2019-12-31

A meditação como a disciplina sintrópica do ardor do coração (śraddhā)

Neste artigo de abertura do presente capítulo apresento um pouco da história e dos fundamentos teóricos e práticos da cultura sintrópica, que norteou a criação e o desenvolvimento da (anti) disciplina A Arte e a Ciência da Meditação segundo a Bhagavad Gītā. Meditar significa desenvolver o amoroso sentimento sintrópico (śraddhā) de identidade com o triuno praṇava OṂ (AUM), conforme expresso pelos principais aforismos (mahāvākyas) da literatura védica, em especial, os seguintes, que constam da Chāndogya Upaniṣad: “sarvaṃ khalv-idaṃ brahma” – "Tudo isto é o Ser" (ChU 3.14.1) e “Tat tvam asi ” – “Tu próprio és o Ser" (ChU 6.8.7). A palavra "praṇava" é um nome para o som AUM. Significa, etimologicamente, “aquilo que renova, faz novo”. Também significa  “controlador e dispensador do alento vital (prāṇa)”. Segundo outra etimologia (Yoga Sūtra I.29), o termo “praṇava” deriva de “pra” (antes, adiante) e “nava” (som, grito primal de exaltação) e designa o som primordial que reverbera dentro do sagrado recôndito do nosso coração e dos canais nervosos do nosso corpo. O Praṇava corresponde à respiração da criação cósmica e representa a voz (va) do prāṇa. O som onomatopéico OṂ é cheio de significado. Representa o ruído de fundo do universo em expansão, o som primordial da natureza e o seu próprio alento vital. AUM expressa esta verdade sagrada, tendo cada uma de suas letras um significado oriundo do método conhecido como akṣaramudrā, ou diagrama de selo de letras. Ambos aforismos exprimem o significado das metáforas e mantras que compõem a espinha dorsal, tanto deste livro-blog, como da nossa disciplina sobre a arte e a ciência da meditação: (1) a metáfora dos dois pássaros; (2) a metáfora do cisne; (3) a metáfora da quadriga; (4) o mantra AUM (OM); (5) o mantra Haṃsa; e (6) o mantra OM NAMO NĀRĀYAṆĀYA.

Conforme o livro-blog ilustra, em poucas palavras, meditar é haurir śraddhā. E o que é śraddhā? Śraddhā pode ser entendida como a expressão, tanto subjetiva como objetiva, do nosso potencial sintrópico, ou seja, da nossa capacidade de síntese, ou de convergir para a unidade (Brahmasāmīpya). Este poder de convergência sintrópica (Brahma-sāmīpya) orientou, em parte, os ideais de Paz & Amor da contracultura dos anos sessenta (no Brasil e no mundo), divulgados em eventos experimentais como as da "anti-universidade" de Londres (veja aqui), onde, em 1968, Yoko Ono ofereceu um curso de curta duração chamado Getting Together, para as pessoas diagnosticarem os seus reais interesses e propósitos de vida. A nossa (anti) disciplina, contudo, não se encaixa neste formato anárquico, contracultural e entrópico. Pelo contrário, ela compreende um campo de estudos transdisciplinares, mas com uma base e linguagem sintrópicas bem definidas, conforme ilustram os artigos deste e dos demais capítulos. E é por isto que ela foi estruturada como um livro-blog e não como um simples manual, ou livro-texto.  A disciplina como um todo foi pensada a partir da experiência sintrópica de  Bhāvana Namaḥ, o amor universal em ação. Bhāvana Namaḥ expressa o esforço consciente de convergência para o Ser (Brahma-sāmīpya), representado pela nossa rendição (Namaḥ) à percepção da  unidade sagrada (Bhāvana) da vida, do tempo, do espaço e de todas as coisas aí contidas. 

