2017-03-14

A Revolução do Altruísmo: a consciência sintrópica como base da teoria social anunciada na Gītā

Psicopolítica e teoria social
Neste ensaio meu ponto de partida é o Mahābhārata1, que pode ser compreendido como um grande jogo de xadrez político entre dois dos maiores estrategistas políticos da história da humanidade: Krishna, o príncipe negro que promove a revolução do altruísmo e movimenta as peças do lado dos virtuosos Pāṇḍavas; e Shakuni, o mestre da trapaça, que movimenta as peças com igual maestria do lado dos corruptos Kauravas. Em especial, me detenho no capítulo do Mahābhārata intitulado como Śrīmad Bhagavad Gītā, ou simplesmente, Bhagavad Gītā, que é onde Krishna transmite a Arjuna a estratégia e a tática da práxis sintrópica (Naiṣkarmya), representada pela precedência dos anseios superiores (Śreyas) do sagrado coração sobre aqueles de natureza passional e inferior (Preyas) da mente emocional. 

Psicopolítica e Teoria Social
Hoje parece haver consenso no mundo de que o objetivo real por detrás de todas as lutas e guerras é o controle e a hegemonia, não sobre as tropas sob o comando inimigo, mas sobre as mentes dos comandantes. A própria UNESCO reconhece “o fracasso das tentativas de controlar a agressividade e a imoralidade dos indivíduos e dos grupos pelos meios tradicionais” e por isto sugere uma abordagem que até pouco era estranha à cultura ocidental, ou seja, de que “uma vez que as guerras se iniciam nas mentes dos homens, é nas mentes dos homens que devem ser construídas as defesas da paz”. Trata-se, portanto, de compreender o movimento contínuo entre o sociopolítico e o psicológico, entre as realidades internas e externas ao sujeito, pois toda experiência humana é sempre a combinação do psíquico e do político.  “Vença o inimigo e você será um vencedor; vença a si mesmo e você se tornará invencível”, afirma o ditado popular.

Na Bhagavad Gītā a emancipação do sujeito é construída por meio da práxis sintrópica (naiṣkarmya). O concreto que organiza o social (varṇāśrama dharma) apresenta-se também como possibilidade de realização da essência do sagrado (śuddha dharma). Krishna trata no segundo capítulo da Bhagavad Gītā da relação dialética do “universo interior” (dharma-kṣetra) com o “universo exterior” (Kuru-kṣetra).  De acordo com a Bhagavad Gītā, a percepção dicotômica da realidade em pares de opostos é consequência de uma mente ainda indisciplinada e presa a um funcionamento não sintrópico, de base materialista e egoísta, definido tecnicamente como funcionamento guṇa-para (orientado pelas “aparências”). O verso 67 do segundo capítulo (BhG 2.67) expressa esse funcionamento condicionado à ordem do profano (varṇāśrama dharma) afirmando: “a mente que se deixa influenciar pelos sentidos é como um barco sem rumo, ao sabor dos ventos”. Superar estes estados mentais de sujeição, entretanto, não implica em uma fuga da ordem profana (varṇāśrama dharma), conforme pretende Arjuna neste momento. Pelo contrário, conforme explica Krishna no mesmo capítulo (BhG 2.58), implica no desenvolvimento de uma consciência sintrópica: “assim como uma tartaruga recolhe todos os seus membros para baixo do casco, assim também o aspirante é capaz de recolher os seus sentidos para dentro de seu coração, livre da escravidão imposta pelos estímulos da realidade externa.” Este processo de interiorização dá origem ao funcionamento sintrópico (ātma-para), ou seja, “orientado pelo sagrado altruísmo do Espírito”. O diálogo da Bhagavad Gītā representa esse limiar que torna mais tênues as zonas delimitadas por Arjuna como as suas realidades “interna” e “externa”.  Eis aí o seu mistério iniciático na ciência da meditação. Enquanto o ser funciona a partir de sua base material e egóica (funcionamento guṇa-para) a sua atividade se dá de forma não sintrópica. Entretanto, quando passa a funcionar de forma sintrópica (funcionamento ātma-para), orientado pela luz do Espírito, entra para a esfera onde a vida toda se apresenta como sagrada.

A práxis sintrópica demanda um fundamento epistemológico, não dualista, fundado na coragem hercúlea do herói épico de não se opor à sua mônada psíquica, o fundamento do ser humano. A ação sintrópica, portanto, deve ser compreendida a partir desta capacidade de escuta da mônada psíquica, a consciência sintrópica, sempre em busca da harmonia dos contrários e das contradições de todo o tecido social. E a questão que surge, então, relaciona-se com a nossa dificuldade para fazer emergir este cerne biológico profundo do indivíduo, uma vez que ele é ofuscado pelo nível superficial da cooperação social. O desafio passa a ser o desenvolvimento da habilidade sintrópica, independentemente do ponto onde nos encontramos na estrutura social, pois nenhuma mudança depende exclusivamente da esfera pública. Toda e qualquer ação emancipadora ocorre, necessariamente, a partir de uma mudança de estados mentais. A resiliência surge como a sua condição sine qua non, uma vez que a ação sintrópica é dependente deste vigor que se funda na faculdade da vontade e dos sentimentos.

