2017-05-06

Sorriso Interior: a arte de amar (II)

Mnemosyne, a deusa da memória
Mnemosyne, a deusa da
Memória e mãe das musas.
Como definir, como buscar e experimentar daquilo que não se sabe, ao certo, o que é? Sócrates (ca. 470 a.C. - 399 a.C.) lança mão da teoria da reminiscência no diálogo Mênon para enfrentar esta mesma questão. Quer mostrar a Mênon que a virtude não consiste em ter prazer e poder sobre todas as coisas, segundo este acreditava. Do mito à filosofia, perpassa a ideia de que cabe a cada um fazer pelos demais, com amor e perfeição, o que estiver ao seu alcance. Mesmo que no mundo existam homens soberbos e sem lei, não podemos esquecer o quanto um homem tem necessidade do outro.  O que dá sentido à existência é a formação do caráter e o desenvolvimeno do gênero amoroso e virtuoso de viver.  Nem a velhice, nem a juventude são difíceis se nos desenvolvemos desse modo. E a memória é o primeiro elemento para se guardar a verdadeira herança, que é a reminiscência da doutrina do bem e da imortalidade da alma. Segundo esta teoria de reminiscência, recordar-se é tomar o conhecimento de si próprio, pois a alma teria já visto e conhecido todas as coisas anteriormente ao nascimento. Aprender seria recordar-se de algo presente de alguma maneira latente no Espírito e que pode chegar à consciência.  Consciência entendida como a capacidade humana para conhecer; saber que conhece; e saber o quê sabe que conhece. Do ponto de vista psicológico, a consciência representa o sentimento de nossa própria identidade, ou seja, é o eu -- esta maneira individual de perceber, agir, desejar, sentir prazer e, por fim, sentir amor e compaixão. Os gregos associavam esta forma de consciência à mãe das musas, a deusa Mnemosyne (Memória). Ela dava aos poetas e adivinhos o poder de voltar ao passado para que estes pudessem relembrá-lo para a coletividade. Também os médicos utilizavam-se da reminiscência (anamnese). Antes de chegarem aos seus diagnósticos faziam o paciente lembrar-se de todas as circunstâncias que haviam antecedido o momento da doença.  

Pã e Dafne
Pã e Dafne
Conforme mencionei no artigo anterior, a novela Sorriso Interior pretendia retratar como operavam os arquétipos relativos às forças apolíneas e dionisíacas. Dioniso representa a desmesura, a contradição, a extravagância e o desequilíbrio que nos tornam vulneráveis ao pânico. Apolo, dotado de equilíbrio, sobriedade, disciplina e comedimento, é a contraparte arquetípica de Dioniso. Essa harmonização dos contrários dentro de nós mesmos, moldando o nosso caráter, é o mais puro reflexo da arte de amar. Daí nascia o meu entendimento sobre o amor, o meu verdadeiro socorro nas horas de pânico.  A palavra “pânico” deriva de “Pã”, nome do deus grego que se divertia assustando as pessoas com a sua feiura. Segundo a mitologia grega, Apolo teria se debatido e vencido o deus grego Pã, renegado pela própria mãe devido a sua feiúra. É aí que entram a catarse, os sonhos, a mitologia e a filosofia. Quando as forças apolíneas controlam e disciplinam a volúpia dionisíaca alcança-se o verdadeiro êxtase místico. Parmênides (ca. 530 a.C - ca. 460 a.C.) trouxe das religiões e mistérios esta amorosa noção pitagórica de purificação da alma, que promove o êxtase místico, tornando o coração inabalável e apto para trilhar o caminho do equilíbrio e da verdade (alétheia), que conduz ao Ser Absoluto. O amor purifica a alma e possibilita que esta se aproxime das verdades absolutas, invisíveis, imutáveis, universais e necessárias. Mas o que é o amor? 

