Prāṇaḥ śuddhaḥ satyaḥ dharmaḥ;
“O sopro é pureza, verdade, e dharma.”
No Śraddhā Yoga, o prāṇāyāma é mais que respiração consciente: é liturgia do Ser. Cada ciclo é um gesto completo de amor. Inspirar é acolher o Uno; reter é integrar sua luz; expirar é devolvê-la ao mundo. Esses três gestos — pūraka, kumbhaka, rechaka — formam o corpo respiratório da a bússola interior (śraddhā) que traduz o amor em clareza e ação lúcida (dharma).
No Śraddhā Yoga, o prāṇāyāma se traduz na arte de amar, expressa como Bhāvana Namaḥ — a prática sutil da escuta do alento vital e da entrega (namaḥ) à vibração do amor universal (bhāvana), que depura o ego ao reconhecer a unidade em todas as coisas. Esse cultivo se inicia com a identificação do prāṇāyāma com o Dhyāna Mantra “Haṃsa”, que pulsa em nossa respiração e nos convida à escuta da voz silenciosa do fogo interior — uma presença que se revela como reconhecimento imediato da realidade sintrópica, Ṛta. Ela nos ensina que não basta apenas conhecer a verdade, mas que é preciso vivenciá-la com fervor, desenvolvendo e adaptando métodos específicos para enfrentar cada novo desafio que a vida nos apresenta.
O prāṇāyāma, nesse caso, representa o esforço contínuo de cultivar e manter a respiração em sintonia com a Vontade Cósmica (Bhāvana Namaḥ), renunciando de forma impessoal a toda e qualquer circunstância inibidora da da percepção da unidade do mundo e de todas as coisas. Esse esforço sintrópico se dá segundo três movimentos distintos e bem conhecidos da ciência do yoga: pūraka, kumbhaka e rechaca.
l. Pūraka: Preencher-se de Unidade
Pūraka — o primeiro gesto do Haṃsa Prāṇāyāma — é mais do que inspirar. É um chamado silencioso à interiorização do Uno. Inspirar, neste contexto, é acolher a totalidade do Ser com reverência, como quem se curva para beber de uma fonte sagrada. Trata-se de um ato de absorção amorosa: tudo o que existe vem de Brahman, e ao inspirarmos com consciência, recebemos esse mundo como bênção.
A mente, ao inspirar com śraddhā, dilui seus condicionamentos dispersivos e começa a contemplar a essência por trás da aparência. Neste estado, o praticante não respira o ar, mas a presença. Cada alento é um gesto sacramental. Pūrakā se torna, então, a arte de preencher-se da consciência divina que permeia todas as formas.
No Śraddhā Yoga, pūraka é compreendido como viśuddha sarvabhāvanām svātmā-svarūpe brahmaṇi satvena samāpayānam — o gesto mental de unificar todos os pensamentos e sentimentos na essência do Ser, reconhecendo em tudo a pureza luminosa de Brahman.
Esse ato de preenchimento não se confunde com acúmulo. É, paradoxalmente, um esvaziar-se das multiplicidades ilusórias para abrir espaço à presença unitiva. Pūrakā prepara o terreno para a verdadeira síntese interior. O ego, acostumado a preencher-se de fragmentos, aprende aqui a ser vaso, receptáculo, śarīra — corpo do divino.
Ao inspirar conscientemente, o sādhaka reconhece que não existe separação entre o dentro e o fora. O prāṇa que entra não vem de fora, mas de dentro do cosmos. É o mesmo prāṇa que sustenta os planetas em suas órbitas, que faz o coração bater e que anima a chama da consciência. Assim, pūrakā é simultaneamente um gesto de humildade e uma afirmação de soberania: acolher o Todo e reencontrar-se como parte viva dele.
É nesse gesto que nasce a verdadeira escuta: śravaṇa. O som primordial penetra o ser e reverbera na câmara do coração. Inspirar torna-se meditar. Pūrakā, nesse sentido, é o primeiro passo da práxis sintrópica — um passo que não caminha para fora, mas mergulha no centro.
2. Kumbhaka: Reter a Síntese
Kumbhaka é o momento suspenso entre a inspiração e a expiração — a pausa que não é ausência, mas plenitude. O recipiente está cheio, e o movimento cessa. É a imobilidade grávida de presença. No Haṃsa Prāṇāyāma, esse instante não é um intervalo fisiológico, mas um estado de consciência: o repouso na totalidade acolhida, a contemplação da unidade interiorizada como silêncio vivo.
