2017-04-07

Razão e Sentimento (I): Milo e D. Celina

O que surge primeiro, o sentimento, ou o pensamento? A experiência pessoal e subjetiva que pretendo compartilhar neste artigo só fará sentido ao leitor que, como eu, parte do princípio que o sentimento tem precedência sobre o pensamento e até mesmo gera o pensamento. Se me aflora um pensamento é porque em um nível menos consciente eu senti algo. A sede das emoções (ou paixões) e dos sentimentos parece ficar em um espaço mais sutil da mente, ao qual gosto de me referir, metaforicamente, como o coração. Deste coração vem a força criativa que aciona o pensamento. Ou seja, toda a ação é motivada por uma emoção ou por um sentimento que, após aflorar e ser experimentado, fica registrado na mente.

Krishna e Arjuna na Gītā
Como diferenciar as emoções dos sentimentos? Podemos afirmar que os sentimentos são interiores, vem primeiro, e que eles se exteriorizam sob a forma das emoções. Ou seja, os sentimentos não são perceptíveis pelos sentidos. O que é perceptível são as emoções. Mas este é um tema sobre o qual não há consenso. Em geral, costuma-se definir a emoção como o estado afetivo intenso que se expressa sob a forma de uma reação visceral, quase instintiva, a algum estímulo interno ou externo. A emoção é visceral e egoica. Já o sentimento parece revestido de elementos espirituais mais nobres. Envolvem o entendimento e a compreensão, mesmo quando estes sejam desagradáveis.  Diversos sistemas de pensamento da Índia antiga já dominavam esse conhecimento. Na Bhagavad Gītā, por exemplo, Krishna se vale do Śuddha Yoga para remover Arjuna do seu paralisante estado de tristeza e falta de confiança e coragem, que o desconecta da luz dos sentimentos superiores, que se irradia do seu próprio coração. Krishna trata da ciência do amor e desperta o amor devocional de Arjuna como forma de fazê-lo superar os sentimentos desagradáveis que o paralisam. Quando surge em Arjuna a verdadeira compreensão, ele alcança um estado de graça, fruto do sentimento superior que na Bhagavad Gītā se denomina "śraddhā" – o compassivo sentimento sintrópico, que define a Filosofia Sintrópica e a sua práxis – e que o liberta do seu estado paralisante. Conforme explica a Bhagavad Gītā, quando um sentimento se exterioriza sob a forma de  emoções como a paixão, a mágoa, o rancor e o ódio, o resultado é a perda do discernimento espiritual e, consequentemente, a autodestruição.  As emoções distorcem a realidade, enquanto os sentimentos superiores nos auxiliam a superar os obstáculos e avançar no caminho de convergência assimptótica para a Consciência de Si.

D. Celina, na varanda de sua casa no Canindé
Feito este preâmbulo, passo agora a descrever o sentimento que me levou a produzir este texto. Na semana passada estive em São Paulo para alguns exames de rotina e decidi ficar por lá durante o final de semana, pois teria consulta no ICESP na segunda-feira (03.04.17), bem cedo, às 7h.  Na sexta-feira (31.03), após ter realizado o exame de ressonância magnética da face, pensei que, enquanto cuidava da minha “Haṃsa Tattoo”, poderia também visitar alguns familiares e, quem sabe, até mesmo revisitar um pouco da minha história interior. Foi o que fiz. No domingo, logo após o almoço, fui para o Canindé do Milo e da D. Celina. Quarenta e cinco anos haviam se passado e não conseguiria dizer o quanto esta visita significou para mim, ainda que a D. Celina não morasse mais lá e que eu não pudesse mais reconhecer todas aquelas faces que haviam moldado a minha infância no número 31 da antiga rua B. O Milo agora mora sozinho no número 29. D. Celina mudara-se, há três meses, para um pequeno sítio, na beira do rio São Francisco, na Bahia, com o filho Zezinho. Mudara-se logo após completar noventa anos, quando reunira todos os onze filhos e os muitos netos e bisnetos.

Milo, Zezinho, Rogerio e Davi
Ficamos, então, Milo e eu, a tarde toda atualizando o sagrado daquela atmosfera de um tempo que não existe mais.  Foi um verdadeiro reencontro experimentado no aqui e agora do presente, sem aquele sentimento nostálgico de “Those were the days” que costuma acometer as pessoas que envelhecem saudosistas de um passado impossível de se resgatar.  Tinha na memória a indescritível felicidade que sentia quando era criança, ainda que nem sempre existisse razão para isso. Conforme discuto em Sorriso Interior: a Bhagavad Gītā e os germens da transcendência, já tive oportunidade de refletir sobre esse estado de graça e cheguei, inclusive, a reproduzir trechos desta minha única experiência com uma obra ficcional, intitulada Síndrome do Pânico: Aprendendo com a pedagogia da dor (Ed. Litteris: 1998). Dedicara todo o capítulo 3 do livro para descrever este mesmo estado em que vemos o mundo com os olhos emprestados de Deus. Milo e eu procuramos resgatar isso durante as horas que passamos juntos neste domingo. Estávamos, na verdade, a repassar aquela história real que fica inscrita para sempre no âmago do Ser, totalmente subjetiva, embora a tivéssemos vivido também de forma objetiva.

Rio de Janeiro, 07 de abril de 2017.
(Atualizado em 11.01.24)

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