2017-03-24

O que devo fazer para me conhecer: Krishna revela a Draupadi os Cinco Pilares da Cultura Sintrópica (Śuddha Dharma)

Five Stones
No Mahābhārata1, a princesa Draupadi – destinada a ser a esposa dos cinco príncipes Pāṇḍavas –, surge do fogo! Não conheceu a infância, nem se recorda de sua origem divina. Assim como o príncipe Arjuna, seu primeiro esposo, ela também encontra em Krishna um sacerdote e mentor espiritual. Draupadi sente verdadeira admiração pela estatura e autoridade espiritual de Krishna e por isto sempre que o destino lhe coloca ante um dilema moral e ético, busca o seu conselho e auxílio.  É a ele a quem dirige a pergunta: a fim de saber quem sou eu, o que devo fazer? Em resposta, ouve de Krishna que ela deve adequar-se à essência pura (śuddha) da consciência de sagrado (dharma), antes que às convenções sociais e morais (varṇāśrama-dharma). Necessita estabelecer-se nos cinco pilares onde se assenta o puro dharma que regula a cultura sintrópica: jñāna (conhecimento), dhairya (determinação, compostura e paciência), prema (amor universal e compaixão), samarpaṇa (dedicação, oferecimento, entrega) e nyaya (justiça). Krishna dá de presente a Draupadi cinco pedras de cristal azul que representam estes cinco fundamentos da cultura sintrópica e lhe diz: “sempre que você estiver em dúvidas, ou com qualquer problema, contemple estes cristais, eles simbolizam os cinco pilares do puro dharma”.

A cena do nascimento de Draupadi no Mahābhārata – apenas uma pequena amostra do filme que trata do texto fundacional e maior fonte de inspiração e influência da nascente Cultura Sintrópica – já nos remete às dificuldades para se atender ao aforismo "Conhece a ti mesmo" (grego: gnothi seauton) inscrito no pátio do Templo de Apolo em Delfos. Conhecida desde o antigo Egito, esta expressão aparece também no Templo de Luxor onde se encontram as inscrições "O corpo é a casa de Deus" e "Homem, conhece a ti mesmo, assim conhecerá os deuses”.  Questão fundacional da filosofia grega, até mesmo Sócrates reconhece as dificuldades para alcançar o conhecimento de si, buscado também, dentre outros, por Pitágoras, Heráclito e Tales de Mileto. 

Self Reliance, Gnothi Seauton
Mais recentemente (1831), Ralph Waldo Emerson escreve o poema intitulado Gnothi Seauton*** (Conhece a ti mesmo), onde desenvolve a ideia de que conhecer a si mesmo significa comungar com Deus no coração. Dez anos depois escreve o seu famoso ensaio Self-Reliance (Confiança Interior), texto que representa a melhor resposta em língua inglesa para o significado de śraddhā (o compassivo sentimento sintrópico, que define a Cultura Sintrópica e a sua práxis) na Bhagavad Gītā. O ensaio é uma análise do "aboriginal Self" (o Eu aborígene) onde se funda o sentimento interior de confiança, convicção e certeza. Curiosamente, no entanto, este ensaio de Emerson foi recebido como a afirmação do mais puro “individualismo” e uma ameaça aos valores da cultura cristã. Nas palavras de Henry Ware Jr., "Emerson retira do mundo a figura paterna do Senhor do Universo e, ao fazê-lo, deixa-nos órfãos num asilo, na companhia apenas de crianças". Em resposta, Emerson se diz mais "Quaker" (denominação cristã) que qualquer outra coisa e que a sua voz interior é também a voz do Cristo em seu coração.  