Retendo o prāṇa, o sādhaka não reprime. Ele sustenta. Não por força, mas por sintonia. O prāṇa permanece, como a luz que habita a lâmpada. O gesto não é de quem domina, mas de quem confia. É por isso que kumbhaka é símbolo de ekāgratā — a unificação da mente no foco único da Verdade.
A Bhagavad Gītā sugere essa condição ao dizer (6.19): yathā dīpo nivāta-stho neṅgate sopamā smṛtā — “Assim como a chama de uma lâmpada não tremula ao abrigo do vento, tal é o yogin de mente concentrada em meditação sobre o Ser.” O Śraddhā Yoga compreende esse estado como o reconhecimento integral de que todas as ideias e afetos podem ser reintegrados em sua raiz espiritual, quando sustentados na pureza do Ser (samānītānām ca teṣām bhāvanām svātmā-svarūpa-brahma-svabhāva-siddhatvena ca aikyasya vijñānam). Kumbhaka é o estado de sustentação dessa síntese, onde o múltiplo repousa no Um.
Nesse silêncio repleto, a mente (manas) aprende a descansar. Ela já não oscila, os guṇas se aquietam, e o sentimento intuitivo (buddhi) ilumina o interior com discernimento estável. É o momento em que o conhecimento se torna sabedoria: o sentir se purifica, e o saber se expande.
É também o tempo da gestação espiritual. Como a terra que guarda a semente, o sādhaka permanece sereno, permitindo que a śraddhā cresça no âmago. Retenção aqui é fecundação: o prāṇa, já reconhecido como Brahma-śakti, se transforma em śraddhā-sattva — o poder da confiança luminosa, em sua forma mais sutil e duradoura.
Kumbhaka é, portanto, o centro do Haṁsa Prāṇāyāma. Não há som. Não há tempo. Há apenas presença. É o momento em que o sopro se dissolve no Ser, e o Ser respira em silêncio por nós.
3. Rechaka: Dissolver a Separação
Rechaka é a expiração — mas, no Haṃsa Prāṇāyāma, trata-se de um gesto de devolução, não de perda. Após o acolhimento do Uno (pūraka) e a contemplação da síntese (kumbhaka), o sādhaka retorna o sopro ao mundo — não como fragmento, mas como expressão de amor universal. Rechaka é o momento da oferta: tudo o que foi integrado deve agora ser compartilhado, em paz e em liberdade.
Expirar, nesse contexto, é desidentificar-se e doar-se generosamente ao mundo. É o gesto daquele que, tendo conhecido a vacuidade, retorna ao mundo por compaixão. É o movimento da entrega lúcida, do agir sem apego — de naiskarmya.
No Śraddhā Yoga, compreende-se Rechaka como o abandono deliberado de todos os estados mentais que obscurecem a percepção da inteireza do Ser. Exalar é renunciar às multiplicidades ilusórias, aos desejos conflitantes, aos conceitos endurecidos (tād-aikya-vijñāna-pratibandhaka-nānābhāva-parityāgāḥ) — É tornar-se leve.
Aqui, o praticante não “solta o ar” — ele se solta das formas que representam a dualidade. Rechaka é o sorriso interior que desata o nó da angústia. O desapego, nesse estágio, é o sopro que sai porque o coração está pleno. O gesto é natural. A respiração, litúrgica. E o mundo, novamente, torna-se altar.
Na Bhagavad Gītā (6.28), Krishna afirma: “O yogin deve manter-se constantemente unido ao Ser, assentado no recolhimento” (yogī yuñjita satatam ātmānaṁ rahasi sthitaḥ). Mas essa união não é isolamento: é abertura. Após recolher-se em kumbhaka o yogin exala em comunhão com o todo. A respiração torna-se meditação.
Rechaka é também a culminância de um rito de passagem. Ele marca o fim de um ciclo, mas não como encerramento — e sim como renascimento. Ao soltar o alento, o sādhaka dissolve qualquer identidade rígida, permitindo que a śraddhā se torne gesto, olhar, palavra, vida. O que se oferece ao mundo não é mais opinião, desejo ou defesa: é a própria vibração da presença.
Por isso, rechaka é o gesto do dharma em ação. Ele expressa a maturidade da confiança — śraddhā que se fez amor impessoal. E como ensina o Dhyāna Mantra Haṃsa: inspirar é reconhecer, reter é integrar, expirar é irradiar.
Inspirar é reconhecer o Uno.
Reter é repousar no Ser.
Expirar é doar-se em verdade.
Assim, o Haṃsa Prāṇāyāma não é apenas o sopro do corpo, mas o gesto sagrado da alma que se curva, se alinha e se consagra à vibração eterna do dharma.
Rio de Janeiro, 03 de junho de 2025
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