2021-11-10

O desenvolvimento da hagiografia de Francisco Barreto

Este artigo discute a hagiografia (Sūrya-charita) de Francisco Barreto (25.11.1950 – 13.11.2020) e presta-lhe uma homenagem póstuma nesta semana em que se celebra o primeiro ano da sua passagem. Francisco faleceu na sexta-feira, dia 13 de novembro de 2020, pouco antes da meia noite. O seu sepultamento deu-se na Fazenda Mãe Natureza, conforme o seu desejo. O desenvolvimento da hagiografia de Francisco, sob a forma de uma espécie de “memorial do futuro”, baseia-se em passagens criteriosamente selecionadas de alguns de seus vídeos, deixados por ele sob a minha guarda e responsabilidade. Este memorial (veja aqui) vem sendo desenvolvido em conformidade com as orientações do próprio Francisco, bem como do nosso compromisso com os ideais da Universidade do Coração, definidos em nossa casa, no ato da sua criação, nos dias de 03 a 05 de fevereiro de 2012.

A ideia, estranha e contraditória, de um “memorial do futuro”, tão cara a Francisco, explica-se pelo seu ideal de nos “fazer lembrar” de uma realidade “utópica”, ainda por se construir, mas que já experimentada, em certa medida, nos encontros e experiências da “Universidade do Coração”. A trajetória de Francisco está centrada na compreensão de uma espiritualidade pura, fundada no altruísmo biológico e natural, antes que em qualquer forma de entendimento dogmático e sectário da realidade. Isto o fez buscar uma vida isolada de outros núcleos de estudos, importantes no campo doutrinário e institucional, mas periféricos do ponto de vista desta espiritualidade mais profunda.

A constituição de uma hagiografia como um “memorial do futuro”

A chancela e o selo de aprovação dos mestres para a realização deste projeto aconteceram no final de 2010, quando tive a oportunidade de passar algumas semanas com Francisco na Fazenda Mãe Natureza. O dia trinta de dezembro, uma quinta-feira, fora particularmente intenso e repleto de experiências elevadíssimas. Pela tarde, por volta de 17h, um ativo colaborador da instituição e eu tivemos uma conversa com Francisco. Ele estava diferente. Irradiava um fogo, uma luz e uma força, agora mais intensos e definitivos. Estava experimentando pequenos êxtases, fruto do contato estabelecido com a luz do Espírito no coração. Irradiava intensa paz e serenidade.  Contou-nos, então, sobre a sua solidão espiritual, apesar de viver rodeado pelos membros da instituição. Confessou-nos que não havia ninguém que estivesse disposto a caminhar com ele pela via espiritual. Por isto, ele vivia de fazer solilóquios, sermões, mas gostaria mesmo de participar de colóquios, diálogos. Ao mesmo tempo, tinha consciência de que a sua missão era esta mesma, de enfrentar e superar estas contrariedades. Admitiu, entretanto, que caso não tivesse alcançado o contato átmico, no coração, poderia até confundir esta sua vida, em que se sentia preso a um papel religioso e institucional, como uma maldição. Sempre que fazia o convite para que um membro da Grande Síntese intensificasse a disciplina espiritual, via a pessoa dar alguns passos tímidos e logo desenvolver uma crise, afastando-se da instituição. 

Antes de encerrar aquela conversa da tarde, Francisco comentou conosco sobre o êxtase que estava vivendo e nos fez sentir um pouco daquele fogo que irradiava fruto do seu contato com a Luz, com Deus, no coração. Falou-nos brevemente sobre as suas quatro mortes – desde a primeira, em Brasília, até esta última, de agora. Falou-nos também sobre o antigo SINAI, projeto que antecedeu a formação do Ashram Ātma, sobre o seu encontro com o Śuddha Dharma e sobre a sua experiência com Mitradeva. No final, quando eu já estava deixando o seu quarto, fez-me o convite para considerar a possibilidade de iniciar um jejum de 21 dias no dia primeiro de 2011. Eu tentei, por duas vezes, mas não consegui avançar além do décimo dia. Mesmo assim, foi o suficiente para que eu recuperasse a minha saúde. Quando retornei para o Rio de Janeiro, estava 20kg mais magro.

