2018-04-06

Os fundamentos e as origens do vegetarianismo e do veganismo

A Opção pelo vegetarianismo desde a infância (1966)
Discuto neste artigo a tese do fundador do veganismo, Donald Watson (1910 - 2005), de que o vegetarianismo seria um mero estágio para o veganismo e que se você é vegetariano falta ascender um degrau para se tornar vegano. Não é de todo verdade que o veganismo surgiu do aprofundamento do vegetarianismo, culminando numa maior coerência para com os direitos dos seres vivos. Até bem pouco tempo esses termos, "veganismo" e mesmo o seu precursor, "vegetarianismo", sequer existiam. As pessoas não se definiam como vegetarianas ou veganas, apenas diziam seguir uma dieta isenta de produtos de origem animal. Esta diferenciação ocorre no início do século XX, quando o termo "vegetarianismo" passa a designar um estilo de vida e uma forma de ativismo menos radical que aquela proposta no nascente veganismo. O vegetarianismo, diferentemente do veganismo, nunca busca o confronto, pois funda-se em um sistema milenar de valores morais e éticos, derivados de princípios espiritualistas, tanto orientais como ocidentais, sem nenhuma conotação de pregação e conversão. O veganismo surge na Inglaterra dentro do movimento vegetariano com a proposta de um ativismo mais combatente e menos tolerante que os vegetarianos. Diferentemente dos novos veganos, os vegetarianos, além de demonstrarem compaixão pelos animais, procuram, principalmente, expressar tolerância e compaixão com os seres humanos "não-vegetarianos" (não quero aqui utilizar o neologismo vegano "carnista", que, além de tradicionalmente não fazer parte do vocabulário dos autênticos vegetarianos, me parece um pouco ofensivo). Ser vegetariano implica, sobretudo, a atitude inclusiva, que acolhe e respeita a diversidade e o direito do outro de ser diferente. Desse modo, como as principais características dos pioneiros e autênticos vegetarianos (atitude tolerante, esforço de adaptação ao meio e respeito à diferença e à condição do outro) não pudessem ser totalmente compreendidas, ou assimiladas, pelos vegetarianos liderados por Donald Watson, estes passaram a adotar o termo "vegano", que passou então a definir àqueles vegetarianos que defendiam uma militância mais agressiva e uma postura de confronto com os "não-vegetarianos". 

Os fundamentos e as origens do vegetarianismo e do veganismo
Condenação à fogueira por heresia (1210)
I. Vegetarianismo e Heresia

Poucos veganos sequer têm ideia de que o vegetarianismo era considerado heresia na Idade Média e os seus seguidores eram punidos pela Santa Inquisição, por vezes, até com a pena de morte. Por reconhecer que a heresia é uma erva daninha de veneno mortal, gerada dentro do seu tecido, a Igreja entendia que ela precisava ser combatida e destruída. A função de ensinar e evangelizar pertencia, exclusivamente, à hierarquia da Igreja, através de sua  ecclesia docens (o episcopado, a hierarquia). A Igreja entendia que, em termos de costumes, fé e moral, somente ela tinha o poder de julgar o que era o mais correto. Por isto, os antigos bispos consideravam o seu dever garantir que aqueles sob sua instrução estivessem a progredir, livres dos erros de interpretação dos dogmas cristãos, bem como do perigo de doutrinas como o vegetarianismo.

A Igreja considerava hereges a todos aqueles que liam, estudavam, ou sabiam os conteúdos de livros não autorizados por ela. Uma vez membro da Igreja, através do batismo, não se podia mais professar, fora do campo dos dogmas, a liberdade de pensamento. E esta se regulava segundo uma interpretação equivocada dos escritos de Santo Agostinho. A criação e aplicação do método agostiniano de identificação de hereges, por exemplo, apenas serviu para dizimar os adeptos da alimentação vegetariana, acusados também de serem maniqueístas e, como os heréticos cártaros, acreditarem na teoria da reencarnação. A Igreja do Império Romano via a prática do vegetarianismo como um sinal grave de heresia, pois acreditava que a abstenção da carne caracterizava a crença na proscrita doutrina da reencarnação. Valendo-se dos escritos de Santo Agostinho, ex-maniqueísta, a Igreja perseguia aos vegetarianos, mesmo quando estes não tivessem qualquer ligação com as instituições condenadas em função de suas doutrinas reencarnatórias.