A meditação como expressão da relação dialética de identidade e de diferença do Ser

Bhagavad Gītā pode ser compreendida como a mais perfeita representação da meditação (dhyāna; termo derivado das raizes verbais "dhī" – refletir – e "dhyai" – contemplar, imaginar) sobre o Ser e a sua  relação dialética de identidade e de diferença com o não-Ser. Na Bhagavad Gītā, meditação significa, em resumo, a contemplação do fluxo contínuo de vida que surge do praṇava AUM. Isso significa que a meditação ocorre em três níveis: Saguṇa Dhyāna (meditação concreta; associada à letra "U", que representa o não-Ser); Nirguṇa Dhyāna (meditação abstrata, associada à letra "A", que representa o Ser); e Brahma Dhyāna (meditação transcendental, associada à letra “M”, que representa a relação transcendental de negação e identidade do Ser e do não-Ser). Saguṇa Dhyāna leva à contemplação da verdadeira natureza de todas as ciências; Nirguṇa Dhyāna, à contemplação da verdadeira natureza da espiritualidade; e Brahma Dhyāna, à sua relação orgânica, imanente e transcendente, de negação e identidade. A meditação, portanto, está relacionada, exclusivamente, à mente. O objetivo principal das práticas de meditação é trazer à nossa mente o amoroso sentimento sintrópico (Bhāvana) que nos conduz do saṁsāra ao nirvāṇa, na exata medida em que aprofundamos o nosso entendimento de Ṛta, a lei universal que rege os processos entrópicos da realidade material e inorgânica e os processos sintrópicos da realidade espiritual e orgânica.

A universal e unificadora arte e ciência da meditação, estabelecida na Bhagavad Gītā, possibilita-nos compreender o significado simbólico da sílaba sagrada  (OṂ) AUM. O seu texto nos auxilia a contemplar as nuances do mundo interior e exterior e, consequentemente, a perceber que a ciência e a espiritualidade estão irredutivelmente interligadas. Um exame cuidadoso das perguntas de Arjuna no texto da Bhagavad Gītā nos fornece as informações sobre o que é a meditação e como ela deriva da unidade do triplo praṇava OṂ (AUM). Quando pergunto “quem é esse eu?” e também “quem é a testemunha dos meus pensamentos?”, reconheço a natureza fenomenológica, dual e contraditória, que caracteriza os movimentos de rotação da consciência do não-Ser em torno do eixo imóvel da consciência do Ser.  Podemos explicar a arte e  a ciência da meditação reveladas na Bhagavad Gītā a partir da trindade do praṇava AUM, observando como o universo infinito (saṃsāra) se origina e está dentro de Brahman.  A interação entre o Ser (“A”) e o não-Ser (“U”) dá origem aos múltiplos seres (Jīvas) e suas diferentes tríades de atributos relacionados à psicologia da cognição, desejo e ação.  O termo "Jīva" traduz-se como "pessoa", mas significa também tudo o que tem vida, qualquer ser  individual, ou " parte separada", por assim dizer, do Ser Absoluto. Metaforicamente, indica a presença na matéria daquela fagulha, daquele raio de sol, que organiza o mineral, anima o vegetal, manifesta-se como instinto animal e forma a razão humana. Está implícito no AUM a ideia nuclear de que todos os seres são à sua imagem e semelhança e que śraddhā é o terceiro constituinte (M), que compõe toda pessoa (Jīva), a partir da relação dialética entre a consciência espiritual e coletiva de Ser (A) e a consciência individual e de corpo de não-Ser (U), conforme sugerem as três metáforas principais sobre a arte e a ciência da meditação, exploradas ao longo do livro-blog e da nossa disciplina. O sentimento sintrópico e imediato (pratyakṣa) das leis universais, que regem o universo, surge na mente (citta) equilibrada (nirodha) cujas perturbações (vṛtti) foram serenadas pela meditação sobre a imanência e a transcendência do Ser. O sábio é aquele que sempre alcança a síntese (anukalpa) entre qualquer tese (saṅkalpa) e a sua antítese (vikalpa); pois ele sabe que todas as experiências levam ao entendimento de que o mundo oculta e revela a sua relação de identidade e de negação com o Ser.