Naquela mesma noite, após o jantar, fui avisado que Francisco queria continuar a conversa da tarde. Nunca havia presenciado Francisco naquele estado de tamanha serenidade e êxtase. Era nítido que havia alcançado uma grande realização interior. Ficamos em silêncio por alguns minutos. Deitado ali na cama, seu corpo parecia quase morto, ou mortificado, mas o Espírito se fazia tão vivo e presente que a sua matéria parecia se diluir, difusa, por todo o quarto. Francisco então contou-nos como tomou ciência dos seus quatro renascimentos em vida – o último deles este que acabara de se processar. Era a sua quarta grande iniciação. A sua quarta morte em vida. Estabeleceu-se um silêncio e, então, um verdadeiro diálogo, de coração a coração, teve início. Havia aquela energia amorosa se irradiando de Francisco, que estava ali, deitado, com o olhar fixo na transcendência. Era nítido que se tornara, verdadeiramente, um Mestre Espiritual. 

Paralelamente aos eventos exteriores, que culminariam com a inauguração do Edifício Milagres, nova sede da instituição, em 16.01.11, relembramos de muitas outras coisas, desde os tempos do Ashram Ātma. Francisco falou-nos que era chegado o momento de acomodar na Fazenda Mãe Natureza o antigo Śuddha Sabhā Ātma, que funcionara, muito discreta e sutilmente, dentro do Ashram Ātma. Reforçou, então, o convite que me fizera várias vezes para dar início ao seu Memorial. Disse-me, uma vez mais, que eu encontraria a forma de juntar todo o material sob a minha guarda, desde o início, quando nos conhecêramos. Ele iria me dar algumas orientações, mas não queria que eu as gravasse. Eu deveria valer-me, unicamente, da energia desses nossos encontros. No tempo certo, encontraria a forma de utilizar as gravações que dispunha e todo o material relevante sob a minha guarda. Disse para confiar que, quando chegasse a hora, os mestres me intuiriam sobre o momento de iniciar e sobre como proceder ao longo do processo. Regressei para o meu quarto pouco depois das 22h30 e logo adormeci. Acordei às 03h30, ainda sob o impacto da energia daquele seu estado de êxtase, e passei a tomar nota no diário destas observações e de tudo o que havíamos conversado e acertado.

Francisco Barreto: uma hagiografia “não autorizada”?

O memorial deveria expressar aquela energia que ele transmitia, ainda que isso pudesse levar alguns a criticarem ou censurarem a iniciativa de publicar algo que deveria permanecer sigiloso. Sob olhar do leigo, esse tratamento poderia parecer “não autorizado”, pois se sustenta apenas no pedido confidencial que Francisco me fez para desenvolver este trabalho, de forma intuitiva, confiando nas orientações espirituais dos mestres, que sempre manifestam a sua aprovação, quando nos atemos ao coração. 

Nos anos seguintes, Francisco sempre procurou saber de mim como andava o projeto do memorial. Teve, inclusive, a oportunidade de me alertar para que não se repetisse a experiência de um membro bem-intencionado da instituição que, sem muito critério e a devida experiência e/ou autorização espiritual, produzira um vídeo para compor o seu memorial com depoimentos de várias pessoas da instituição. Confiava que eu não cairia nos mesmos erros daquela pessoa. 

Alguns anos mais tarde, em função de uma inesperada amizade com Luiz Carlos Maciel, um mestre na ciência dos roteiros, organizei com ele dois pequenos cursos sobre as técnicas de roteiro para cinema e tv (veja aqui). No segundo (veja aqui), apesar das inúmeras dificuldades, tivemos a oportunidade de escrever um roteiro. Começava assim a se materializar a ideia de produzir uma playlist de vídeos para retratar, com imparcialidade e credibilidade, a vida e a obra de Francisco.


Rio de Janeiro 10.11.2021
(Atualizado em 08.04.23)

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