2017-09-07

A Bhagavad Gītā como o Modelo Pedagógico da Ciência da Meditação

“Há dois pássaros, dois bons amigos, que habitam a mesma árvore do Ser.
Um se alimenta dos frutos desta árvore; o outro apenas observa em silêncio.”
(Ṛigveda 1.164.20 e Muṇḍaka Upaniṣad 3.3.1)
O discurso de Krishna na Bhagavad Gītā contém, desenvolvidas de forma assistemática e respeitando a psicologia e o estado de confusão e dúvida de Arjuna, a Arte e a Ciência da Meditação, simbolizadas na metáfora dos dois pássaros, descrita no Ṛigveda (1.164.20): 
Dois pássaros com belas asas, companheiros inseparáveis, encontraram refúgio e abrigo na mesma árvore. Um deles se alimenta dos doces frutos da figueira; o outro, sem se alimentar, apenas observa... 
As práticas de meditação desenvolvem-se a partir desta metáfora do "pássaro testemunha" (veja aqui um vídeo ilustrativo  do vedanta). A árvore representa o nosso corpo, enquanto os dois pássaros, referem-se à nossa dupla natureza, material e espiritual: de um lado, temos a materialidade da mente emocional, racional e lógica, que constitui o nosso consciente, subconsciente e inconsciente (Jīva); de outro, a imaterialidade da consciência universal (Ātman) que anima o corpo, representada pelo coração espiritual. De um lado, inconstante, imperfeito e finito, o ser corpóreo (natureza humana) permanece em movimento, experimentando de todas as coisas. De outro lado, contudo, estático, perfeito e infinito, o Ser (nossa natureza sagrada; Espírito de Deus em nós) apenas observa e aguarda pelo reencontro – é a este processo dialógico de descoberta e unificação da alma (Jīva, o ser) com o Espírito (Ātman, o Ser) que se chama de meditação. 

Representação de Krishna e Arjuna na quadriga (metaforicamente, o corpo humano), instantes antes do início da batalha na qual apenas Arjuna toma parte como guerreiro.
Representação de Krishna e Arjuna na quadriga (metaforicamente, o corpo humano),
instantes antes do início da batalha na qual apenas Arjuna toma parte como guerreiro.
Na Bhagavad Gītā, Arjuna e Krishna compartilham da mesma quadriga, simbolizando o mesmo que estes dois pássaros. Além disto, o diálogo de Krishna com Arjuna em torno do tema da meditação também representa, a um só tempo, a possibilidade de transcender e de conciliar as distintas tradições indianas fundadas na sucessão ininterrupta da transmissão do conhecimento de forma oral, de mestre a discípulo, conhecida como guru śiṣya paramparā, presentes tanto no seio do hinduísmo, como do budismo e jainismo. “Paramparā” denota “sucessão ininterrupta”, no caso, de “mestre” (guru) a “discípulo” (śiṣya), desta arte da contemplação da realidade sagrada, fundada, em especial, na ciência da meditação. Krishna, contudo, não pertenceu a nenhuma linhagem de gurus, nem recebeu de forma sucessória o conhecimento que transmite a Arjuna. E este não se torna o detentor exclusivo do conhecimento (jñāna) que lhe foi transmitido por Krishna, uma vez que o mesmo foi tornado público a partir da reportagem feita por Sañjaya ao rei Dhṛtarāṣṭra. Arjuna não se apresenta, portanto, como o guru de uma nova tradição, iniciada a partir do conhecimento oral recebido de Krishna. Logo, a mensagem de Krishna traz, embutida em si mesma, a quebra do paradigma da exclusividade na transmissão do conhecimento, fundado na tradição guru śiṣya paramparā.  Pelo contrário, a Bhagavad Gītā representa a possibilidade de superação desses distintos sistemas religiosos que também tratam da arte da meditação.