Um pouco da história do meu envolvimento pessoal com as práticas de meditação

Conforme descrevo mais detalhadamente ao longo dos próximos capítulos, não havia ainda completado dezoito anos quando fui iniciado por Sri Vajera, o introdutor do Śuddha Yoga na América Latina, nos idos de 1920, na arte e na ciência da meditação. Em 1972 assisti o filme Siddhartha, baseado no romance de Herman Hesse, que me abriu as portas para o neo-Vedānta e, em 1974, para o encontro com Sri Vajera. Anos mais tarde, já casado com Cássia, tive a oportunidade de viver quatro anos de imersão profunda no inovador e arrojado projeto de meditação e vivência comunitária, no seio do antigo Ashram Ātma, que mais tarde daria origem à instituição Grande Síntese. Foi ao final daqueles quatro anos (jan/1987- dez/90) que nasceu a ideia de dar forma acadêmica ao experimento de fazer de toda ação uma oportunidade de meditação – a meditação na ação, com atenção plena ao instante presente (tal como sugerido na consagrada fórmula da Meditação Minuto). Cheguei à McMaster University em janeiro de 2001 com esse projeto em mente. Lá, apesar das dificuldades, pude desenvolver a tese (veja aqui) que orienta este estudo e que resultou na criação, no início de 2019, da (anti) disciplina eletiva A Arte e a Ciência da Meditação segundo a Bhagavad Gītā, agora oferecida, em cursos de graduação e de pós graduação, pelo Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza (CCMN) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

A apresentação formal do primeiro esboço das reflexões, que resultaram na criação da presente disciplina, aconteceu durante o segundo ano do meu pós-doutorado (2008-11) na Faculdade de Administração e Ciências Contábeis (FACC) da UFRJ, no Mini Simpósio Ciência e Espiritualidade, em 15 de maio de 2009. Alguns meses mais tarde, durante o Scientiarum Historia II – Encontro Luso-Brasileiro de História das Ciências – UFRJ / HCTE & Universidade de Aveiro, ocorrido de 28 a 30 de outubro de 2009 na UFRJ, apresentei estes mesmos resultados sob a forma de uma pequena “Comunicação” (veja aqui o texto e o painel). Aquelas reflexões resistiram ao exame do tempo e deram forma ao artigo "Śraddhā in the Bhagavad Gītā: an investigation on the primeval expressions of the contemporary paradigm on heart-philosophy" (veja aqui), de 2015, que propõe a discussão em torno de um novo paradigma científico, capaz de preencher a lacuna entre os campos da ciência natural e da filosofia moral. O artigo mostra que a discussão sobre a centralidade de śraddhā na Bhagavad Gītā revela as bases para o fornecimento de respostas aos problemas éticos desta interface entre a ciência e a espiritualidade. Conforme discutira em 2007 (veja aqui), na Bhagavad Gītā śraddhā está vinculada à espiritualidade pura, à meditação e à noção de verdade. A capacidade de reconhecer a verdade e as leis da natureza vem de śraddhā. Śraddhā expressa o poder de superar os obstáculos da vida, bem como a perfeita alegria de alcançar a verdade na ciência e nos demais campos do conhecimento. Há uma passagem do Yogasūtra de Patañjali que também sugere a centralidade do conceito de śraddhā para entender e acessar a verdade. Ao comentar o sūtra I.20, onde o termo ocorre, Vyāsa diz: “samādhi é precedido por śraddhā”. E acrescenta, “śraddhā é a firme convicção e certeza”. A discussão do texto de Patañjali aponta para as mesmas questões abordadas ao longo do texto: (1) como śraddhā está relacionada à experiência concreta pela qual o objeto é conhecido; e (2) como a meditação descrita na Bhagavad Gītā promove a aproximação entre os campos da ciência e da espiritualidade pura.

Foi com o objetivo de levar adiante este ideal de aproximação entre as esferas da ciência e da espiritualidade, que nos reunimos com alguns representantes da Grande Síntese, de três a cinco de fevereiro de 2012, na sede do nosso Grupo de Estudos, no Rio de Janeiro (veja aqui), para refletir sobre os pilares fundamentais de uma nova estrutura acadêmica, que tivesse por fim a unificação entre a ciência e a espiritualidade – a Universidade do Coração. O próximo artigo desta série, "Bhāvana Namaḥ: a amorização universal"  ilustra este nosso processo já em marcha há alguns anos. De igual modo, muitas iniciativas semelhantes têm se desenvolvido ao longo dos últimos anos, com as práticas de meditação passando a fazer parte, não mais da rotina exclusiva de uma seleta comunidade espiritualista, mas da vida urbana das grandes cidades.

SUMÁRIO GERAL: A Arte e a Ciência da Meditação segundo a Bhagavad Gītā
Próximo texto: A Bhagavad Gītā como Metáfora da Arte e da Ciência da Meditação

Rubens Turci
Rio de Janeiro, 31 de dezembro de 2019.
(Primeira atualização em 01.01.2020)
(Última atualização em 28.04.23)

Nenhum comentário:

Postar um comentário