2025-05-03

O Zen da Psicanálise e o Śraddhā Yoga: Entre a Sombra e a Transfiguração

Resumo

Este artigo propõe uma análise comparativa entre duas abordagens contemporâneas da espiritualidade e da subjetividade: de um lado, as vertentes mais espiritualizadas da psicanálise, aqui denominadas de forma sintética como "zen psicanálise"; de outro, o Śraddhā Yoga, fundamentado na Bhagavad Gītā e desenvolvido como disciplina sintrópica. Utilizando os mantras simbólicos "OM NAMO TANTRE" e "OM NAMO NĀRĀYAṆĀYA", investiga-se a distinção entre uma espiritualidade libidinal centrada no desejo e na sombra, e uma espiritualidade transfiguradora centrada na clareza interior e na ordem cósmica (Ṛta). O artigo dialoga com autores como Claudio Naranjo, D. Winnicott, C. G. Jung e Jacques Lacan, discutindo também os limites da psicologia transpessoal.

I. Introdução — Dois Mantras, Dois Caminhos

Vivemos uma época em que a espiritualidade tornou-se psicologizada, e a psicologia, espiritualizada. No campo da psicanálise, essa transmutação se expressa por uma vertente que poderíamos nomear, com alguma ironia e precisão, de “zen psicanálise” — uma síntese entre a escuta terapêutica do inconsciente e a aceitação mística da sombra, do desejo e da libido como fontes de sabedoria.

À luz do Śraddhā Yoga, essa vertente parece inverter o eixo da ascese tradicional. Seu “mantra” simbólico seria OM NAMO TANTRE — uma reverência ao desejo como via de liberação. Em oposição, o Śraddhā Yoga, ancorado na Bhagavad Gītā¹, propõe o mantra OM NAMO NĀRĀYAṆĀYA — invocação da ordem divina (Ṛta) e da sublimação da personalidade em direção ao Ser.

II. A Kundalinī como Imagem Simbólica: Ascendente e Descendente

A imagem da kuṇḍalinī, força vital e espiritual que reside na base da coluna, permite ilustrar as duas vias:
  • No Śraddhā Yoga, kuṇḍalinī sobe. Seu movimento é sintrópico: purifica, clareia, harmoniza, conduz ao altruísmo e à visão lúcida da realidade. É a energia da śraddhā, o amor em sua forma suprema, que une vontade, discernimento e ação.
  • Na "zen psicanálise", kuṇḍalinī desce. Seu movimento é entropicamente reconciliador: desce em direção ao instinto, ao desejo, à libido, buscando acolher a sombra, integrar o inconsciente e dissolver a tensão da moral.
Essa metáfora mostra que não se trata de negar a energia vital, mas de escolher a direção de sua transmutação.

III. Do Ṛta ao Kāma: Éticas em Conflito

O Śraddhā Yoga parte do reconhecimento da Lei Cósmica (Ṛta)². O praticante busca sintonia com uma ordem maior que transcende o ego e o desejo. A disciplina (caryā) não é repressão, mas escuta do coração, discernimento da verdade sutil (satyam), prática do bem (dharma) — e confiança (śraddhā).

Na "zen psicanálise", o eixo desloca-se para Kāma — não como hedonismo vulgar, mas como força arquetípica que conduz ao autoconhecimento. Nesse sentido, ela se aproxima do tantra libertário, onde a dissolução dos limites é vista como iluminação³. Mas ao romantizar a sombra, perde-se a aspiração vertical da alma.

IV. Claudio Naranjo e o Culto da Sombra

Entre os principais representantes dessa virada libidinal-espiritual está Claudio Naranjo. Combinando gestalterapia, eneagrama, meditação e elementos psicodélicos, Naranjo propõe um caminho de reconciliação com os afetos primitivos e o eros ferido⁴. Sua obra é valiosa — mas seu foco está em curar a ferida da alma através da aceitação do humano, e não na sublimação transcendental.

Ele mesmo reconhece isso ao afirmar que não há salvação pela via moral⁵. Essa postura encontra eco em sua crítica à espiritualidade tradicional, que ele vê como repressiva. No Śraddhā Yoga, por outro lado, a disciplina não reprime: ela afina a escuta da vontade superior que habita no coração (hṛdaya), revelando o dharma da alma.

V. Winnicott e a Ilusão Mística

Mesmo autores não explicitamente espirituais, como Donald Winnicott, vêm sendo reinterpretados sob um viés místico. A noção de "espaço transicional" — aquele entre o real e o imaginário — tornou-se o novo bardo da psique moderna⁶. Alguns veem no "falso self" uma máscara a ser dissolvida num oceano de autenticidade sem forma — o que, espiritualmente, pode se degenerar em egoísmo ritualizado.

