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Alegoria da Caverna de Platão |
O sábio vê em 3D o que percebemos de forma plana e polarizada. |
GRUPO: Pretendemos utilizar em nosso projeto a ideia da Caverna de Platão. Você poderia nos ajudar a compreendê-la?
RUBENS: A Alegoria da Caverna de Platão fala de um mundo interior (Farias Brito escreveu um interessante livro com esse título). Há um mundo dos fatos do espírito humano (Gonçalves de Magalhães é autor de outro interessante livro com esse título e que representa, muito provavelmente, o primeiro texto da filosofia brasileira). Esse universo interior pode ser explorado de vários modos distintos. Por exemplo, segundo a textura mais sofisticada de filmes como Matrix, etc. Mas, voltando a Platão (ca. 427-347 BCE), vamos considerar o contexto que o levou a criar sua alegoria, conforme ela aparece, no livro República, Livro VII. O contexto é o da morte de Sócrates. Platão, seu discípulo, não consegue se conformar como é possível que o mais justo dos homens, Sócrates (ca. 470-399 BCE), pudesse ter sido condenado pelo tribunal de justiça da época à pena de morte, precisamente por ser considerado injusto e corrupto. A Alegoria da Caverna procura apresentar uma explicação plausível para tamanho absurdo, retratando o filósofo como aquele que tem a capacidade de discernir entre o verdadeiro e o falso, entre o justo e o injusto – capacidade esta que, obviamente, os membros do tribunal que condenara Sócrates não apresentavam . . .
RUBENS: O desejo de Platão era que esta virtude pudesse ser ensinada. Para este fim, vale-se de uma alegoria para fazer desabrochar o conhecimento interior, que outra coisa não é senão o conhecimento de si. Um conhecimento que não vem pelos cinco sentidos (tato, olfato, paladar, audição e visão) e sim pela razão, iluminada pela luz do coração. O conhecimento que nos chega pelos sentidos não é confiável e sequer mereceria o nome de ‘conhecimento’. Por exemplo, quando olhamos para o sol, ou para a lua, temos a impressão de que estes objetos não são maiores que uma bola de futebol. Ou seja, os sentidos revelam apenas as aparências. E as aparências enganam. Por detrás das aparências existe uma realidade mais sutil e menos perceptível. É esta realidade mais invisível que interessa ao filósofo. E é desta realidade da alma, que escapa a uma mente indisciplinada, que trata a alegoria da caverna. A alegoria da caverna trata da capacidade intuitiva de ver, que está além do simples olhar, e que nos permite construir o nosso entendimento da realidade, concreta ou virtual. O método socrático ficou conhecido como maiêutica (parir), pois ele dizia ser como sua mãe, que era parteira. Ela ajudava as mães no momento do parto; ele ajudava aos outros a parirem as suas próprias ideias. Para deixar isto claro vou reconstruir livremente a fala de Sócrates na passagem do diálogo escrito por Platão, origem da alegoria da caverna. Em linhas gerais, Sócrates e Glauco mantêm o seguinte diálogo :
1. Imagine uma caverna com uma entrada aberta para a luz. No interior desta caverna há prisioneiros acorrentados desde a infância. Sequer conseguem mover as cabeças para o lado; só conseguem olhar para frente.
2. Imagine também que exista uma fogueira, um muro e homens passando por detrás do muro e carregando uma variedade de objetos. O muro esconde os homens e apenas deixa ver os objetos que eles carregam sobre a cabeça.
3. Imagine que o fogo projeta no fundo da caverna as imagens destes objetos que os homens carregam, mas não os homens, uma vez que eles se encontram detrás do muro. Alguns homens passam conversando e outros passam em silêncio, levando suas cargas. As sombras projetadas formam algo que lembram um teatro de marionetes (ou um filme projetado em uma tela de cinema).
Glauco:
Que cena estranha! E que estranhos prisioneiros!
Sócrates:
1. Os prisioneiros são como nós. Não conseguem ver a realidade, mas apenas as sombras projetadas pelo fogo na parede do fundo da caverna.
2. Suponha agora que houvesse um eco vindo da parede onde as imagens estão sendo projetadas (Sócrates descreve aqui o que hoje entendemos por cinema).
3. Cada vez que um transeunte passasse carregando um objeto, se ele dissesse algo, a projeção mostraria o objeto e o eco da voz do transeunte. Você não acha que os prisioneiros deduziriam que as vozes seriam daquelas sombras dos objetos projetados? Não acreditariam os prisioneiros que aquelas sombras constituiriam a verdadeira realidade?