Em certo sentido, o ocidente se mostra mais receptivo à novidade da mensagem de Krishna que a própria Índia, que procura subsumi-la aos sistemas das distintas tradições religiosas anteriores ao advento da Bhagavad Gītā. O que diferencia a Bhagavad Gītā das distintas Escrituras Sagradas (Śruti) que a antecederam é o fato dela romper com a ideia religiosa de exclusividade, característica da tradição guru śiṣya paramparā. A superação deste paradigma é personificada em Krishna, que ressignifica esta tradição professando uma espécie de espiritualidade que o ocidente vai batizar de “neo-vedanta”, uma vez que ela transcende as fronteiras culturais e de casta estabelecidas pelas distintas tradições religiosas da própria Índia. Daí o status de universalidade que o texto da Bhagavad Gītā goza no mundo ocidental. A superação da crise de Arjuna ao longo do diálogo da Bhagavad Gītā expressa a sua gradual ressignificação dos ultrapassados valores da tradição religiosa védica. 

Na Bhagavad Gītā, não é mais o sacerdote o porta-voz e intérprete do sagrado e sim um guerreiro. Do mesmo modo, o discípulo também não pertence à casta “superior” e supostamente mais preparada para receber o conhecimento espiritual. Pelo contrário, a Bhagavad Gītā rompe com a hierarquia proposta pelo sistema de castas. O diálogo sobre a essência do sagrado se dá entre Krishna e Arjuna, ambos militares, membros da realeza e representantes da classe política! Além do mais, a instrução espiritual de Krishna a Arjuna não se dá no interior de qualquer recinto sagrado, āśrama (ashram, ou espécie de monastério) ou mandir (templo), mas no campo de batalha, poucos minutos antes do início do mais terrível combate já ocorrido no subcontinente indiano.  Talvez por isto mesmo, esta percepção de que a Bhagavad Gītā trate, essencialmente, da Ciência da Meditação contida no puro (śuddha) yoga, que o próprio Krishna afirma ser desconhecido dos representantes da tradição guru śiṣya paramparā, escape à maioria dos religiosos destas tradições, ocupados e preocupados que estariam em minimizar o impacto das palavras de Krishna e adaptar o diálogo da Bhagavad Gītā aos seus próprios sistemas religiosos. Não há como negar, contudo, que a Bhagavad Gītā propõe e professa a superação e a emancipação destes mesmos sistemas (BhG 18.66) fundados na  autoridade exclusiva da tradição guru śiṣya paramparā, a qual os indianos mais ortodoxos encontram-se visceralmente apegados. 

A essência (śuddha) do sagrado (dharma) transmitida por Krishna a Arjuna na Bhagavad Gītā expressa a espiritualidade em sua forma mais pura e não sectária. O próprio Senhor Krishna estabelece esta quebra de paradigma sem precedentes, instaurando e validando este modo novo e universalista de acessar o Ser presente no coração de cada um. De acordo com a mensagem de Krishna, qualquer pessoa, independentemente de casta, sexo, etnia, orientação religiosa, guru, etc., pode alcançar a realização espiritual a partir da Ciência da Meditação, contida no Śuddha Yoga de que trata a Bhagavad Gītā. A pedagogia assistemática, pós-método, empregada por Krishna na Bhagavad Gītā, foge daquela outra, metódica, empregada mais comumente dentro da tradição guru śiṣya paramparā. Krishna apenas aponta para Arjuna como tornar-se o protagonista do seu processo pedagógico. Mostra que o verdadeiro guru é o Ātman. 

