2018-04-03

A Via do Coração: um reencontro com Francisco Barreto

Buddhi Yajña: Arquivo com os registros das reuniões de gestação da Grande Síntese
Buddhi Yajña: Registros das reuniões de gestação da Grande Síntese
Conheci Francisco Barreto em 1978, no Ashram Sarva Mangalam, ainda em seu antigo endereço, na esquina das ruas Aurélia e Heitor Penteado, na cidade de São Paulo. Eu frequentava este espaço, dirigido pela saudosa Marinês Peçanha de Figueiredo, desde que fora iniciado nas práticas de meditação, naquele mesmo local, pelas mãos de Sri Vajera, em 25 de agosto de 1974. Francisco havia recém ingressado em nossa instituição (28.08.1977) e estava de passagem por São Paulo. Ainda me lembro quando, após a prática de meditação, Marinês o convidou para se apresentar e dizer algumas palavras sobre o trabalho que estava estruturando em Sergipe. Logo após deixar o nosso grupo, Francisco seguiu viagem para Ribeirão Preto, onde foi recebido por Sérgio Barretto, o seu primeiro contato na instituição. 

Ficha de Francisco Barreto na sede do SDM - Chile
Recordo-me de dois fatos extraordinários deste período, dentre os muitos que constituem a vida desta pessoa tão especial, exemplo vivo da mística experimental. O primeiro tem relação com o fato de que Sérgio Barretto, antes mesmo de conhecê-lo pessoalmente, confirmou e deu ciência a Sri Vajera dos planos de Francisco. Sri Vajera, então, valendo-se de suas prerrogativas espirituais, primeiro certificou-se da missão que estaria a cargo de Francisco. Em seguida, o orientou por carta para que ele procedesse de acordo com as instruções que receberia sobre o seu ingresso na Instituição. Ele seria iniciado à distância, na pequena sede do seu grupo, em Aracaju, em cerimônia oficiada em Santiago do Chile pelo próprio Sri Vajera. Sem ter realizado qualquer curso preparatório, Francisco foi consagrado e admitido em nossa instituição em uma cerimônia na qual ele próprio foi o cooficiante e também o iniciado. O segundo fato extraordinário aconteceu logo após Francisco deixar o Ashram Sarva Mangalam, em São Paulo, e se dirigir para o Ashram Subramanyananda, em Ribeirão Preto. Quando perguntado pelo Sérgio sobre as suas impressões sobre o Ashram Sarva Mangalam, disse ter identificado no grupo de São Paulo um dos colaboradores que tomariam parte no projeto que seria desenvolvido em Sergipe, mas que não tivera a oportunidade de se apresentar pessoalmente a ele. Sérgio apanhou uma foto com os membros do grupo e Francisco pode, então, apontar aquela pessoa, que reconhecera como parte de um grupo que já vinha trabalhando junto "há algumas vidas". Sérgio sorriu e disse: “é o meu sobrinho!”. Apanhou o telefone, ligou para mim e colocou Francisco na linha. Conversamos um pouco e decidi ir a Ribeirão Preto, imediatamente, para conhecê-lo pessoalmente. Por esta ocasião era comum eu passar os fins de semana, ou períodos de férias, em Ribeirão Preto, aprendendo sobre o Śuddha Yoga diretamente do meu tio. Uma vez em Ribeirão Preto, senti como se estivesse tendo um reencontro com Francisco e aceitei o seu convite para conhecer o projeto que desenvolvia em Aracaju, no povoado de Areia Branca, perto do Mosqueiro. Eu lhe disse que logo que entrasse em férias escolares programaria esta viagem para lá. Cheguei em Aracaju pela primeira vez no dia 28 de janeiro de 1979 e foram os registros desta estada lá (ver arquivo digitalizado) que deram origem ao meu Diário da Consciência, hoje sob a forma deste Livro-Blog sobre a Arte e a Ciência da Meditação segundo a Bhagavad Gītā. 

Foi assim que teve início esta colaboração de mais de quarenta anos com Francisco. Soube naquele mesmo ano de 1979, conforme está registrado nesses primeiros manuscritos, que atuaríamos em uma mesma frente de trabalho, em nome do ideal espiritual de se viver em consonância com o reconhecimento da precedência do sentimento intuitivo sobre o pensamento. Este ideal está expresso no lema do grande sábio Lao Tzu: “Primeiro ser; depois fazer; e só então dizer”. Antes de qualquer ação, devemos nos certificar que o nosso ego esteja em silêncio, inativo; e a nossa mente, em sintonia com o coração. Nós deveríamos nos manifestar somente sobre o que realizamos de forma plena, com desapego ao fruto da ação; e jamais sobre aquilo que não se vive. Conta uma lenda da tradição indígena que, interrogado sobre o que ensinava ao seu povo, um pajé americano teria respondido: primeiro, a escutar o coração; segundo, que tudo está ligado com tudo; terceiro, que tudo está em transformação; e quarto, que a Terra não é nossa, nós é que somos da Terra. Esta lenda exemplifica o entendimento que desenvolvemos do lema de Lao Tzu e que, ainda hoje, orienta o trabalho de Cássia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Cássia juntou-se ao ideal de viver e difundir os valores do Coração logo após o nosso casamento (1983), quando fixamos residência em São José dos Campos, no interior de São Paulo. Alguns anos mais tarde (1987) nós nos mudaríamos para Aracaju para nos integrarmos aos projetos desenvolvidos no Śuddha Sabhā Ātma e Cássia já levaria para a Universidade Federal de Sergipe (UFS) esta práxis fundada no Ser que reside no coração. Dentre os projetos que participamos durante este período que atuamos em Sergipe, o mais doloroso, talvez, tivesse sido a participação ativa no processo de gradual extinção do antigo Ashram Ātma para a gestação do que hoje constitui a Grande Síntese, onde se abriga, atualmente, o Śuddha Sabhā Ātma. Entre janeiro de 1988 e maio de 1989, realizamos, durante as tardes de sábado, uma série de quarenta e dois encontros, denominados de Buddhi Yajñas (Esforços de Intelecção), onde refletíamos sobre aquela cisão que dividia os membros e colocava em risco os ideais maiores e os próprios rumos da instituição. Fiz o registro histórico de todo esse processo na série que denominei Buddhi Yajña (ver arquivo digitalizado). 

