2017-01-08

Sorriso Interior: a Bhagavad Gītā e os germens da transcendência


Tamas evoca a rigidez, a limitação perceptiva, a ignorância e a fixação em formas densas.
Rajas é mais dinâmico, maleável, mas ainda preso ao plano das aparências e das reações emocionais.
Sattva aparece não como uma projeção, mas como a reconciliação tridimensional entre os dois extremos.
A verdade (sattva) é compreendida não por exclusão dos opostos, mas por integração:
a śāttvika jñāna é a única que reconhece a totalidade (BhG 18.20).
Os guṇas, como modos de percepção da realidade, traduzem com suavidade
o contraste entre avidyā (ignorância) e prajñā (sabedoria integrativa).

Comecei a refletir sobre a transcendência (nirvāṇa) da realidade dual (saṃsāra) a partir da minha primeira publicação, Síndrome do Pânico: Aprendendo com a pedagogia da dor (Ed. Litteris: 1998). Esta pequena novela deveria se chamar Sorriso Interior, em homenagem ao poeta simbolista Cruz e Souza, mas, por pressão da editora, saiu com um título que contemplava os temas da moda. Embora o texto não tenha valor literário, ainda o prezo por mapear parte da minha jornada espiritual.

O livro reflete sobre as manifestações concretas da síndrome do pânico, exemplificando aquilo que concluí ser a Lei Universal da transcendência: o contrário do amor não é o ódio, mas a sua ausência — e o principal sintoma dessa ausência é o medo. O medo, invariavelmente, denuncia uma forma de ausência de amor. A via da transcendência estaria, assim, contida no amor mais elevado, que não conhece oposto e brota do  altruísmo biológico, que habita todos nós (como ilustra este nosso vídeo).

O texto revela como cheguei à compreensão de que o amor altruísta nos aproxima do sagrado — não um sagrado institucional ou dogmático, mas aquele que emerge da vida ordinária quando penetrada por consciência e compaixão. Tive vislumbres de uma realidade que transcende a experiência sensorial dualista. Contudo, tais percepções destoavam radicalmente da visão reducionista da ciência médica.

Segundo a psiquiatria, eu sofria de uma doença crônica ligada a um desequilíbrio bioquímico, e a única solução era a administração de fármacos por tempo indeterminado. O processo de reflexão iniciado com a redação do livro se converteu, assim, em medicina complementar — e gradualmente comecei a perceber que o aprofundamento na prática espiritual e no sentimento de amor altruísta (śraddhā) era capaz de dissolver as raízes do medo. A escuta do Ser (bhāvana) revelou-se antídoto.

Este Diário é a bússola anti-psicanalítica de que me valho para alcançar o porto seguro do Ser.
O livro Síndrome do Pânico procura desvendar as correspondências entre os mundos interior e exterior, respeitando a máxima pitagórica de que o mais valioso é prever por si mesmo o caminho a seguir. Quando isso não é possível, deve-se recorrer ao exemplo dos sábios — evitando, assim, a pedagogia dolorosa do sofrimento.

Como afirmou Voltaire, “a descoberta do caminho mais verdadeiro, bem como a prática daquilo que é bom, constituem os dois mais importantes objetivos da filosofia”. Kant retomaria essa questão na forma do imperativo categórico: agir apenas segundo máximas que se possa querer transformar em leis universais. Essa ética, de raízes filosóficas ocidentais, aproxima-se da noção de svadharma da Bhagavad Gītā.

Svadharma representa o modo singular de cada ser agir em conformidade com a ordem universal (dharma). Na Bhagavad Gītā, ele se atualiza no tempo e corresponde ao estilo de vida que mais favorece o desenvolvimento espiritual individual e coletivo. A transcendência, portanto, não é evasão do mundo, mas afinação com as leis cósmicas e sociais — não imposta, mas proposta à consciência individual.

A Bhagavad Gītā apresenta um modelo da constituição humana que pode, com as devidas ressalvas, ser comparado ao sistema freudiano dos três registros psíquicos. Em uma aproximação pedagógica — e não conceitualmente rigorosa — podemos traçar um paralelo provisório entre: Ahaṃkāra (sentido de eu ilusório) e o Id; Jīva (alma individual encarnada) e o Ego; Ātman (o Ser transcendente) e o Superego. No entanto, essa correspondência muda significativamente conforme o enfoque adotado.

Na leitura freudiana clássica, Ahaṃkāra aproxima-se do Ego como princípio de identidade, o Jīva corresponderia ao Id como impulso primordial, e o Ātman ao Superego como ideal regulador. Já na perspectiva do Śraddhā Yoga, inspirada na Bhagavad Gītā, Ahaṃkāra reflete os impulsos inconscientes ligados à māyā (Id), Jīva atua como Ego espiritual em jornada entre o condicionamento e o despertar, e o Ātman representa o princípio absoluto que transcende o bem e o mal — muito além da função moralizadora do Superego.