Emerson fora introduzido à Filosofia da Índia por meio dos textos de Victor Cousin e Thomas Colebrooke. Logo em seguida, dedica-se ao estudo da Bhagavad Gītā, de onde retira a inspiração para o poema Gnothi Seauton e o ensaio Self-Reliance. Emerson encaminha, com algum sucesso, a questão, "como proceder para conhecer a si mesmo?", que até mesmo Sócrates reconhece ser de difícil solução nos Diálogos Fedro e Filebo. Esta questão visceral e filosófica surge também no Mahābhārata e Krishna vale-se dela a partir do episódio do nascimento de Draupadi para ressignificar o próprio conceito de dharma.  Mais tarde, no episódio da Bhagavad Gītā, ele terá a oportunidade de proceder à reforma completa, não apenas deste conceito, mas de praticamente todos os termos utilizados na tradição ritualística védica. O varṇāśrama-dharma (ordem moral fundada no sistema de castas) é posto em xeque no Mahābhārata. Diferentemente do Rāmāyaṇa, um texto devocional do hinduísmo, o Mahābhārata é um texto de especulação filosófica. Krishna é bastante claro ao definir o seu papel no Mahābhārata e, em especial, em seu capítulo central, o poema filosófico intitulado Bhagavad Gītā: veio para restaurar a pureza do dharma e promover o florescimento de uma cultura sintrópica. Na Bhagavad Gītā, Krishna, a um só tempo, antecipa-se e confirma as críticas que logo seriam adotadas e sugeridas também pelo Senhor Buda, quando este rejeita o brahmanismo e o seu varṇāśrama-dharma, que mais tarde seria conhecido como hinduísmo. 

Mahābhārata
No desenrolar da trama do Mahābhārata as circunstâncias da vida de Draupadi a obrigam a escolher entre realizar o ato imoral de se casar com cinco irmãos, ou permitir que todos eles sejam exilados e o reino fique entregue aos corruptos e usurpadores membros do clã dos Kauravas. Draupadī está angustiada e, enquanto reflete sobre o melhor caminho a seguir, manuseia as cinco pedras que ganhara de presente. Logo experimenta o sentimento sintrópico de que aquele estranho casamento poliândrico simboliza também o seu casamento com os cinco pilares do puro dharma. Decide então consultar Krishna e ouve dele que, ainda que a poliandria fosse considerada imoral, naquele caso específico era legítima e justa. Ela se baseava nos mais elevados sentimentos, respeitando os nobres e puros princípios da ética, ou seja, da filosofia sintrópica. Não apenas Krishna disse isto como a motiva e a encoraja a se casar para, deste modo, assumir a sua mais nobre e elevada missão neste mundo. Draupadī casa-se com os cinco príncipes Pāṇḍavas2 e sabe que a sua vida não será a de uma princesa, nem a de uma pessoa comum. Terá, verdadeiramente, que dedicar a sua vida ao sagrado de onde surgira, fazendo do seu casamento o lugar para exercer o papel de alguém em busca do conhecimento da essência sagrada de si mesma.

O casamento de Draupadī introduz no épico a questão da intersecção e da distinção entre aquilo que no ocidente se entende como constituindo os campos da moral e da ética. Ao legitimar o casamento de Draupadī, Krishna deixa claro que os valores morais, representados pelo varṇāśrama-dharma (brahmanismo), são efêmeros, passageiros e de valor provisório, quando comparados à elevadíssima filosofia sintrópica, que tem por objeto a verdadeira e pura reflexão ética em torno da essência última do sagrado. Contrariamente ao entendimento da classe sacerdotal e da maioria dos representantes da tradição moral e religiosa, Krishna legitima e abençoa o casamento de Draupadī, visto como imoral, argumentando que o contexto ético é mais importante que o costume moral

Krishna mostra a Draupadī que o modo de conduta deve ser pautado não apenas pelos valores morais, conforme ensina a tradição, mas, principalmente, pelo sentimento sintrópico que se origina da reflexão crítica sobre o que constitui a essência mais pura (śuddha) do dharma. Na infinita jornada do Ser, não há ponto de partida, nem de chegada. Para se aproximar da verdade e do conhecimento de si mesma, Draupadī necessitaria transcender os valores morais, representados pelo varṇāśrama-dharma, e convergir, sem jamais retroceder no caminho, para a essência última do sagrado. Emerson, em seu famoso poema Gnothi Seauton, aponta nesta mesma direção.

