Deixei ainda muito jovem (1986) a Monsanto e uma promissora carreira executiva para dar início a uma jornada épica rumo ao desconhecido — em busca dos instrumentos e das armas necessárias para interpretar a literatura sagrada e as filosofias do mundo. Foram incontáveis as dificuldades que enfrentei antes de compreender as bases fundamentais da ciência empírica da vida sagrada e concluir o ciclo iniciado com o abandono de um estilo de vida fundado na subordinação a um ambiente corporativo que me parecia desequilibrado e fora de sintonia com os valores da nascente ciência socioambiental. Foram trinta anos até que pudesse ressignificar o simbolismo de Haṃsa (2016), identificado agora com a cicatriz que ganhara — e que me permitira tecer, neste livro-blog, o Svatantra da minha própria jornada de convergência para o Ser.
Ainda era engenheiro trainee, na unidade de fibra acrílica que a Rhodia mantinha em São José dos Campos, quando percebi que a minha missão nesta vida era outra. Alguns anos mais tarde, já na Monsanto, compreendi que não podia mais adiar a decisão de me afastar, ainda que provisoriamente, do exercício da minha profissão. Sentia-me chamado a participar de um movimento sutil e invisível aos olhos comuns — voltado à reforma e refundação das instituições humanas. Não responder àquele chamado seria, para mim, morrer em vida. Convocado pelo coração para servir à cultura sintrópica, caracterizada pelos ideais de paz e amor, em conformidade com o ideal gandhiano da não-violência, com o ecofeminismo e a espiritualidade pura, não poderia mais postergar meu engajamento. Informei aos meus superiores, com seis meses de antecedência, que apresentaria, de forma irretratável, meu pedido de demissão.
Era uma época conturbada, e o cenário político nacional agravava em mim a sensação de impotência. Frequentemente me via envolvido em conversas sobre aquilo que verdadeiramente me importava: a consciência socioambiental e o estilo de vida de "paz e amor" proposto pela nascente contracultura. Meus olhos brilhavam ao ouvir sobre ecologia, vegetarianismo, virtude, justiça social, compaixão — palavras-chave que me impulsionavam a romper com os padrões de comportamento e condicionamentos que mantinham a sociedade presa ao modelo egocêntrico, consumista e opressor. Sonhava com a utopia luminosa dos anos sessenta, onde o amor parecia reger todas as relações — mais abertas, mais sinceras, mais livres.
Talvez por isso tenha causado espanto em colegas e superiores quando compartilhei o que compreendia como sendo os rituais de iniciação da classe política e empresarial. Disse-lhes:
— É nas festas e encontros sociais que se inicia o processo de seleção dos representantes da classe dirigente. Isso não se dá no ambiente de trabalho. Os postos-chave raramente são preenchidos por mérito. O ambiente de trabalho é apolíneo; o da elite dirigente é dionisíaco. Só ingressa ali quem pactua com os seus valores — algo testado em jogos e festas ritualísticas, em torno do vinho, do canto, da dança. O líder deve ser minimamente competente, sim, mas acima de tudo deve saber embriagar-se a ponto de perder o direito à crítica. Deve tornar-se cúmplice. Assim funcionam os eventos empresariais, sindicais e políticos. Como em todo ritual, uma vez inserido nele, o sujeito é compelido a comungar com sua atmosfera, muitas vezes traiçoeira e reprodutora das relações de dominação.
Daí a legitimidade do movimento hippie. Os hippies foram reprimidos porque representavam uma ameaça à hegemonia das formas socialmente aceitas de embriaguez. O papel de reprodução da elite que os marxistas atribuem à escola ou à igreja, eu via antes nas festas. Não adianta tomar as estruturas, como fizeram os revolucionários na Rússia, se seus líderes continuam participando dos mesmos rituais que sustentam o sistema, sem disso se darem conta — embriagados pela sede de poder. Seria mais eficaz que fossem menos radicais nas análises econômicas e mais comedidos em relação ao vinho e aos prazeres da carne — os mesmos proporcionados por um agronegócio que, paradoxalmente, condenam.
Já então intuía: a cultura do álcool e do vinho não sobreviveria ao novo milênio, onde a liberdade do espírito se tornaria o valor supremo. E, com ela, perderiam força as instituições e corporações modeladas por tradições decadentes que, além de negligenciarem o sofrimento animal, promovem o consumo excessivo de carne e a embriaguez celebrada como virtude.
Mesmo com as pernas trêmulas e os braços sem força, redigi minha carta de demissão. Definitiva. Sentia-me convocado a refletir sobre os fundamentos da estrutura corporativa e sua herança colonial, que se prolongava inclusive nas engrenagens sindicais que diziam resistir ao sistema.