4. Agora imagina que um dos prisioneiros conseguisse se libertar daquelas correntes e pudesse caminhar um pouco em direção à luz exterior. Não ficaria cego e assustado? Não voltaria correndo para onde crescera e para onde já estava acostumado – as sombras do fundo da caverna?
5. E se acaso tivesse saído da caverna e experimentado a luz do sol? Sem antes habituar os olhos não ficaria confuso? Mas, ao cair da noite, já não estaria vendo a luz das estrelas e da lua mais claramente que a do sol durante o dia? Por fim, poderia ver o próprio sol e contemplá-lo tal qual ele é. E desta experiência única, passaria a tirar as suas próprias conclusões, compreendendo como o sol produz as estações do ano e governa todas as coisas visíveis. Compreenderia inclusive que o que antes vira na caverna eram simples sombras.
6. Não traria esta compreensão alegria? Não sentiria então desejo de compartilhá-la com seus companheiros, ainda prisioneiros do mundo de ilusão das sombras da caverna?
7. Mas considera o seguinte: se resolvesse descer de volta lá para o fundo daquela caverna, agora com os olhos acostumados com a luz, não se sentiria cego e no escuro? Não teria agora dificuldades, inclusive, para enxergar aquelas sombras que os olhos acostumados dos prisioneiros enxergavam tão bem?
8. Não passaria então por ridículo este homem que dizia saber de uma realidade superior, mas era incompetente para discernir aquelas sombras que todos conheciam? Não diriam estes prisioneiros, que ele voltara enlouquecido, e que o conhecimento que dizia possuir de nada valia?
9. E não matariam se pudessem (assim como haviam feito com Sócrates) quem quer que ousasse contrariá-los e dizer que havia um caminho para a luz?
10. Pois a caverna-prisão é este mundo, a fogueira são os raios solares, e ascender para fora da caverna para contemplar a luz do sol representa a ascensão da alma para as verdades metafísicas. Dentre elas, destaca-se a IDEIA DO BEM, a origem de todas as virtudes e de toda a beleza.
GRUPO: Qual seria então a ligação entre o conceito da caverna e o cinema/videogame?
RUBENS: As projeções ilusórias adquirem certo grau de realidade, pois, em última análise, mesmo o mundo em que vivemos pode ser visto como uma projeção ilusória – assim pensava Platão. Ou seja, o cinema, os games, a realidade virtual, etc., tudo isto nos leva a refletir sobre a composição do real. Não é simples definir os limites entre o que se entende como virtual ou real. No romance Dom Quixote, de Cervantes, D. Quixote vive de criar a sua própria realidade. Faz-se cavaleiro e luta heroicamente (mas também ridiculamente), contra os fantasmas que ele mesmo criou (e que também representam os fantasmas que todos nós temos que enfrentar). E, cabe lembrar, o que pode ser mais real que as guerras de videogame, que os Estados Unidos promoveram?
GRUPO: Nós queremos tratar de identidade tanto no virtual quanto no real. Você poderia nos explicar melhor, e resumidamente, como uma identidade é formada?
RUBENS: O conceito de identidade traz embutido uma série de elementos contraditórios. E esta é sua riqueza e beleza. Eis que aquilo que nos faz ser o que somos deveria ser entendido como algo que não muda: o Raphael é o Raphael – tem R.G., título de eleitor. Ou seja, só existe um. Mas o Raphael também é aquele que muda a todo o momento, levando-o a ser, num certo sentido, distinto de si mesmo. Ou seja, o Raphael - bebê já não existe mais. Somos seres mutantes; a mudança e o desejo de crescimento e aprimoramento parecem ser as leis que nos movem. Todos temos uma identidade e também múltiplas identidades, ou papéis que assumimos no decorrer de nossa existência. Isto sem contar as identidades que criamos para nós mesmos, dependendo dos contextos sociais. O “Raphael-filho” é diferente do “Raphael-tricolor”, torcedor do São Paulo, é diferente do “Raphael-romântico”, ou do “Raphael-eleitor”, “político”, etc. Os games nos permitem experimentar identidades que não existem na vida real. São vários os arquétipos que descrevem a experiência humana. Dar vida virtual a estes arquétipos não é algo novo, embora as possibilidades hoje em dia pareçam infinitamente maiores. A gente cria um nickname, entra num chat e dá vida para uma faceta de nós mesmos, que é fake e, também, real, mas que a gente regula e permite aflorar apenas em certos ambientes. Então, uma identidade se forma levando em conta o meio, a cultura na qual se está inserido, bem como as peculiaridades, ou aquelas características de personalidade que nos fazem o que somos. As diferentes mídias nos bombardeiam com ideias e valores que dão certa formatação para esta identidade. Existe uma espécie de competição para que a gente se identifique com certos grupos, certas ideias, certas práticas, certos produtos etc. Assim formam-se os movimentos culturais, as instituições religiosas, os guetos, a turma do funk, os hippies, a geração saúde e por aí vai. Estabelecer a linha que divide o virtual do real não é simples. Eu mesmo considero o universo dos bits & bites, a álgebra de Boole e os PCs modernos com mais realidade que um título de realeza. Quando a gente deixar de acreditar que a rainha é rainha, a monarquia acaba. E isto é mais fácil de acontecer do que alguém refutar a álgebra booleana.