Dentre os testes de identificação de hereges com utilização historicamente comprovada, há dois que buscam identificar, precisamente, os vegetarianos. Um ótimo estudo sobre estes testes pode ser encontrado no artigo“The Killing Test: The Kinship of Living Beings and The Buddhalegend’s First Journey to The West” (Journal of Buddhist Ethics 9 (2002): 109-148), de Graeme MacQueen. Os testes de identificação de hereges apresentam todos uma mesma estrutura básica. Neles, o inquisidor seleciona um princípio crucial para a identidade do potencial herege e o desafia a negá-lo. O "teste do alimento" foi utilizado para identificar tanto aos maniqueístas do período da Patrística, quanto aos cártaros do período Escolástico. MacQueen descreve-nos o modo como os representantes da Patrística, alarmados com a infiltração dos maniqueístas no clero, instituíram o teste, simplesmente verificando, dentre os monges, quais aqueles que estariam dissimuladamente rejeitando as porções de carne. MacQueen descreve também uma variação deste teste, conhecida pelo nome de "teste de morte". Cita um fato ocorrido no ano 1051 num vilarejo chamado Goslar, situado na atual Alemanha. As autoridades eclesiásticas, examinando um caso de heresia, apresentaram aos suspeitos uma galinha viva e ordenaram que eles quebrassem seu pescoço. O que os suspeitos não sabiam era que a recusa em matar a ave era a prova de heresia que a Igreja buscava.  O processo resultou na condenação do grupo à pena de morte por enforcamento. 

Ao longo da história, os vegetarianos sempre foram privados de exercer o direito de escolha da sua própria dieta. Por isto, inclusive, defendem este mesmo direito de livre escolha, pelo qual deram as suas vidas, para todos, advogando, desse modo, pelo direito histórico que as pessoas têm, inclusive, de não serem vegetarianas. Sabem da importância de considerar o momento e a cultura de cada um, os quais procuram respeitar, estimulando a convivência pacífica com todos. Os vegetarianos não buscam catequizar as pessoas, nem estimulam o conflito, agredindo os valores e os hábitos culturais com os quais não compactuam.  Pelo contrário, acreditam que podem e devem auxiliar no gradual processo de humanização das pessoas e que para isto devem se valer, unicamente, do seu EXEMPLO DE TOLERÂNCIA, COMPAIXÃO E RESPEITO À DIFERENÇA. 

II. Vegetarianismo e Veganismo

Com a popularização do vegetarianismo e da sua luta de conscientização em torno do sagrado de todas as formas de vida e do próprio planeta, alguns praticantes se afastaram de suas raízes milenares, simbolizada no conceito espiritualista de Ahiṃsā (não violência) -- termo sânscrito que se se define pela máxima do ancestral Yoga: "não ofenda, nem se ofenda; ame e compreenda; isto é Ahiṃsā, a sagrada práxis dos autênticos e puros iogues". Para se diferenciarem destes vegetarianos mais tolerantes e fiéis ao princípio da não violência, os ativistas mais radicais, que, em defesa dos direitos animais, propunham abertamente o confronto com os "carnistas", passaram a se denominar como veganos.