O encerramento de nossa colaboração nesta fase de transição do nosso grupo, do seu estágio doutrinário e sectário inicial, estruturado em torno do conceito de Ashram, entendido como uma espécie de monastério, para o estágio do seu entendimento como expressão espiritualista, universalista e não sectária dos valores do coração ficou simbolizado para nós na entrega, como presente de despedida para Francisco e alguns poucos membros da instituição, do primeiro esboço de um Glossário dos principais termos técnicos em sânscrito do Śuddha Dharma, que eu elaborara de 1987 a 1990 durante este período que passamos em Sergipe, intitulado Yoga Brahma Vidya Sanhita (ver arquivo digitalizado). A conclusão do glossário no dia 25 de dezembro de 1990 simboliza, portanto, a decisão que havíamos tomado de aprofundar este entendimento, culminando com o nosso retorno para o sudeste em janeiro de 1991. Deixei registrado no Prefácio daquele primeiro esboço do Glossário, que confiara a alguns companheiros mais próximos, a motivação e alegria por termos alcançado a conclusão de uma importante etapa de nossa jornada. Dele consta a seguinte passagem, que já anunciava o ideal de emancipação da esfera da fé religiosa para o ingresso na esfera da ciência sagrada, ou espiritualidade pura:
Este trabalho é fruto do anseio sincero de compreender os princípios básicos do sistema Suddha para que assim seja possível iniciar a sua vivência, na prática.

Conhecer é o primeiro passo, e felizmente, todo o conhecimento é [está] acessível. Não existe segredo que não possa ser revelado, desde que as condições para tal se apresentem. Revelar, desvelar, facilitar, ajudar, estas são hoje as minhas palavras-chave. A necessidade de aclarar, descobrir, de conhecer e transmitir... Não visualizo nesse momento melhor razão para viver.

Essa é uma verdade científica, verificável por qualquer um que reproduza as condições do experimento. É uma lei da Yoga Brahma Vidya. Ser feliz, essa necessidade de ser feliz e, consequentemente, de desejar que os outros sejam felizes, esse Purusharta, esse anseio é que nos motiva a desvelar e a conhecer [a verdade]. A felicidade é um mundo que aspiramos, é o mundo que precisamos construir. É para esse mundo que precisamos voltar. Por isso se estuda sobre o Dharma: para conhecê-lo, vivê-lo e alcançar a felicidade. Para isso aprendemos a ouvir, a consultar o coração.

Aprendemos com a ajuda do mestre, até que um dia o coração fala e ganhamos então um novo mestre e, verdadeiramente, nascemos para o mundo interior. Rompemos o cordão umbilical e ensaiamos os primeiros passos: experimentamos uma nova fonte de conhecimentos, de desejos e agimos com motivos de uma natureza distinta dos até então experimentados. Assim, com o tempo, precisamos cada vez menos do pai como instrutor e mais como um amigo; assim estreitam-se os laços do amor. Com o tempo ficamos cada vez menos sujeitos às quedas, vamos descobrindo no coração a Veracidade que nos previne contra Moha, a precursora das quedas. Aos poucos vamos compreendendo o significado real dos três aforismos que postulam a divindade objetiva, subjetiva e transcendente. Então, compreendendo o funcionamento cósmico, já não nos ofenderemos por nada, já não nos sentiremos mais vítimas de nada, nem culparemos mais ninguém por nada. Não. Teremos vencido Moha e compreendido que viver conforme a ética Suddha é agir sempre pleno de amor, na unidade que existe na infinita diversidade.

Se pretendemos alcançar a liberação (Gnanamukti) e a Prapti temos que buscar no conhecimento a chave que nos abrirá as portas para essa via.
Esta passagem do Prefácio, escrita no Natal de 1990, revela a coerência dos esforços desenvolvidos em nossa jornada ao longo dos anos para convergir para o ideal simbolizado pelo coração. É dentro deste espírito que deverá acontecer aqui em casa, no dia 15 de abril de 2018 o evento da nascente Universidade do Coração intitulado A Via do Coração: encontro com Francisco Barreto. É dentro deste mesmo espírito, enfim, que Francisco, antes de vir ao Rio de Janeiro, passará alguns dias em Niterói, para consagrar e estabelecer as bases do Ashram Brahmala, idealizado para funcionar de acordo com os ideais da Universidade do Coração.

Rio de Janeiro, 03.04.18.
(Atualizado em 04.02.23)

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