Na Bhagavad Gītā, Krishna pede a Arjuna que medite e avalie os seus estados mentais para que a sua ação emancipatória se dê, como de fato sempre há de ser, a partir do lugar que se esteja ocupando na estrutura, e não de qualquer outro. Daí decorre que a Bhagavad Gītā possa ser entendida tanto como uma meditação que liberta Arjuna dos seus estados mentais de servidão, como um tratado filosófico sobre a práxis sintrópica. Diferentemente da experiência marxista do ocidente, fundada na luta de classes e no anseio de tomar o lugar do outro, no contexto da Bhagavad Gītā, nada é mais nobre que tomar o assento do Ser, de forma altruísta, a partir do seu próprio lugar. Por isto, Krishna discorre na Bhagavad Gītā sobre os dois aspectos da ação humana, entendidos até então no contexto do pensamento védico como mutuamente exclusivos: pravṛtti (movimento entrópico, de exteriorização, ou de ação concreta na realidade objetiva) e nivṛtti (movimento sintrópico, de interiorização, decorrente do entendimento do altruísmo e, consequentemente, do controle de todo o processo de formação da vontade). Pravṛtti e nivṛtti compõem, desta forma, na Bhagavad Gītā os eixos entrópico e sintrópico da mesma ação altruísta em que se funda a práxis sintrópica do sujeito.

O processo de síntese dialética entre pravṛtti e nivṛtti proposto por Krishna a Arjuna pode ser ilustrado, por exemplo, a partir da filosofia da ação de Gandhi, fundada em torno dos conceitos de satyāgragha (o vigor do amor e da verdade em ação) e sarvodaya (crescimento e bem-estar de todos). A base epistemológica da filosofia da ação política de Gandhi, bem como a sua heurística, somente pode ser compreendidas por meio do entendimento do papel do par pravṛtti e nivṛtti no contexto da ação altruísta proposta por Krishna a partir do controle de todo o processo de formação da vontade. Krishna explica a Arjuna no paradigmático verso 18.66 da Bhagavad Gītā (que trata da dedicação de si mesmo à escuta da Consciência Sintrópica e atendimento esta manifestação da Vontade Suprema) como empreender, na práxis, a ação, verdadeiramente, emancipatória.  Esta prática fervorosa, que pressupõe a renúncia (samnyāsa) ao fruto das ações e o desligamento de todas as coisas que impedem a consagração de si mesmo à realização da Vontade Suprema, representada na escuta da Mônada Psíquica, tem sido expressa ao longo dos séculos dos mais variados modos pelas distintas religiões e sistemas de filosofia.

Psicopolítica e Teoria Social
Embora a discussão sobre a essência do sagrado permeie os mais diversos sistemas sectários da Índia – tanto ortodoxos (Vedanta, Shivaísmo, Samkhya, Yoga, etc.) como heterodoxos (Tantra, Budismo, Jainismo, etc.) –, ela não pode ser reduzida a nenhum deles. Esta não se deixa capturar por palavras e sistemas, simbolizando, na Bhagavad Gītā, a experiência única de Arjuna, decorrente do seu estado de espírito, no momento que antecede a grande batalha da qual tomará parte. Arjuna encontra-se além do estágio da pessoa religiosa comum. Ele alcança, por meio da meditação em seu coração, conforme descreve todo o capítulo 11 da Bhagavad Gītā, a visão sintrópica da realidade, que lhe confere um tipo de certeza e experiência com o sagrado, objeto de todo o capítulo 17.  Enquanto os diversos sistemas religiosos definem conteúdos para a fé, a Bhagavad Gītā despe a fé de todas as suas vestimentas culturais externas e promove a sua reconciliação com a razão, redefinindo-a, então, como convicção interior e fervor do coração, ou śraddhā, o fruto do contato com a essência do real. Na Bhagavad Gītā, o termo sânscrito “śraddhā” denota, portanto, o sentimento sintrópico que promove a superação da vontade e da mera fé religiosa, esta entendida como um estado de espera pelo encontro com as verdades últimas e o sagrado revelado nas Escrituras. Marca característica daqueles que já experimentam daquilo que antes era somente objeto de fé, śraddhā representa não a espera, mas o estado de encontro, ou contemplação do real, de onde se origina a certeza interior.