Há uma estória, destas que os iogues contam de mestre a discípulo, que exemplifica bem a diferença sutil entre os vegetarianos estritos e aqueles que preferem ser identificados como veganos. Uma velhinha, já quase em seu leito de morte, como gesto para se despedir da vida, convida para uma última refeição em sua humilde casa o iogue e santo mais famoso da região. Quer lhe prestar uma homenagem, dar provas de sua devoção para assim poder entregar o seu corpo a Deus. O homem aceita o convite da velhinha e vai visitá-la. Esta, radiante e honrada pela presença daquele homem sagrado em sua residência, prepara, o melhor que pode e com as forças que lhe restam um simples prato de arroz, que oferece ao santo com o maior carinho. À mesa, ela, quase cega, mal consegue fazer o prato e servir. O santo, contudo, se admira de tamanha devoção. Aquela comida simbolizava toda a relação da velha senhora com o sagrado. Era a Deus que ela estava servindo. Ao tocar no arroz, contudo, o santo nota algo se movendo. Havia uma barata no prato dele. Ele olha para os olhinhos de felicidade da velhinha; olha para o seu prato e reflete sobre o verdadeiro sentido de ser vegetariano e mostrar respeito e compaixão com todos os seres. Aquela velhinha, em seu último gesto nesta vida não suportaria a dor e a decepção se visse a barata viva no prato do santo. Consideraria esse acidente um insulto e uma ofensa ao seu venerável hóspede. O iogue, então, refletiu por um momento sobre o processo daqueles dois seres vivos que tinha ante si e, com a mão (come-se com as mãos nesses vilarejos), cobriu de arroz a barata. Em seguida, num gesto rápido para que velhinha não pudesse perceber, levou à boca aquela porção de arroz. Sacrificou a barata, sacrificou, momentaneamente, a sua prática vegetariana, em nome da verdadeira razão de ser do vegetarianismo -- a compaixão para com todos os seres, em especial com aquela velhinha em busca das bençãos do santo para deixar este mundo em paz. O santo sabia, melhor do que ninguém, que, por vezes, o mal maior não é o que entra, mas o que sai pela boca. 

Como se sabe, nasce desses iogues indianos a ideia de compaixão a todas as criaturas vivas e, consequentemente, a própria prática do vegetarianismo. As suas origens remontam à civilização pré-indiana do Vale dos Indus (3300 1300 a.C). Dentre os primeiros vegetarianos destacam-se o filósofo jainista Mahavira (ca. 600 a.C), o Senhor Buda e os imperadores indianos Chandragupta e Ashoka. Após converter-se ao budismo, o imperador Ashoka proibiu o sacrifício de animais, levando todo o reino a tornar-se lacto-vegetariano. O lacto-vegetarianismo sempre esteve presente na Índia, onde a relação de amizade com os animais os elevava ao patamar de sagrado. Somente um ocidental pouco informado poderá acusar um indiano que se alimenta do leite de vaca, tal como Krishna o fazia, de estar explorando a vaca. Pelo contrário, a vaca goza na Índia de um status de respeito motivo de chacota no ocidente.

Embora a prática do vegetarianismo seja muito antiga, a utilização do termo "vegetariano",  ao que tudo indica, passa a aparecer na literatura apenas a partir de 1847, quando tem lugar a reunião inaugural da Sociedade Vegetariana do Reino Unido -- The Vegetarian Society, frequentada por Gandhi, que foi membro do seu comitê executivo. Gandhi afirma em um discurso na Sociedade Vegetariana em 1931 que uma alimentação livre de carne era uma questão de ética, não de saúde, o que também deixa claro que o enfoque no aspecto ético não é privilégio do nascente veganismo. Na verdade, este enfoque já era bastante comum antes de 1847.  O livro An Essay on Abstinence from Animal Food: as a Moral Duty, de Joseph Ritson, por exemplo, é de 1802. E assim tantos outros que surgem em seguida: The Return to Nature, or, a Defense for the Vegetable Regimen (1811), de John Frank Newton, A Vindication of Natural Diet (1813) de Percy Bysshe Shelley e Water and Vegetable Diet (1815) de William Lambe. Além do mais já haviam muitos vegetarianos por razões éticas entre diversos grupos religiosos, como os Adventistas do Sétimo Dia, nos EUA, por exemplo. Com relação ao termo "vegano", ele foi cunhado apenas em 1944, para caracterizar alguns dissidentes mais radicais, descontentes com a condescendência aparentemente injustificada de uma parte de vegetarianos. Estritamente falando, não se pode chamar de vegano nenhum movimento anterior a 1944, ano em que foi fundada, à parte da Sociedade Vegetariana, esta nova organização, ainda fiel, de início, às suas milenares raízes vegetarianas. A prática do vegetarianismo alcança a Califórnia em 1948 e nos anos sessenta torna-se uma extensão da revolução eco espiritual e do movimento contracultural Flower Power (Poder da Flor) dos EUA, cujas influências orientais logo se popularizam em todo o mundo ocidental. O livro Diet for a Small Planet (1971) de Frances Moore Lappé alcança a cifra de três milhões de cópias, abrindo as fronteiras para o surgimento nas décadas seguintes da cultura do vegetarianismo ecofeminista, defendida em livros como The Sexual Politics of Meat: A Feminist-Vegetarian Critical Theory (1990), de Carol J. Adams, e do movimento vegano, com a produção de filmes como Earthlings (2005), dentre outros.