Não dá para explicitar o âmbito em que pretendera utilizar as figuras arquetípicas de Dioniso e Apolo em Sorriso Interior sem me reportar à Tragédia grega. Para a Grécia, a Tragédia fora sempre superior à Comédia.  Somente recentemente é que Dante iria chamar de “Divina” a Comédia.  A Tragédia trata de feitos heróicos de homens que detêm glória; já a Comédia baseia-se nas pessoas comuns do cotidiano.  A Tragédia tem princípio, meio e fim claramente estabelecidos.  É uma ação completa e acabada.  O processo todo se dá num tempo e lugar somente.  E é sempre encenada.  É uma imitação da ação. Imita a vida das pessoas.  Duplica a vida.  Segundo Aristóteles essa duplicação é esclarecedora, porque, diferentemente de Platão, para ele a arte é o espaço onde é possível alterar e corrigir aquilo que a realidade deveria cumprir e não cumpre. Daí ele considerar a arte superior à história.  É na Tragédia que se dá o momento em que se pode extravasar e chegar à catarse dionisíaca, que auxilia no restabelecimento da harmonia apolínea e no desenvolvimento da arte de amar. O mito é o esqueleto da Tragédia, caracterizada por dois sentimentos: piedade e terror. Nietzsche fala disto: encarar a realidade sem nenhuma fantasia pode ser quase insuportável. O sentido das coisas parece terrível. Por isto a Tragédia toma um fato incompreensível da vida real, um sofrimento imerecido, e o transforma em arte. Aí o caráter de mito que estimula o desenvolvimento do amor humano. Enquanto o terror se processa a partir da natureza, a piedade se processa nos homens. Juntos, esses dois sentimentos geram o processo catártico, que traz alívio, tanto ao autor, como aos atores e a platéia. 

As Bacantes
As Bacantes, de Eurípedes
Na obra As Bacantes, de Eurípedes, escrita na Macedônia e representada em Atenas, Dioniso representa as forças da natureza e, num certo sentido, a justiça dos deuses.  A cena se passa em frente do palácio real de Tebas.  A justiça punitiva da natureza se dá porque os homens não sabem viver com generosidade, usufruindo de tudo que a natureza oferece.  Cegos pela vaidade e pela usura, jogam com a vida.  Dioniso aparece como o deus que revela a fragilidade da ordem grega: deus estrangeiro, ele é um elemento ameaçador. Mas renegar Dioniso seria como renegar a própria natureza humana.  Esta é a moral da história: Dioniso é a representação de um poder da natureza contido em nós. Dioniso se apresenta como o filho de Zeus que agora volta a Tebas, terra de sua mãe Sêmele, a filha de Cadmo, fundador e rei de Tebas.  Afirma ter, em toda parte, instituído as danças e os mistérios a fim de que a sua divindade fosse manifestada aos mortais.  Tebas teria então que saber, quisesse ou não, que necessitava da iniciação em seus báquicos rituais.  Dioniso é um deus profético e aqueles em cujo espírito ele penetra passam a predizer o futuro.

É o diálogo com as vozes arquetípicas presentes em nosso ser que nos revela como perscrutar e seguir a amorosa voz da consciência. À medida que amadurecemos, deixamos de confundir os apelos da consciência com os impulsos instintivos. Vamos desenvolvendo aquele pensar que o poeta romântico brasileiro, Gonçalves de Magalhães, chamava de amor da verdade em seu livro Factos do Espírito Humano, que inaugura a filosofia brasileira. O que procura o ser humano? -- pergunta. Qual é o fim, a causalidade final?  -- Para ele, a verdade por amor da verdade é o fim, na medida em que move o indivíduo.  Além de conhecimento é preciso virtude.  Virtus -- valor.  É preciso ser valente, ter valor; sentir esse amor da verdade.  E é preciso querer; o que significa, em poucas palavras, que o esforço é responsabilidade de cada um.  Haveria que se seguir porque se quer.  E haveria que se criar as próprias regras.  Este o significado do diálogo que conduz à visão interior -- Inter legere, luz.  O sentimento de verdade dá brilho, reflete a amorosa luz interior e esmalta toda a atividade racional, fazendo da cultura aquele toque humano que revela a natureza como boa e bela. Desde o século IV esta estética da luz está presente no pensamento ocidental. Dioniso Aeropagita já falava do espírito concebido como luz.  Para Magalhães, a luz interior é Deus. Magalhães fala da verdade como esse luminoso sentimento interior que qualifica a existência humana e nos confere mais ser, levando-nos a olhar para todos os seres com a compreensão de que cada um está numa fase do processo. Compreendemos que o assassino, tanto quanto o santo, traz em si a mesma essência de vida. O que hoje vemos como mal pode no passado ter sido o que já vimos como bem. Olhando os inimigos, não apenas no seu presente, mas no seu passado e futuro, vemos que a trajetória deles é a trajetória de qualquer um de nós, seres humanos.  