Levou algum tempo, contudo, até que eu anunciasse, com clareza e firmeza, minha decisão de deixar o ambiente corporativo. Não fosse por aquela voz interior — silenciosa mas insistente — que despertara em mim a coragem necessária, teria sido mais fácil permanecer fingindo que nada via de errado. Meu corpo resistia, mas algo mais profundo me instava à ação. Uma inquietação me atravessava, e ainda assim eu hesitava:
— De onde vem essa fraqueza, indigna da pessoa guerreira que você sempre foi? Não se entregue a ela. Levante-se, resoluto, sem medo!
— Como posso? — respondi em pensamento — Não consigo discernir o que é melhor. A dor e a angústia consomem meu coração. Minha mente vacila. Como saber o que fazer? Sempre tentei seguir o coração, mas como ouvi-lo com clareza? Como não me enganar?
— Essas palavras têm um fundo de verdade, mas ainda exprimem a visão dos que se deixam vencer pela ignorância. Lembra-te do que diz a Bhagavad Gītā: jamais houve um tempo em que não exististes — nem haverá um tempo em que deixarás de existir. Este corpo é apenas a vestimenta da alma eterna. Dor e prazer pertencem ao que é impermanente. Compreendendo isso, enfrenta com coragem os desafios que te cabem. Aquilo que é, verdadeiramente, nunca deixa de ser; e aquilo que não é, jamais passa a ser. Ninguém pode ferir o Ser. O Espírito é indestrutível, imperecível, eterno. Se sabes disso, por que te deixas tomar pelo desalento? Teu dever é lutar, com firmeza e clareza, pela meta que teu coração reconhece.
Mesmo que sucumbas, tua luta não será em vão. Cumpre, sereno, o teu dever. Yoga é maestria em cada pequena decisão. Somente quem age a partir do coração governa seus sentidos e desejos. Quem anseia pelos objetos sensíveis é por eles atraído; da atração nasce o desejo, do desejo, a paixão — e da paixão, a perda da clareza. A mente turvada esquece o que sabia; da perda da memória nasce o esquecimento da verdade; e, assim, o homem se perde de si mesmo.
— Aquilo que é noite para o homem dominado pelos sentidos é dia para o sábio; aquilo que é ilusão para o mundo, é real para quem vê com o coração.
— Mas como saber, afinal, quem é o sábio? Quem é o tolo? Haveria mesmo um caminho que conduzisse à paz?
— Engana-se quem acredita que pode escapar das consequências da vida esquivando-se de seus enfrentamentos. A renúncia à ação necessária não conduz à paz. Tudo neste universo está em perpétuo movimento; cabe a nós encontrar harmonia com o fluxo do real. Não é sabedoria alienar-se do mundo em nome de uma pretensa pureza: isso é apenas vaidade espiritual. O sábio não se omite — ele age com discernimento e domínio interior.
— Saber ver a ação na inação, e a inação na ação: esse é o sinal do desperto. Quem age movido pelo Espírito, já não age por si. Suas ações tornam-se oferendas — expressão pura da entrega. Quando tudo o que se faz nasce da verdade do coração, a própria ação se transfigura em silêncio e luz.
— Aquele que recebe dons do universo e os retém para si sem devolvê-los em serviço, é como um ladrão. Vã é a vida de quem vive no mundo da ação e, ainda assim, escolhe a covardia e a omissão. Vive como parasita: toma do mundo aquilo que deseja, sem oferecer nada em retorno.
— O mundo segue o exemplo dos que agem com nobreza. Grandes seres jamais se omitem diante das causas justas. Cada qual deve agir segundo sua natureza; o sábio, então, harmoniza suas ações com o que há de mais elevado em si. O caráter é a obra de cada alma. E a força que parece nos arrastar, mesmo contra a vontade, nasce dos hábitos e paixões que nós mesmos acumulamos. Tal força, filha do apego e da confusão dos sentidos, se chama: Paixão.
A Bhagavad Gītā não trata de uma religião em particular, mas do fenômeno universal da espiritualidade. Ensina que o yogin, ao se libertar do apego, executa suas ações — físicas, mentais, simbólicas — como forma de harmonizar a mente com a ordem natural das coisas. Meditando no Ātman — o Alento Vital, o Espírito Absoluto, a Mônada do Amor Divino — alcança-se o mais elevado dos planos, aquele de onde não há mais retorno ao mundo inferior.
Com base nesta certeza, Krishna exorta Arjuna a não se abater diante dos eventos desagradáveis. A realidade deste mundo, por mais avassaladora que pareça, é insignificante frente à vastidão do real. Por isso, ele o prepara para o dhyāna — o encontro contemplativo com o Ser. Quando a mente se silencia e contempla, surge a paz que nada pode perturbar.