***

(1) Para conhecer a pronúncia das palavras sânscritas veja o nosso resumo do Guia de Transliteração e Pronúncia das palavras sânscritas.
(2) Eu vejo uma correspondência biunívoca entre os cinco pilares do dharma, estabelecido por Krishna, com os cinco pilares onde se funda a ação perfeita e completa, realizada com śraddhā:
  1. O príncipe herdeiro Yudhiṣṭhira simboliza a dhairya (determinação, compostura e paciência), mencionada por Krishna e pressuposta no Saṃkalpa (a firme resolução da faculdade da vontade de convergir para a essência do dharma e, consequentemente, para a meta suprema);
  2. O príncipe Arjuna simboliza o prema (amor), pressuposto em Ṛṣi-nyāsa (a internalização da divindade);
  3. O príncipe Nakula, o grande astrólogo e expert em Ayurveda, simboliza nyāya (regra, lei, justiça, justeza, juízo, lógica, sistema, plano, adequação, método, modelo, axioma), pressuposto em Viniyoga (a sabedoria para desenvolver métodos específicos adaptados à cada nova situação);
  4. O príncipe Sahadeva, aquele que convive com (saha) os deuses (deva), simboliza samarpaṇa (oferecimento, entrega), pressuposto na Satya Tyāga (dedicação e entrega), e
  5. O príncipe Bhīma, que também representa força, humildade, obediência e gratidão, simboliza o jñāna (conhecimento), pressuposto de Upasthāna (conclusão, saudação final e agradecimento pelo estado de sintonia alcançado). 
Rio de Janeiro, 24 de março de 2017.
(Atualizado em 08.01.24)

***Γνώθι Σεαυτόν (Gnothi Seauton: Know Thyself)

If thou canst bear 
Strong meat of simple truth 
If thou durst my words compare 
With what thou thinkest in my soul’s free youth, 
Then take this fact unto thy soul,
God dwells in thee. 
It is no metaphor nor parable, 
It is unknown to thousands, and to thee; 
Yet there is God. 

II 
He is in thy world, 
But thy world knows him not. 
He is the mighty Heart 
From which life’s varied pulses part. 
Clouded and shrouded there doth sit 
The Infinite 
Embosomed in a man; 
And thou art stranger to thy guest 
And know’st not what thou doth invest. 
The clouds that veil his life within
Are thy thick woven webs of sin,
Which his glory struggling through
Darkens to thine evil hue.

III
Then bear thyself, O man!
Up to the scale and compass of thy guest;
Soul of thy soul.
Be great as doth beseem
The ambassador who bears
The royal presence where he goes.

IV
Give up to thy soul
Let it have its way
It is, I tell thee, God himself,
The selfsame One that rules the Whole,
Tho’ he speaks thro’ thee with a stifled voice,
And looks through thee, shorn of his beams.
But if thou listen to his voice,
If thou obey the royal thought,
It will grow clearer to thine ear,
More glorious to thine eye.
The clouds will burst that veil him now
And thou shalt see the Lord.

V
Therefore be great,
Not proud, too great to be proud.
Let not thine eyes rove,
Peep not in corners; let thine eyes
Look straight before thee, as befits
The simplicity of Power.
And in thy closet carry state;
Filled with light, walk therein;
And, as a king
Would do no treason to his own empire,
So do not thou to thine.

VI
This is the reason why thou dost recognize
Things now first revealed,
Because in thee resides
The Spirit that lives in all;
And thou canst learn the laws of nature
Because its author is latent in thy breast.

VII
Therefore, O happy youth,
Happy if thou dost know and love this truth,
Thou art unto thyself a law,
And since the soul of things is in thee,
Thou needest nothing out of thee.
The law, the gospel, and the Providence,
Heaven, Hell, the Judgement, and the stores
Immeasurable of Truth and Good,
All these thou must find
Within thy single mind,
Or never find.

VIII
Thou art the law;
The gospel has no revelation
Of peace and hope until there is response
From the deep chambers of thy mind thereto,
The rest is straw.
It can reveal no truth unknown before.
The Providence
Thou art thyself that doth dispense
Wealth to thy work, want to thy sloth,
Glory to goodness, to neglect, the moth.
Thou sow’st the wind, the whirlwind reapest,
Thou payest the wages
Of thy own work, through all ages.
The almighty energy within
Crowneth virtue, curseth sin.
Virtue sees by its own light;
Stumbleth sin in self-made night.

IX
Who approves thee doing right?
God in thee.
Who condemns thee doing wrong?
God in thee.
Who punishes thine evil deed?
God in thee.
What is thine evil meed?
Thy worse mind, with error blind
And more prone to evil
That is, the greater hiding of the God within:
The loss of peace
The terrible displeasure of this inmate
And next the consequence
More faintly as more distant wro’t
Upon our outward fortunes
Which decay with vice
With Virtue rise.

X
The selfsame God
By the same law
Makes the souls of angels glad
And the souls of devils sad
See
There is nothing else but God
Where e’er I look
All things hasten back to him
Light is but his shadow dim.

XI
Shall I ask wealth or power of God, who gave
An image of himself to be my soul?
As well might swilling ocean ask a wave,
Or the starred firmament a dying coal,
For that which is in me lives in the whole.

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