Essas aproximações não devem ser tomadas como equivalências conceituais, mas como pontes interpretativas que facilitam o diálogo entre tradições distintas. A psicanálise descreve a luta interna entre pulsões e normas sociais; a Bhagavad Gītā descreve a jornada da alma condicionada rumo à libertação do ego e à realização do Ser.

Em sânscrito, “kāra” denota agente, autor, executor, causante; e também força, potência. “Ahaṃ” denota o “eu”; representa o espírito (Ātman) enquanto submetido à matéria. Assim, "Ahaṃkāra" denota o elemento pelo qual o ser assume o estado de separação, a individualidade. Representa a natureza inferior e típica de nossa identidade material. "Ātman"  denota o sopro de vida em cada um de nós; e  "Jīva", a alma individual, em permanente evolução. O Jīva tem jurisdição sobre as características físicas e emocionais do ser humano. Pode se manter subjugado à influência avassaladora do plano dual da matéria, ou pode vencê-la, alcançando, assim, a transcendência. A influência da matéria sobre o jīva é descrita por meio dos três guṇas: tamas (inércia), rajas (agitação) e sattva (harmonia). No livro, proponho que a análise dos estados espirituais e psicológicos pode se basear nesses guṇas, resultando em um verdadeiro diagnóstico e terapêutica espiritual.

Convém lembrar, ainda, que do ponto de vista do Śraddhā Yoga, Ahaṃkāra e Jīva não são sinônimos: o primeiro é um constituinte da matéria — um dos tattvas da Prakṛti — e se dissolve com a morte do corpo. Já o Jīva é a alma individual em jornada, que transmigra de vida em vida, velada ou condicionada pelo Ahaṃkāra, até alcançar a unificação com o Ātman.

Tudo, neste mundo relativo, pode ser posto em questão — menos o amor. O amor é o único critério de verdade que não se curva aos três guṇas, pois está enraizado na pureza luminosa (sattva) e na escuta do Ser (bhāvana). Ele sustenta as verdades morais e as utopias espirituais sobre o justo governo de si e do mundo. Sem amor, a ação degenera em manipulação; a verdade, em cálculo; e a transcendência, em fuga.

Este Diário é a bússola anti-psicanalítica de que me valho para alcançar o porto seguro do Ser.As dez manifestações de tamas1 descritas no livro incluem ignorância, apatia, agressividade sem reflexão, práticas religiosas mecânicas e egoísmo profundo. Rajas2, por sua vez, expressa-se por meio de ambição desmedida, apego aos frutos da ação, busca de reconhecimento e prazer sensorial. Sattva3 surge como caminho de cura — a ação desinteressada, a disciplina amorosa, o discernimento, a serenidade diante do sucesso ou fracasso, e o desapego que floresce em śānti, a paz interior.

O remédio sāttvico é amargo no início, como todo processo de purificação, mas transforma-se em néctar conforme a alma se harmoniza com o ritmo do cosmos. A prática espiritual constante transforma as forças instintivas em instrumentos de libertação.

Em suma, o texto, ainda que fora dos moldes literários convencionais, desenha sob a forma confessional o fio condutor da minha jornada espiritual — e é precisamente este fio que atravessa e sustenta o presente livro-blog.

N O T A S

(1) O diagnóstico da enfermidade espiritual causada por tamas é feito através da pesquisa de alguns dentre dez possíveis sintomas:
1. Quanto à visão de mundo: tamas está predominando quando o indivíduo passa a ver o processo do mundo como sem causa alguma e sem significado;
2. Quanto à percepção moral e ética: tamas está predominando quando se desconsidera o imperativo categórico kantiano e se passa a considerar equivocadamente as leis sociais como inferiores às instintivas e naturais, características do mundo meramente animal; nesse estado, todas as aspirações e ideais superiores do espírito são vistos como coisas vãs e inferiores;
3. Quanto ao ser como um todo: o indivíduo tamásico está constantemente influenciado pelo sono, medo, angústia, desalento e pela natureza tirânica;
4. Quanto ao modo de agir: o indivíduo predominantemente tamásico age sem discernimento, sem levar em consideração o esforço necessário para ser bem sucedido, sem se preocupar com as consequências advindas de seus atos, causando toda série de desperdícios e prejuízos para o mundo;
5. Quanto à atitude religiosa: embora possa estar quase sempre presente em todos os rituais, nunca lá está com o coração;
6. Quanto à disciplina: é capaz até de se impor flagelos, mas sempre com o propósito de obter vantagens pessoais, ou ferir aos demais;
7. Quanto à interação e às trocas sociais: sem se importar com as consequências, age de forma insultante, sem levar em consideração o momento, o lugar e a cultura de cada um;
8. Quanto ao seu perfil psicológico: invejoso, falso, indolente, se entrega ao desalento, conserva prolongadas inimizades, é obstinado e costuma só valorizar os aspectos materialistas da vida;
9. Quanto ao seu estado de espírito: só busca aquilo que, no início ou no fim, apenas produz enganoso prazer como efeito do sono excessivo, da preguiça e da negligência; e
10. Quanto aos frutos que colhe: como resultado de suas ações, permanece embrutecido e em estado de total ignorância em relação ao seu próprio ser.

