“A arte não muda os fatos; muda os corações.
E corações mudam o mundo.” (Insp. em Leonard Bernstein)
A Música é a Ponte
Há um ponto de convergência onde os saberes se silenciam e escutam uns aos outros. Onde a ciência começa a pressentir o invisível, e a espiritualidade reconhece o valor do método. A arte — especialmente a arte da escuta — é essa ponte, esse antarātmā, esse interstício onde se cruzam a razão e o mistério. E é nesse lugar sutil que floresce a musicoterapia como caminho: um yoga contemporâneo que se serve do som para revelar a luz do coração.
No contexto deste capítulo, onde exploramos os estados de consciência e a sabedoria onírica, a música aparece como meio privilegiado de travessia. Se os sonhos são portais, como nos ensina Bhagavan Das, então a música é o barco. E a escuta — profunda, amorosa, compassiva — é a arte de navegar.
Escutar com o Coração: Polifonia, Diálogo e Presença
No Śraddhā Yoga, escutar não é apenas receber sons; é abrir o coração ao outro, ao invisível, ao inefável. Assim também compreendemos a Bhagavad Gītā como saṁvāda: não um discurso unilateral, mas um encontro real entre dois corações — Arjuna e Krishna — unidos na tensão entre angústia e clareza. Como em Dostoiévski, o diálogo da Bhagavad Gītā é polifônico, tal como o compreende Mikhail Bakhtin: uma constelação de vozes em conflito criativo, onde nenhuma é silenciada e todas buscam, juntas, o foco absoluto da verdade.
Este modelo dialógico inspira hoje práticas como a Dialogical Inquiry, adotada por Gene Ann Behrens e Viggo Krüger na interface entre musicoterapia comunitária e neurociência. A música em grupo, nesse contexto, não apenas regula sistemas nervosos — ela favorece o aparecimento de um espaço comum onde a escuta se transforma em cura e a vibração em pertença.
Empatia, Compaixão e Śraddhā Sáttvika
Behrens distingue empatia de compaixão com base em dados neurocientíficos: a empatia pode gerar exaustão; a compaixão ativa o sistema de recompensa, libera dopamina e promove bem-estar. Mas falta algo.
Quando olhamos a partir da tradição da Bhagavad Gītā, percebemos que esses afetos só ganham estabilidade quando se assentam no gesto mais essencial: a śraddhā sáttvika. Esta é a confiança silenciosa que unifica sentir, querer e agir; é mais do que técnica — é vibração coerente com o Ṛta, a grande ordem harmônica que rege tudo. Assim, compaixão não se aprende como quem adestra um pet, mas se cultiva como quem silencia e ouve o murmúrio do real.¹
O foco do coração, tal como Arjuna o alcança no clímax da Bhagavad Gītā, não é induzido por técnicas — é despertado pela entrega. Essa entrega é a śraddhā.
Neuroplasticidade, Transcendência e os Quatro Estados da Consciência
A arte de sonhar, segundo Bhagavan Das, ensina-nos que a consciência transita entre quatro estados: vigília, sonho, sono profundo e turiya — o estado silencioso além dos três primeiros. A música, nesse itinerário, é mais que estímulo sensorial: é frequência que pode conduzir ao sutil.
Sidarta Ribeiro descreve os sonhos como “ensaio de futuros possíveis”, ativando circuitos cerebrais que refletem memórias e desejos. Behrens, por sua vez, mostra como a música em grupo afeta o tônus vagal, promove segurança fisiológica e resiliência. Aqui, ciência e espiritualidade se aproximam: ambas reconhecem que há algo em nós que se reorganiza quando escutamos profundamente.
Mas onde a ciência para, a śraddhā começa. Não se trata apenas de regulação emocional, mas de transfiguração do ser. O terapeuta que escuta com śraddhā não apenas acalma o sistema nervoso de seu paciente — ele o convida a recordar-se de si.
O Cérebro como a Lua: Reflexão e Alma
A ciência atual, munida de sofisticadas técnicas de imageamento cerebral, busca explicar a religião por meio da ativação do lobo temporal. Mas como dissemos certa vez: “o cérebro é como a lua; reflete uma luz que não lhe pertence”. Essa luz — o Ātman — é o que transparece nas experiências místicas legítimas, como a de Arjuna no campo de batalha: não um delírio, mas uma metamorfose.
A tentativa de reduzir o sagrado ao neuroquímico falha porque ignora a potência transformadora do real espiritual. Não há prova empírica que explique o poder de um voto interior de não-violência. Não há neuroimagem que justifique a flor que se abre após o perdão. É aqui que a śraddhā reintroduz a alma no debate: não como crença irracional, mas como vibração real.
Para além de Arjuna, cuja experiência é relatada num épico espiritual, também encontramos exemplos históricos recentes de transformação sustentada por śraddhā. Mahatma Gandhi, Martin Luther King Jr. e Nelson Mandela não apenas experimentaram epifanias interiores — eles traduziram essas experiências em ações que alteraram os rumos da história. Cada um deles, à sua maneira, deu testemunho de que a experiência espiritual, quando genuína, é reconhecida não pela intensidade do êxtase, mas pela profundidade da entrega e pelas consequências que gera no mundo. Ao contrário das simulações químicas ou induções técnicas que apenas reproduzem padrões neuronais, śraddhā conduz à maturação ética, à não-violência ativa e à coragem lúcida. Ela não apenas transforma o cérebro; ela transforma o planeta.
Śraddhā-vṛtti e a Arte da Cura Interior
Ao fim, retomamos a frase inicial: a arte não muda os fatos — muda os corações. E quando um coração se abre, o universo se reorganiza ao seu redor.
A musicoterapia, nesse contexto, deve ser mais que técnica: deve ser prática sagrada. Deve escutar os sonhos e os silêncios. Deve recordar ao terapeuta que ele é um sādhaka, um adepto habilidoso; e ao paciente; que ele é um jīva, uma alma em jornada.
Nos termos do Śraddhā Yoga, o verdadeiro tratamento sonoro não visa apenas à cura da dor, mas ao reencontro com a fonte da lucidez amorosa. E é essa fonte que chamamos de śraddhā — a arte de ver com o coração, a Śraddhā-Vṛtti, néctar da práxis sintrópica.
संगीतं हृदयस्य सेतुर्भवति।
saṅgītaṁ hṛdayasya seturbhavati.
A música é a ponte do coração.
¹ Ṛta: termo védico que designa a ordem cósmica, a harmonia primordial que sustenta o dharma e os ciclos da natureza e da consciência.
Referências
Behrens, G. A. (2024). A Framework for Developing an Inclusive Compassionate Identity.
Behrens, G. A., & Krüger, V. (2025). Dialogue Between Friends: Exploring How Neuroscience Supports Themes Defining Community Music Therapy.
Bernstein, L. (1972). In Gruen, J. The Private World of Leonard Bernstein. New York: Viking Press.
Clark, K., & Holquist, M. (1984). Mikhail Bakhtin. Cambridge: Harvard University Press.
Ribeiro, S. (2019). O Oráculo da Noite: A História e a Ciência do Sonho. São Paulo: Companhia das Letras.
Turci, R. (2015). Śraddhā in the Bhagavad Gītā: An Investigation on the Primeval Expressions of the Contemporary Paradigm on Heart-Philosophy. International Journal of Dharma Studies, 3(2). https://doi.org/10.1186/s40613-015-0013-5
Rio de Janeiro, 25 de junho de 2025.
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