Eu também vivia meu kurukṣetra, meu campo de batalha interior, diante da decisão iminente. Era a Monsanto meu campo de ação, onde uma escolha essencial deveria ser feita. Como Arjuna, senti nascer em mim aquela voz — não externa, mas profunda — que disse:
— Quem fixa sua atenção no Espírito que habita o coração — o Ātman — encontra a chama do amor e da sabedoria. Quem age, decide e vive a partir desse centro, une-se à própria fonte de tudo. Todos os caminhos espirituais são como ramos da Grande Árvore Invertida, cujas raízes tocam os céus: e sua seiva é este Yoga, que nos une ao Ser.
O fervor e a fé — seja no latim fides, seja no sânscrito bhakti — daqueles que adoram Deus como pessoa, representada por santos, avatares ou divindades, também emergem do Ātman. Mesmo quando esse Ātman lhes é inacessível ou incompreensível, é dele que nasce o impulso devocional.
A fé dos ateus e dos crentes, ainda que se expressem em crenças contraditórias, é sempre o alvorecer de um mesmo ardor: a convicção interior, o sentimento sintrópico de comunhão (śraddhā) com o Ser. Toda adoração, ainda que voltada a formas ou nomes, é exercício espiritual que, quando maduro, conduz à sua forma mais pura (śuddha): a adoração silenciosa do Ātman, sem imagem nem mediação.
Quem se entrega com sinceridade, mesmo sem saber, se aproxima da origem. Quem faz o melhor que pode, colhe os frutos segundo a exata medida de seu esforço. Todas as recompensas fluem do Ātman. Assim opera a lei do amor e da justiça. Os que cultuam os devas a eles se aproximam; mas aquele que cultua o Ātman, alcança a Suprema Morada.
— Como pode o Ātman habitar neste corpo? — pensei. — E como ele se revelará na hora da morte? O que significa dizer que a vida universal emana do Ātman? O que faz com que os seres nasçam, se movam, cresçam, ajam?
— Ouve, então — respondeu a voz interior. — Fecha as portas dos sentidos. Concentra tua mente no coração, onde, em todos, habita o Ser Universal. Permanece ali, atento, e experimenta o estado de meditação por meio deste Yoga ancestral e puro, transmitido por Krishna a Arjuna. Escuta com reverência o som primordial — OM — e não permitas que tua mente vagueie. Esta multidão de seres, manifestada desde o início do universo, se dissolve quando ele também se dissolve. Mas o Ātman, eterno, permanece inviolado. Nem mesmo a destruição cósmica o toca.
— Todo o universo emana do Ātman, e é por ele sustentado. Mas as pessoas comuns não o reconhecem. A vaidade, o egoísmo, a ignorância e a ausência de amor turvam sua percepção. Dominados pela malícia e pela brutalidade, veem apenas a forma passageira das coisas.
— Os sábios, porém, despertos pelo reconhecimento amoroso da unidade de todas as coisas , percebem o Ātman como a semente imperecível do real, a testemunha silenciosa, o mesmo em todos os seres.
Todos os sábios falam do Ātman. E de algum modo, naquele instante, eu o ouvia reverberando dentro de mim — como se a Bhagavad Gītā falasse não mais através de páginas, mas do coração:
— Eu sou aquilo que habita o centro de todos os seres. Sou o início, o meio e o fim. Entre os sentidos, sou a mente; entre as águas, sou o oceano; entre os sábios, a sabedoria; entre os sons, a sílaba AUM. Entre os guerreiros, sou Arjuna; entre os sábios, sou Vyāsa. Entre os seres vivos, sou a própria Vida. Entre as luzes, sou o Sol; entre os ciclos, sou a Morte que tudo consome — e também o Renascimento, que dissolve a morte.
Diante desta visão, senti vertigem, como Arjuna sentiu. Contemplei em mim mesmo — em lampejos — a unidade por trás da multiplicidade. Percebi o que antes me parecia apenas metáfora. A Bhagavad Gītā e as demais Escrituras já não eram símbolos distantes: tornaram-se revelação viva. Percebi ali a fala dos grandes seres. E, ainda que temeroso, senti-me fortalecido. Era hora de seguir.
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Pausa da tese para refrescar as ideias... |
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Ashram Atma (1986) |
Senhor,
No silêncio deste dia que amanhece,
Venho pedir-Te a paz, a sabedoria, a força.
Quero ver hoje o mundo com os olhos cheios de amor.
Quero ser paciente, compreensivo, manso e prudente.
Quero ver além das aparências os teus filhos,
Como tu mesmo os vês e assim não ver senão o bem em cada um.
Cerra meus ouvidos a toda calúnia.
Guarda minha língua de toda a maldade.
Que só de bençãos se encha o meu coração.
Que todos os que de mim se acercarem sintam a Tua presença.
Reveste-me de Tua beleza, Senhor.
E que no decurso deste dia eu Te revele a todos.
Próximo texto: Docudrama: um roteiro para a história da descoberta do sentido paradigmático de śraddhā
Rio de Janeiro, 10 de maio de 2017.
(Atualizado em 08.05.25)
(Atualizado em 08.05.25)
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