Como entender a pedagogia da Bhagavad Gītā que, ao mesmo tempo em que oculta, revela a Ciência da Meditação, deixando ao instrutor religioso apenas o papel de facilitador do processo de aquisição e produção de conhecimento? Primeiro, lembrando que Arjuna entra em crise porque o seu conhecimento prévio não lhe permitia lidar satisfatoriamente com aquela situação nova que estava enfrentando. Segundo, lembrando que Krishna encontra em Arjuna o discípulo maduro e disposto a ir além do que aprendera dos melhores representantes da tradição guru śiṣya paramparā. Por isto, em suma, ao apresentar, de coração, as suas dúvidas e incertezas, Arjuna obteve de Krishna os instrumentos para alcançar, por si só, a vitória sobre si mesmo. E Krishna, ao atendê-lo, cumpriu a sua missão como Avatāra, reintroduzindo no mundo a essência ancestral (śuddha) da arte (yoga) e da ciência (dharma) da meditação e validando, deste modo, a máxima de que quando o discípulo está pronto, o mestre sempre aparece em seu auxílio.

***

O vídeo a seguir, de Eckart Tolle, ilustra a ideação (Bhāvana) do estado de testemunha (Sākṣī). Sākṣī (sa, “com”; e akṣa, “centro da roda, olho”) significa, “observador”, “testemunha”. Quando a roda gira, seu centro (akṣa) permanece imóvel. O estado de testemunha expressa a capacidade de observar impassivelmente os eventos que fazem o mundo girar. Na exata medida em que vamos nos aproximando do eixo imutável da roda de Saṃsara, vamos nos descobrindo em nossa própria natureza espiritual.


Do mesmo modo, mas segundo uma tradição distinta da exemplificada acima, o vídeo a seguir apresenta, de maneira sintética, uma interessante definição de meditação, fundada neste mesmo princípio do estado de testemunha, ou de observador isento (Sākṣī). Embora eu não esteja certo de que o autor, de fato, praticasse o que dizia, nem por isto deixo de reconhecer a força e o valor deste depoimento.


Dentro da tradição cristã, a Oração do Amanhecer, atribuída (embora sem comprovação) a São Francisco de Assis, também guarda a mesma essência desta herança espiritualista e não sectária descrita na Bhagavad Gītā e fundada na meditação (Dhyāna), na reta conduta  (Karma) e no sentimento de amor universal e unidade de todas as coisas (Bhāvana):

Senhor,
No silêncio deste dia que amanhece,
Venho pedir-Te a paz, a sabedoria, a força.
Quero ver hoje o mundo com os olhos cheios de amor.
Quero ser paciente, compreensivo, manso e prudente.
Quero ver além das aparências os teus filhos,
Como tu mesmo os vês e assim não ver senão o bem em cada um.
Cerra meus ouvidos a toda calúnia.
Guarda minha língua de toda a maldade.
Que só de bençãos se encha o meu coração.
Que todos os que de mim se acercarem sintam a Tua presença.
Reveste-me de Tua beleza, Senhor.
E que no decurso deste dia eu Te revele a todos.

Esta oração franciscana expressa o ideal de manter o foco e o estado de meditação, ou de conexão com o coração, o dia todo e representa, portanto, uma verdadeira eulogia à atenção plena aos chamados do cotidiano para a intensificação e aprofundamento da prática ininterrupta de meditação, cuja marca característica (lākṣaṇa) é śraddhā (o compassivo sentimento sintrópico, que define a Cultura Sintrópica e a sua práxis e se traduz como o princípio da confiança e da prudência, a bússola interior e a amorosa energia que ilumina a razão em seu processo de convergência para a Verdade e o Absoluto), o sentimento que orienta o processo de convergência sintrópica (Brahma Sāmīpya). Tal rendição em Espírito de amor universal denomina-se, tecnicamente, Bhāvana Namaḥ -- a rendição (Namaḥ) ao sentimento de amor e compaixão decorrentes da nossa percepção da unidade do mundo e de todas as coisas (Bhāvana).

SUMÁRIO GERAL: A Arte e a Ciência da Meditação segundo a Bhagavad Gītā
Próximo texto: A Árvore do Śuddha Yoga: do Bhāvana, ao Aṣṭāṅga e à Vipassanā

Rio de Janeiro, 07.09.17.
(Atualizado em 01.09.23)

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