(2) Rajas, o guṇa da mobilidade, incita toda sorte de paixões. Intermediária entre tamas e sattva, parece ser dominante na maioria das pessoas. O diagnóstico pode ser feito através de dez possíveis sintomas:
1. Quanto à visão de mundo: o indivíduo rajásico vê em todos os seres apenas a variante “multiplicidade”, sendo tudo sempre desigual;
2. Quanto à percepção moral e ética: não alcança compreender o imperativo categórico kantiano e tampouco compreende o que deve e o que não deve ser feito;
3. Quanto ao ser como um todo: intensamente desejoso de gozar de todos os
frutos, só o que anseia é satisfazer a si próprio;
4. Quanto ao modo de agir: executa as ações com apego aos seus resultados, egoisticamente e por vezes, com violência;
5. Quanto à atitude religiosa: participa dos rituais com o objetivo de obter vantagens pessoais e a glorificação de si mesmo;
6. Quanto à disciplina: torna-se austero por ostentação, com a finalidade de obter reconhecimento, respeito e estima, embora às vezes perceba que todos esses resultados são efêmeros e fugazes;
7. Quanto à interação e às trocas sociais: nunca se furta à ação, age mesmo que de má vontade, mas sempre com a finalidade de obter retribuição;
8. Quanto ao perfil psicológico: é apaixonado pela vida, insaciável, às vezes invejoso e cruel, e é escravo deste mundo e seus prazeres;
9. Quanto ao seu estado de espírito: através dos contatos sensoriais experimenta a princípio a felicidade doce como o néctar; passado o fogo das paixões vê sua efêmera felicidade transformar-se em amargo veneno;
10. Quanto aos frutos que colhe: ao final, o resultado das ações do homem predominantemente rajásico é a dor.

(3) O que se prescreve para os espíritos sob influência predominantemente tamásica ou rajásica é a terapêutica sáttvica. O conhecimento que dá poder e tonifica a faculdade cognitiva provém de sattva, que é rítmica e harmoniosa como a natureza cósmica inferida pelos pitagóricos. Assim, o medicamento prescrito para nos dar forças é a prática do yoga, que tem seus resultados também diagnosticados em dez etapas:
1. Visão de mundo: há que se fazer um esforço para passar a compreender e reconhecer a constante unidade subjacente a toda essa caótica multiplicidade;
2. Moral e ética: há que se compreender e reconhecer a necessidade da execução das ações legítimas e justas, ao mesmo tempo que se abster das ilegítimas; há que se discernir entre a escravidão provocada pelo temor e a liberdade produzida pela ausência de temor com relação à execução ou não da ação;
3. O ser: as funções da faculdade dos sentimentos, do intelecto e dos sentidos hão de estar em permanente união, nunca se permitindo a incoerência entre o discurso e a prática;
4. A ação: executar apenas as ações necessárias, sem apego, sem atração nem aversão e sem desejo pelos seus frutos; apenas executar porque se há que executar;
5. O contato com a essência universal: trabalhar pelo social, orar, meditar, mas sem nada pedir de pessoal para si;
6. A disciplina pessoal: buscar levar uma vida austera como um fim em si mesmo e não como meio para conseguir favores e outras benesses;
7. As relações com o mundo: sempre agir sem nunca esperar retribuição, considerando apenas a necessidade e as condições circunstanciais quanto ao tempo, ao local e à cultura;
8. Perfil: Alcançar o equilíbrio psíquico significa ter conseguido se libertar dos vícios, apegos, do egoísmo; significa obter entusiasmo e conseguir ficar imperturbável ante os êxitos ou fracassos oriundos das ações praticadas neste mundo;
9. Estado de espírito: o remédio é amargo, a prática parece veneno em seu início, exige esforço, mas aos poucos vai se tornando doce como a ambrósia, gerando cada vez mais estados de felicidade. Isto é conseguido quando as forças dionisíacas — símbolo do instinto vital, da dor criativa e da entrega — se harmonizam com as forças apolíneas — princípio da clareza, da ordem e da medida — como propôs Nietzsche em sua visão trágico-filosófica da alma; e
10. Os resultados: a iluminação e a paz, ainda na guerra. (Síndrome do Pânico, pp. 84 a 87)



SUMÁRIO GERAL

Rio de Janeiro,  08 de janeiro de 2017.
(Atualizado em  23.12.22)

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