2017-01-22

Śuddha Gṛhastha: o casamento e a formação do lar vegetariano

1983: A Celebração do Casamento Iogue


O nosso casamento foi celebrado em duas etapas. A primeira aconteceu em 22.01.1983, quando Cássia e eu realizamos os ritos matrimoniais, conforme prescritos na tradição ocidental e em atendimento ao desejo de nossos pais. A segunda etapa, deu-se sem o conhecimento da família, de forma sigilosa, em 06.02.1983, durante o período de nossa "Lua de Mel", quando nos hospedamos por um período no antigo Ashram Atma, primeira célula do atual Śuddha Sabhā Ātma. Lá celebramos o casamento segundo a milenar e ancestral tradição do Śuddha Yoga. Já acreditávamos naquela época que os casamentos dignos deste nome eram aqueles celebrados, não apenas em nome dos ideais da família e da tradição, mas principalmente da atualização e da superação daquilo que se entendia por "família" e "tradição". O casamento ióguico expressava o nosso compromisso com a grande família estendida, representada pela humanidade, e o entendimento de que os casamentos devem ser celebrados com o objetivo de trazer luz para o mundo – dar a luz, conforme o exemplo paradigmático das celebrações de Natal. O Natal acontece quando o casamento deixa de se centrar no casal e passa a representar o ideal maior de trazer e lançar ao mundo boas sementes. Por isto realizamos as duas cerimônias. A primeira atendia os nossos pais e a segunda expressava o nosso entendimento do casamento, verdadeiramente, como um saṃskāra, um sacramento.

Já pressentíamos àquela época que o conceito de "casamento" abarcaria  neste novo milênio os novos paradigmas ecoespirituais, que animam as estruturas rizomáticas e consideram o corpo social como um todo, diluindo qualquer antagonismo e lutas de classes e de gênero. Sabíamos que o verdadeiro casamento não poderia herdar o ranço darwinista do passado, centrado em uma compreensão dualista da realidade, onde expressões como  "esquerda e direita", "masculino e feminino", e assim por diante, eram utilizadas apenas para reforçar a polarização e as diferenças que alimentam o ódio e as representações ingênuas da realidade e concretude do mundo. Sabíamos, em suma, que era deste ideal político maior de igualdade de direitos entre os gêneros, ideal de de nos tornarmos um; e um com a humanidade, que poderia advir a paz no mundo. Onde há mais amor, o mundo é melhor.

A Formação do Lar Vegetariano e Espiritualista

Fazenda Mãe Natureza -- Grande Síntese -- Śuddha Dharma Maṇḍalam
Fazenda Mãe Natureza - Santana do São Francisco  (SE)
Como transformar a cozinha e toda a nossa moradia num santuário ecológico, vegetariano, multiculturalista, ecumênico e espiritualista, sem incomodar, nem ofender, aqueles ao nosso redor? Bhāvana Namaḥ, ou a rendição (Namaḥ) à percepção amorosa da unidade do mundo e de todas as coisas (Bhāvana) nos leva a entender o lar como um verdadeiro Ashram, tal como a Fazenda Mãe Natureza. Bhāvana Namaḥ significa a rendição ao sentimento de amor universal e compaixão com todos os seres, bem como o compromisso definitivo de não permitir que se profane os ambientes e os espaços interiores e exteriores sob a nossa guarda.  Por isto, na entrada da Fazenda Mãe Natureza está escrito: "Quem vier, de onde vier, venha em paz". Adentrando naquele Santuário, os vícios, as carnes, os estimulantes e as drogas lícitas e ilícitas ficam do lado de fora.

Normalmente, ainda prestamos pouca atenção à relação entre os conceitos de "ambiente", "ambiente doméstico" e "meio ambiente". Quando muito, nos ocupamos do meio ambiente, e não nos damos conta de que este reflete e é reflexo do ambiente doméstico, referido como "Gṛhastha" na literatura sagrada. "Gṛh" significa "lar", "núcleo doméstico", "família"; e "astha", "esqueleto de sustentação". O ambiente doméstico representa, portanto, o esqueleto de sustentação da família e, consequentemente, de toda a sociedade. Em geral, não nos damos conta de nossas responsabilidades como provedores do ambiente doméstico, ou seja, como Gṛhasthas. Contudo, se queremos o nosso ambiente doméstico como um espaço sagrado e vegetariano (Śuddha Gṛhastha), temos que aprender que a vida é constituída de decisões que nos ensinam a desenvolver a capacidade de assumir, integralmente, para o bem e para o mal, as consequências de todas as nossas ações.

Em suma, somente com muita disciplina e dedicação consegue-se proteger o ambiente doméstico e estabelecer como norma a frase escrita no muro de entrada da Fazenda Mãe Natureza, deixando, portanto, do lado de fora tudo o que estiver em desacordo com as regras da casa.


A Caracterização do Lar a partir da Iconografia Doméstica

Quem de nós se ocupa, ou se preocupa, em saber o quanto os objetos e seres dos reinos mineral, vegetal e animal nos influenciam? Ou, que tipos de imagens nos chegam pelas redes sociais e pelos canais que selecionamos? Ainda hoje, embora estejamos aprendendo a valorizar a qualidade de vida e o ambiente de paz (com a natureza, com os outros e  com nós mesmos), não compreendemos minimamente como todas as esferas da vida, tanto microscópica como macroscópica, estão interligadas de forma sintrópica. Somos expostos o tempo todo a distintas representações simbólicas que moldam o nosso entendimento do mundo. Um garfo, uma faca, um háshi japonês – os objetos domésticos mais simples estão carregados de energia e escondem em si certa ideologia. E é assim com todos os objetos que escolhemos para compor a nossa casa. Os objetos decorativos, por exemplo, são verdadeiros imãs associados às energias segundo as quais foram criados. Se você quer saber quem são, verdadeiramente, aqueles que te influenciam sutilmente e atuam como os seus “gurus", não procure por nomes, pessoas e nem mesmo por religiões simplesmente. Verifique os objetos que te cercam – a mobília, os eletrodomésticos, os aparelhos eletrônicos, celulares, etc.

As interações "domésticas" produzem e são produtos do ambiente. Toda expressão cultural traz a sua influência, ou seja, tem a sua energia, o seu poder. Ícones, ideias, livros, conceitos, tecnologia – tudo tem origem abstrata, sutil, que, aos poucos, vai modulando a nossa percepção da realidade. Somos nós mesmos que criamos as entidades e identidades que nos assombram. Toda a ideação tem um tipo de existência. Criamos os nossos demônios e pedimos socorro aos deuses para nos livrar deles. Nós nos esquecemos que anjos e demônios se manifestam em nossas vidas em conformidade com a nossa relação com o "meio". Flores, aromas, higiene, ordem – tudo irradia energia, até mesmo os livros, revistas e jornais que mantemos em casa. A ideologia dos escritores e jornalistas, as artimanhas dos publicitários, etc. Toda a energia do processo criativo está materializada na obra criada, revelando-se nas cores, formas, tons, sons, imagens, metáforas, etc., de que nos utilizamos. Toda a obra, inclusive a "obra de arte", reflete as interpretações que lhe foram associadas pelo autor, pela audiência e pela cultura. Cada período da história, em suma, tem a sua própria história da vida privada, com o seu próprio ambiente, onde os seres se ambientam, interferindo e sofrendo as consequências de suas interferências com o meio. 

Nari Shakti: a potência do feminino
The Hindustan Times (08.03.23)
Rio de Janeiro, 22.01.17
(Atualizado em 08.03.23)

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