Nova Atlântida
Como promover o amor, a liberdade, o bem-estar, a harmonia e a paz?  No passado, Platão propusera a administração do rei-filósofo (como filósofo, saberia o que fazer; e, enquanto rei, seria capaz de fazê-lo). Já Santo Agostinho, em Cidade de Deus, propusera uma vida baseada na autoridade suprema. Fora influenciado pela leitura do Hortênsio de Cícero: “Vede, não vos iluda alguém com a filosofia e as miragens, conforme as tradições dos homens e os ensinamentos do mundo, e não segundo Cristo, porque é n’Ele que habita corporalmente toda a plenitude da Divindade.” Para Thomas More a resposta era a criação da utopia sob leis.  Francis Bacon propusera a Nova Atlântida sob a lei e a ordem.  Erasmo contudo, discordava que pudessem ser a lei e a ordem a resposta.  Daí ter escrito o Elogio da Loucura, brincando com o fato de que o nome “More” fosse a raiz latina de “louco”. Depois, Henry David Thoreau construiu sua própria utopia nas margens da lagoa Walden.  Mais tarde, Freud e Pavlov seriam satirizados em Admirável Mundo Novo de Aldous Huxlei.  Todas estas propostas fracassadas, todos os caminhos errados, contudo, não são caminhos errados, conforme afirma Alberto Caieiro, a voz interior e o mestre de Fernando Pessoa, no poema "Para Além da Curva da Estrada":

Para além da curva da estrada 
Talvez haja um poço, e talvez um castelo, 
E talvez apenas a continuação da estrada. 
Não sei nem pergunto. 
Enquanto vou na estrada antes da curva 
Só olho para a estrada antes da curva, 
Porque não posso ver senão a estrada antes da curva. 
De nada me serviria estar olhando para outro lado 
E para aquilo que não vejo. 
Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos. 
Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer. 
Se há alguém para além da curva da estrada, 
Esses que se preocupem com o que há para além da curva da estrada. 
Essa é que é a estrada para eles. 
Se nós tivermos que chegar lá, quando lá chegarmos saberemos. 
Por ora só sabemos que lá não estamos. 
Aqui há só a estrada antes da curva, e antes da curva 
Há a estrada sem curva nenhuma. 

Anos mais tarde (23.05.1932), Fernando Pessoa concluirá em outro poema, que:

A morte é a curva da estrada,
Morrer é só não ser visto.
Se escuto, eu te oiço a passada
Existir como eu existo.
A terra é feita de céu.
A mentira não tem ninho.
Nunca ninguém se perdeu.
Tudo é verdade e caminho.
(Poesias. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1942, 15a Ed., p. 142)

Cabe a cada um fazer a verificação, sob a luz amorosa da consciência, do que se entende ser o seu próprio dever e proceder às mudanças de comportamento que se fizerem necessárias.  O medo de errar o caminho confunde-se com o medo de viver. A verdade está no fato de poder ser; e a identidade está no interior da diferença. Tudo é relativo, menos o amor que é o fundamento e a base epistemológica das verdades morais e das utopias sobre as formas justas de governo deste mundo. As instituições, quando se fundam em regras e não no amor, estão fadadas ao fracasso e ao desaparecimento. Eu mesmo vivera a minha utopia quando me mudara em 1987 para o nordeste. Areia Branca, Areia Branca, Areia Branca... Quisera eu deixar mais claro o que foi esse projeto... Quisera eu, mas que tenho a dizer sobre Areia Branca?  Lembro um professor, que numa de suas aulas citou o velho Mao Tse Tung.  Uma vez perguntaram-lhe sobre a revolução francesa.  Sua resposta foi que não poderia analisar tal evento devido ao fato de ele ser ainda muito recente. Do mesmo modo, não há distanciamento histórico que me permita qualquer análise sem correr o risco de ser injusto. Responder a essa pergunta seria apagar a História.  Então, prefiro agora a cautela. Que é Areia Branca?  Que foi Areia Branca?  Falo de um lugar com existência real, localizado a aproximadamente vinte quilômetros do centro de Aracaju.  Está lá.  São ruínas de onde os futuros arqueólogos muito se espantarão com as “descobertas” que então realizarão. O que posso dizer é que foi um projeto real e que tem continuidade com a instituição Grande Síntese, com a qual ainda contribuo. Ali foi constituído um dos polos pioneiros desse movimento de aproximação do oriente e do ocidente, iniciado nos Estados Unidos nos anos cinqüenta, quando beatniks e hippies começam a protestar contra o sistema da racionalidade ocidental baseada na divisão sujeito-objeto.  Tinham como slogan o ‘tat twam asi’ (Tu és Aquilo) -- expressão sânscrita que pretende afirmar não haver divisão entre o que pensamos ser e tudo que pensamos perceber, ou seja, entre sujeito e objeto.