GRUPO: Como você enxerga essa identidade no “mundo” virtual?
RUBENS: Esta pergunta terá que ser respondida pelas pessoas da geração de vocês. Eu até posso vislumbrar este futuro, mas eu não pertenço a ele. Vocês sim. O futuro será moldado pelas novas gerações. Desde a antiguidade, o homem se pintava e dançava para os deuses – representava já, ritualmente, a esta esfera que hoje cunhamos como virtual. Então, não podemos nos esquecer de que toda essa realidade virtual se dá como uma forma de um novo ritual. Os rituais nascem com a história da humanidade. Então, o que posso dizer, em suma, é que enxergo nestas identidades do mundo virtual uma nova forma que conquistamos para nos expressar e refletir. Com a esfera da nossa ação se ampliando, geram-se novos questionamentos sobre como devemos agir e nos comportar nesses novos ambientes. São muitos os modos de se abordar essa questão. No campo da educação, com o ensino à distância, o mundo virtual aparece como uma possibilidade espetacular para se revolucionar tudo o que a gente acredita e pensa saber sobre pedagogia, etc. Quem não gostaria de aprender, de forma lúdica, interativa, com uma infinidade de possibilidades de se experimentar o conhecimento? No campo empresarial e militar, o universo virtual transforma-se numa poderosa ferramenta para treinar os profissionais através de simuladores. No campo da saúde, não podemos perder de vista os debates em torno das novas patologias e formas de dependência associadas ao universo virtual.
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A hiperconectividade apresenta os seus riscos. A tecnologia é racional, mas não é neutra. Daí a importância das práticas que desenvolvem a nossa consciência e visão sintrópicas sobre a realidade, em especial, as práticas de meditação, que nos auxiliam equilibrar a relação entre os universos natural e artificial. O que todas as práticas de meditação têm em comum é precisamente o foco na atenção, que a hiperconectividade ameaça. As mídias sociais impactam a nossa atenção. Em troca pelos serviços gratuitos as mídias procuram capturar a nossa atenção, pois é assim que lucram com as propagandas. Desse modo, as companhias investigam como roubar a nossa atenção e foco, segundo a mesma lógica de qualquer vício. As mídias promovem uma forma de adicção psicológica que exige, continuamente, a nossa atenção parcial. Somos convocados a checar as nossas redes continuamente.
As distintas práticas de meditação estão diretamente relacionadas com a capacidade de promover a habilidade de focar e manter a atenção por um período prolongado. A espiritualidade depende da capacidade de manter atenção. Logo, qualquer coisa que nos distraia deste objetivo torna-se um impedimento para o desenvolvimento da nossa espiritualidade. As mídias, de modo geral, nos treinam na direção oposta ao nosso desenvolvimento espiritual. As tecnologias tendem a nos isolar das pessoas. O excesso de interações pela tela dificulta, em princípio, o desenvolvimento de relações amistosas com as pessoas à nossa volta, inibindo o nosso senso de comunidade. Toda a tecnologia relacionada com a IA tem como base os dados materiais coletados sobre nós. Deste modo, ela estabelece um sentido de individualidade baseado nos comportamentos e padrões de pensamentos de cada um de nós, conforme os expressamos nas redes sociais. Isso implica entender a consciência a partir de uma perspectiva meramente material, que pode ser controlada e manipulada. O enfoque espiritualista, diferentemente, funda-se nas práticas de meditação e no princípio de que a consciência é sintrópica e, portanto, associada a um princípio não material, ou seja, espiritual e transcendente. No caso da IA os algoritmos fazem a gestão do desenvolvimento da nossa consciência egoíca. No caso da espiritualidade, esta gestão é feita por nós mesmos, por meio de práticas sintrópicas, como a meditação.
Rio de Janeiro, 08.12.21
(Atualizado em 04.05.24)
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