No Brasil, o veganismo passou a ser divulgado a partir da década de 90, com os meios de comunicação de massa contribuindo fortemente para a popularização do movimento. Por aqui, contudo, já tínhamos uma forte tradição de vegetarianismo e o veganismo surgiu entre nós quase como um modismo importado, fazendo-nos esquecer de que até 1944 a palavra "vegetariano", sempre inclusiva, englobava os dois conceitos -- vegetariano e vegano --, pois se referia, àqueles que eram conhecidos como "pitagóricos", ou seguidores da "dieta pitagórica" (baseada no consumo de raízes, folhas, frutas, sementes, leite e mel) por causa do filósofo Pitágoras e outros, como Empédocles, Teofrasto, Ovídeo, Seneca, Plutarco, Plotino e Porfírio, que não se alimentavam de produtos de origem animal. Pitágoras percebera que o sacrifício de animais embrutecia a alma das pessoas e que, portanto, a coexistência pacífica entre os distintos grupos de seres humanos só poderia advir do exemplo dos vegetarianos. Pitágoras nunca deixou nada escrito, contudo, segundo alguns, ele teria dito: 
Enquanto o ser humano for implacável com as criaturas vivas, ele nunca conhecerá a saúde e a paz. Enquanto os homens continuarem massacrando animais, eles também permanecerão matando uns aos outros. Na verdade, quem semeia assassinato e dor não pode colher alegria e amor. 
Alguns séculos mais tarde, no início da era Cristã, o filósofo neoplatonista Plutarco de Atenas (ca. 350-431) também faz um discurso onde define o consumo de carne como um ato de luxúria e crueldade.  Aos poucos, os filósofos neoplatônicos estavam popularizando a dieta pitagórica que, se não tivesse sido fortemente reprimida pela Igreja, logo teria se espalhado por todo o ocidente. Com o veganismo, contudo, surge essa espécie de equívoco, sob a forma de um ativismo mais exacerbado. Não é incomum se associar o veganismo com uma seita religiosa que demoniza os não adeptos. Já o os vegetarianos são considerados apenas pessoas que não gostam de consumir produtos animais. Nada mais. Vegetarianismo, de acordo com a Sociedade Vegetariana Brasileira, fundada em 1917 por Carlos Dias Fernandes, quer dizer, simplesmente, vida de acordo com a natureza. Conforme o próprio fundador do movimento argumenta em seu livro Proteção aos Animais (1914), o ser humano tem que assumir o seu papel de protetor dos animais e de toda a natureza.

Não fomos "projetados" para comer carne
O polêmico prof. De Rose faz uma defesa muito interessante do vegetarianismo no vídeo abaixo.


Vegetarianismo x Veganismo
O vídeo abaixo ilustra o princípio fundamental que diferencia o vegetarianismo do veganismo:
o especismo, a marca característica do movimento vegano.




Rio de Janeiro, 18 .06.17.
(Atualizado em 12.12.22)

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