Ao abordar as nuances na interpretação de Winnicott, é crucial reconhecer como a ideia do "espaço transicional", originalmente concebida como a área de experiência entre a realidade psíquica interna e a realidade externa compartilhada, pode ser reinterpretada como um espaço místico ilimitado de pura criatividade, negligenciando sua função essencial como ponte para o mundo real e para as relações objetais.

Mas Winnicott nunca afirmou que o verdadeiro self devesse ser divinizado. Ele via o jogo e a criatividade como pontes para o real, não como fins em si. A leitura "tântrica" de Winnicott talvez projete nele aquilo que o Śraddhā Yoga busca evitar: a confusão entre liberdade e condescendência com os próprios impulsos.

VI. Lacan, Jung e a Psicologia Transpessoal

A espiritualização de Lacan leva a paradoxos ainda mais extremos: o gozo (jouissance) torna-se uma espécie de êxtase obscuro, onde a ruptura simbólica é tratada como epifania⁷. Há terapeutas que interpretam a "falta" como sagrada, e o desejo como via de transcendência — esquecendo que o desejo lacaniano nunca se realiza, apenas circula.

Ao discutir a espiritualização de Lacan e a interpretação do jouissance como êxtase obscuro, é importante notar como essa leitura se desvia da ênfase lacaniana na estrutura da linguagem e na natureza insatisfatória do desejo. A jouissance em Lacan está intrinsecamente ligada à transgressão da ordem simbólica e à impossibilidade de satisfação plena, e interpretá-la como uma forma de êxtase espiritual ignora a centralidade da castração simbólica, pilar estrutural de sua teoria.

No Jung pós-junguiano, o Self é tratado como arquétipo do divino interior, mas sem uma ancoragem real em valores de transcendência⁸. A "integração da sombra" torna-se o novo sacramento, mesmo que ela apenas reforce as paixões da alma.

A psicologia transpessoal, por sua vez, tenta sintetizar tudo isso com mística oriental — mas frequentemente o faz ignorando a exigência ascética que está no cerne do verdadeiro yoga⁹. Em nome da expansão da consciência, abre-se mão do discernimento.

VII. Śraddhā Yoga como Anti-Psicanálise

Diante desse cenário, o Śraddhā Yoga aparece não como negação da psicologia profunda, mas como sua superação ritualística e filosófica. Ele não é repressivo nem permissivo — é transfigurador.

Onde a psicanálise zen diz: “aceite sua sombra”, o Śraddhā Yoga responde: “transfigure-a com amor lúcido”. Onde a psicologia transpessoal busca dissolver o ego, o Śraddhā Yoga busca orientar o eu em direção ao Eu superior (Ātman).

O mantra OM NAMO NĀRĀYAṆĀYA expressa esse chamado: abandonar os dharmas do ego para ouvir a voz do dharma eterno. O mantra fictício OM NAMO TANTRE representa o elogio do desejo enquanto energia totalizante.

VIII. Conclusão — A Escolha Ético-Espiritual

Ambas as vias têm sua legitimidade, mas não são conciliáveis. A diferença não é de método, mas de ontologia: uma acredita que há uma ordem superior à psique; a outra, que tudo está contido no desejo e na sombra. Uma aspira à transumanização sintrópica; a outra, à aceitação radical da condição humana.

Não se trata de juízo moral, mas de escolha metafísica. Como ensina a Bhagavad Gītā, há um momento em que o guerreiro precisa decidir qual caminho seguir. E isso define tudo.
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¹ Feuerstein, G., & Feuerstein, B. (2011). O Bhagavad Gītā: Uma nova tradução. (M. B. Cipolla, Trad.). São Paulo: Editora Pensamento..
² Radhakrishnan, S. (1948). The Bhagavadgītā: With an introductory essay, Sanskrit text, English translation, and notes. London: George Allen & Unwin.
³ Eliade, M. (1958). Yoga: Immortality and Freedom. Princeton University Press.
⁴ Naranjo, C. (1994). The Healing Journey: New Approaches to Consciousness. Ten Speed Press.
⁵ Naranjo, C. (2000). Character and Neurosis: An Integrative View. Gateways Books & Tapes.
⁶ Winnicott, D. W. (1971). Playing and Reality. London: Tavistock Publications.
⁷ Lacan, J. (1973). The Four Fundamental Concepts of Psychoanalysis. New York: W.W. Norton & Company.
⁸ Jung, C. G. (1959). Aion: Researches into the Phenomenology of the Self. Princeton University Press.
⁹ Grof, S. (1985). Beyond the Brain: Birth, Death and Transcendence in Psychotherapy. SUNY Press.


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