O estado de Arjuna no momento inicial do diálogo da Bhagavad Gītā expressa a crise da própria cultura onde ele está inserido. No início da Bhagavad Gītā a fé de Arjuna nas Escrituras Védicas representa ainda um estado dogmático, não sintrópico e paralisante, que lhe deixa confuso e o impede de se reconciliar com a sua própria razão. Ao longo do seu diálogo com Krishna, que representa, na verdade, uma forma da consciência sintrópica expressar o seu modo de ser (nivṛtti) e estar (pravṛtti) no mundo, Arjuna experimenta do sentimento que se origina da contemplação do sagrado em seu coração e vê a sua razão se iluminar, transformando a sua fé exterior nas Escrituras em certeza interior, ou śraddhā.  

O capítulo inicial apresenta uma exposição e defesa, por parte de Arjuna, de um entendimento ortodoxo das Escrituras Sagradas. O capítulo seguinte introduz a formulação e o entendimento de Krishna sobre a essência mesma, tanto destas Escrituras, como da própria ideia de sagrado (dharma), harmonizando e conciliando distintos pontos de vista antagônicos.  A Grande Síntese apresentada por Krishna neste capítulo será, então, expandida e analisada nos demais capítulos, em conformidade com o desenvolvimento das dúvidas e questionamentos apresentados por Arjuna.  

Não sem razão, a Bhagavad Gītā é o texto da literatura sagrada da Índia que mais tem sido objeto de admiração e de espanto. Para muitos, representa o texto cuja autoridade costuma-se invocar nas disputas sectárias, em defesa das mais excêntricas e ingênuas crenças. Para outros, no entanto, representa um precioso tratado filosófico, e nos possibilita, inclusive, compreender toda a vasta gama de questões e disputas filosóficas originadas dentro do pensamento indiano. Neste sentido, pode-se, por exemplo, argumentar que todos os sistemas do pensamento indiano, incluindo-se aí o budismo e o vedanta, derivam de textos produzidos a partir de discussões que nada mais representam a não ser notas de rodapé às grandes questões dramatizadas na Bhagavad Gītā. Embora tenha sido apropriada pela classe sacerdotal, a Bhagavad Gītā, em si mesma, não é um texto sectário, nem meramente religioso. Krishna, o representante do sagrado, não é um sacerdote. É um guerreiro de uma natureza muito particular.  Além disto, no contexto da Bhagavad Gītā, a classe sacerdotal é retratada com um papel  instrumental e acessório, jamais essencial. Vale dizer, a Bhagavad Gītā representa uma proposta de emancipação, tanto da influência da classe sacerdotal, como de todos os estados mentais de servidão. Em todo o Mahābhārata a classe sacerdotal é reconhecida como importante na educação e formação dos jovens, bem como na realização dos rituais socialmente estabelecidos. Contudo, não cabe, necessariamente, somente a ela o papel emancipatório que nos aproxima da consciência sintrópica e, consequentemente, da práxis sintrópica. As religiões e os sacerdotes ocupam-se da fé nas Escrituras, enquanto a Bhagavad Gītā ocupa-se do sentimento sintrópico, ou fervor do coração, que está na origem de todas as religiões e que, em sânscrito, se traduz como śraddhā.

Em suma, o conselho de Krishna é para que Arjuna cultive a práxis sintrópica, sem se permitir, jamais se afastar dela. Deste modo, mesmo atuando no plano do concreto da realidade objetiva de uma guerra (isto é, em Kuru-kṣetra), não estará se afastando do plano da sabedoria e dos valores do campo ético e espiritual (Dharma-kṣetra).  Este é o sentido em que Krishna pede a Arjuna para que este cumpra de forma altruísta todos os seus deveres. Em geral, não nos damos conta de que a vida é constituída de pequenas decisões que nos emancipam dos estados mentais de servidão e nos permitem desenvolver a capacidade de assumir, integralmente, para o bem e para o mal, as consequências de todas as nossas ações. Encher-se de śraddhā, tal como se deu com Arjuna, implica em uma mudança da sua visão de mundo. Significa nutrir o sentimento sintrópico que nos move do funcionamento "guṇa-para" para "ātma-para", ou seja, do funcionamento entrópico da realidade material para o funcionamento sintrópico da realidade espiritual. Śraddhā transcende a fé (latim: “fides”; grego: “pistis” – crença), pois não se opõe ao bom senso e à razão. Ela representa a marca característica daqueles que já experimentam da visão e da consciência sintrópicas, que antes eram mero objetos de fé e devoção religiosa. 

(1) Para conhecer a pronúncia das palavras sânscritas veja o nosso resumo do Guia de Transliteração e Pronúncia das palavras sânscritas.

SUMÁRIO GERAL: A Arte e a Ciência da Meditação segundo a Bhagavad Gītā
Próximo texto: Mahābhārata: a filosofia sintrópica na práxis
Rio de Janeiro, 14 de março de 2017.
(Atualizado em 08.01.24)

Nenhum comentário:

Postar um comentário