerra. (Síndrome do Pânico, pp. 84 a 87)

O texto, em suma, embora fuja dos parâmetros comuns e não se constitua como uma obra de literatura, apresenta, sob a forma confessional, o fio condutor da minha jornada espiritual e, consequentemente, também deste livro-blog.


SUMÁRIO GERAL: A Arte e a Ciência da Meditação segundo a Bhagavad Gītā
Próximo texto: Sorriso Interior: a arte de amar (I)

Rio de Janeiro,  08 de janeiro de 2017.
(Atualizado em  23.12.22)

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