A interrelação dos três guṇas
A interrelação dos três guṇas.
Nós brasileiros tínhamos até meados de 1990 uma visão muito pobre da mitologia oriental e seus arquétipos.  Daí meu esforço em Sorriso Interior em refletir sobre os três guṇas (qualidades da matéria) associando-os ao mito do herói presente na Bhagavad Gītā. A matéria é considerada como dotada de três qualidades, ou guṇas.  A energia (śakti), para criar todas as formas, transforma a si mesma em matéria (prakṛti). As três qualidades surgem quando a energia se condensa formando a matéria.  Em cada situação da vida de um indivíduo, dependendo do estímulo interno do espírito, predomina uma dessas três qualidades: sattva, rajas ou tamas. O pressuposto geral é que tamas compreende o princípio “estático”; rajas como o princípio “explosivo”, “dinâmico”; e sattva como o princípio “harmonioso e rítmico”. Por isto, também as pessoas podem ser classificadas em sáttvicas, rajásicas e tamásicas.  De modo geral, as pessoas da classe sáttvica são as que sentem inclinação pela aquisição de conhecimentos e estão preocupadas com as questões sociais e culturais.  As pessoas classificadas como predominantemente rajásicas seriam aquelas mais comprometidas com as disputas e busca de vantagens pessoais.  Os tamásicos seriam aqueles cujo único interesse é a satisfação dos próprios apetites corporais e que são capazes de qualquer crueldade para obterem aquilo que lhes possa gerar prazer.  A educação yóguica oferece, em princípio, as condições para que as pessoas se tornassem predominantemente de tendência sáttvica. A faculdade cognitiva, iluminada por sattva, levaria à percepção da unidade subjacente à aparente multiplicidade do mundo.  Quando rajas predomina, a faculdade cognitiva percebe o homem como lobo do homem, onde justiça seria apenas o interesse do mais forte.  Predominando tamas, resulta um estado de ignorância quase total. No campo dos sentimentos e das emoções, sattva estimula os estados de felicidade, representado pela ausência dos males psíquicos; rajas relaciona-se com a paixão pelo domínio, a ira, a cobiça, a inveja, o orgulho, a crueldade, o ódio e outras qualidades inferiores; e tamas relaciona-se com  a depressão, o temor, a dor e o desalento.  Na esfera dos sentidos e das ações, sattva tem ação terapêutica e purificadora; rajas nos motiva a agir impulsivamente; e tamas nos induz à preguiça, à inatividade e à negligência.  Em todos nós estes três guṇas atuariam conjuntamente e seriam os responsáveis pela produção de todos os pares de opostos deste mundo dual: afeto e aversão; prazer e dor; amizade e inimizade, etc. Esses pares de opostos produzem apego causando sujeição a eles e a conseqüência é a escravidão através das ações. Daí que o desenvolvimento da consciência de si abarque também o mundo como conteúdo da consciência, conforme ensinava Krishna a Arjuna na Bhagavad Gītā, pois o amor se dá como relação do ser e nesse sentido, ser é inter-ser. Ao filósofo do coração, o iogue contemporâneo, portanto, competiria exercitar-se em seu ofício, que é a arte de amar. Daí que a sua linguagem seja vista como o pharmakon (medicamento) que nos auxiliaa a alcançar a saúde do corpo e da alma e a resgatar a nossa própria memória e história.

Rio de Janeiro, 06 de maio de 2017.
(Atualizado em 08.05.17)

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